Por Rosangela Bion de Assis, para Desacato.info.
As imagens relatadas a seguir estavam sendo transmitidas Ao Vivo pelo Portal Desacato, no dia 8 de fevereiro de 2018, mas foram deletadas do meu celular sob ameaça de prisão, realizada por três policiais do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), em Florianópolis.
Raul Fitipaldi e eu estávamos no Instituto Arco-Íris quando fomos informados que os acessos para a Praça seriam totalmente fechados. Chegando nas proximidades dos Correios, cerca de 18h30min, iniciei a transmissão Ao Vivo mostrando policiais do Bope próximos ao tapume metálico que cercou a Praça XV de novembro, durante o carnaval. Filmei o carro deles e comecei a mostrar como estavam tratando dois rapazes em situação de rua. Um dos policiais direcionava a arma para a cabeça do que estava ajoelhado no chão. Quando cheguei mais perto, o policial veio em minha direção.
– Você não pode filmar isso.
Centrei a filmagem no policial.
– Estou falando para parar de filmar ou você vai com a gente para a delegacia como testemunha desta prisão. Você não está entendendo, você vai presa se não parar e apagar toda essa filmagem, você não pode fazer isso.
Enquanto ele ameaçava continuei transmitindo até nãoconseguir mais. Raul que estava próximo gritou ‘saiam de cima dela’, mas foi afastado pelo cano da arma de outro policial. Um deles orientou:
– Ela vai conosco, já que filmou tudo pode ser testemunha da prisão desse bandido aqui. Você não sabe que não pode fazer isso, porque coloca a população contra a gente? Eu só estou fazendo o meu trabalho.
– Eu também, sou jornalista, e não posso apagar, era uma transmissão Ao Vivo.
– Então você vai conosco, pega o celular dela.
Ele me fez mostrar a tela do celular. No aparelho aparecia que a transmissão tinha sido encerrada, e as opções eram gravar ou apagar.
– Ou você apaga tudo ou vai com a gente.
Ainda hesitei, mas o pavor de ser levada por aqueles homens, falou mais alto e deletei o arquivo, mas tinha uma esperança de que os leitores que me acompanhavam haviam compartilhado as imagens, e que essas poderiam estar a salvo. Alguns populares se aproximavam do local, ouvindo o Raul, que tentava chamar a atenção para o que estava acontecendo.
Mesmo depois de confirmarem que as imagens não estavam mais no celular, os policiais continuavam em cima de mim.
– Você é daqui? Nasceu aqui?
– Sim.
– Porque você estava filmando?
– Já disse, é o meu trabalho, há 30 anos.
Nervosa com a situação, sentei na rua.
– Porque você sentou?
– Estou ficando trêmula, você já não viu que está tudo apagado, me deixa ir embora.
– Você não precisa ficar nervosa.
– Como não vou ficar.
Aí surgiu o Renato, diretor do Sinergia, de camiseta camuflada, alto, perguntando o que estava acontecendo. Lembro de ouvir algo sobre poder ir embora. Levantei, senti as pernas trêmulas, segurei nele e fui chorando. Chorei pela covardia que me fez deletar as provas da violência em troca da liberdade. Chorei de alívio por conseguir voltar para perto das pessoas que não representavam ameaça. Chorei de ódio por não poder cumprir minha missão de informar.
Polícia para quem precisa
Há 30 anos trabalho em entidades sindicais e associativas escrevendo, fotografando e, mais recentemente, filmando e transmitindo ao vivo a ação da polícia nas manifestações e atos. Nos últimos anos acompanhei a transformação no padrão de atuação das polícias.
Em 2003, quando os servidores públicos em greve foram agredidos e presos pela Polícia Militar em Itajaí, vi, pela primeira vez as bombas de gás voando sobre nossas cabeças. Em 2005, durante a greve dos servidores da Saúde e Previdência, fotografei a prisão do então coordenador do Sindprevs/SC (Sindicato dos servidores federais da Previdência, Ministério da Saúde e Anvisa), Valmir Brás de Souza. Extremamente próxima, fiz imagens que mostram o corpo do Valmir desmaiado sob as botas do policial. Usava, naquela ocasião um equipamento profissional do Sindicato e em nenhum momento fui questionada pelos policiais que executaram a ação, que acabou na prisão de três diretores.
Entrevistei o professor do curso de Jornalismo da UFSC e membro do Coletivo Floripa Contra o Estado de Exceção, Samuel Pantoja Lima, no dia seguinte, 9 de fevereiro. Conversei com ele sobre a violenta ação das polícias contra a população em situação de rua, nas semanas que antecederam o carnaval, em Florianópolis. Samuel afirma que
“o que aconteceu na Praça XV é uma pequena fotografia de um processo que não começou com o impeachment da ex-presidenta Dilma, que, mais recentemente, a eleição do Congresso mais reacionário da história do país, em 2014, foi a base política que levou ao golpe, dois anos depois. Esse processo abriu a face odiosa do Estado de Exceção que já era sofrido pelos setores vulneráveis da sociedade (comunidades empobrecidas, indígenas, população em situação de rua, negros, mulheres), que sempre foram tratados com violência pelo aparato repressivo que veio da Ditadura Militar, e que continua intocado. Recentemente o que aconteceu na UFSC é parte desse processo. O golpe abriu essa caixa de pandora. As forças conservadoras vieram com o protagonismo do Judiciário Federal, da Polícia Federal, do Ministério Público ede setores das Forças Armadas impondo essa ideia de que a política não presta; e trazendo toda essa situação política muito retrógrada na área dos direitos sociais e muito violenta na área dos direitos humanos”.
Isso explica porque a ação da polícia mudou completamente nos últimos 20 anos. O armamento utilizado, a quantidade desproporcional, a violência contra manifestantes e, nos últimos tempos, os ataques mirando os jornalistas e profissionais da comunicação. Nas coberturas em que atuei e nas demais que acompanhei através do Portal Desacato a desigualdade salta aos olhos. Foi o que chamou tanto minha atenção no dia 8. Descalço, vestindo camiseta e calção, que ameaça aquele rapaz poderia significar para três policiais armados com fuzis?
“A rua que está se conscientizando”
Antes de seguir para a Praça XV, Raul Fitipaldi e eu acabávamos de entrevistar ao vivo, Gabriel Amado, psicólogo do Instituto Arco-Íris, e André Schafer, do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Ambos denunciaram as ações higienistas, que começaram na semana anterior ao carnaval, encaminhadas pelo Ministério Público, Prefeitura Municipal, Sindicato dos Lojistas, Comcap, toda força policial civil, numa verdadeira ‘intervenção de guerra’. Gabriel explicou que na rua Deodoro, no centro de Florianópolis, próximo aonde era o Supermercado Xande, existe uma região de cuidados da população em situação de rua, que recebe pessoas encaminhadas pela própria Prefeitura. “Devido aos índices de abarrotamento da rede de assistência, cerca de 100 moradores em situação de rua diariamente dormem nesta região, numa estratégia de redução de danos, pois ali eles não podem usar drogas, nem álcool.”
Na ação, a polícia fechou todas as saídas, pediu identificação obrigatória, verificando quem tinha alguma infração penal ou passagem pela polícia. Os moradores em situação de rua foram mandados embora e culpabilizados por ‘não aproveitarem as oportunidades da gestão pública’. André Schafer, do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, afirmou que “da mesma forma que o processo de perda de direitos fica mais forte, também a população de rua fica mais forte e mais resistente. Sózinho a gente não vai conseguir, mas temos um grande grupo de apoiadores, temos uma rua que está se conscientizando.”
Não estamos sós
Assim que o Bope me liberou, no dia 8, fomos acolhidos pelo pessoal do gabinete do Vereador pelo PT, Lino Peres, que também havia sido entrevistado naquela tarde sobre o processo de limpeza da cidade e foi informado dos fatos por um militante social. A arquiteta Elisa Jorge e a colega Míriam Santini de Abreu se apresentaram no local onde fomos, acompanhado de militantes dos movimentos sociais, e foram solícitas conosco. Dezenas divulgaram sua solidariedade nos dias seguintes e ainda seguem crescendo as adesões de amigos e leitores.
Não importa quantas leis e textos abordem o direito dos jornalistas de registrarem a ação policial. Não estamos mais num estado de direito. Nossas jornalistas do Extremo Oeste ameaçadas a diário, nossa equipe da Capital atingida por bombas no corpo e gás pimenta, nossa Diretora ativista da causa palestina, sabem muito bem o que estou falando. Nunca o Desacato, estampado em nossas camisetas, foi tão apropriado para os dias que vivemos.
Rosangela Bion de Assis é jornalista, poetisa e presidenta da Cooperativa Comunicacional Sul
Meus parabéns e meus votos de que arranje forças para não desanimar de sua missão de informar. Não foi culpa sua, foi motivo de “força maior”, a mesma que, aliás, está acometendo de males o povo desse país onde NÃO SOMOS TODOS IGUAIS PERANTE A LEI e tampouco há justiça NOS TRÊS PODERES. Abraço, sou morador de rua, talvez o único a cursar Direito na cidade de Caxias do Sul e conheço a Caroline Dallagnol, sua colega aí na empresa Desacato.
saindo de florianopolis esse dia vi o fechamento.
já na argentina procurei a informação, mas só encontrei o artigo de elaine tavares, que era do passado.
que voltou.
toda minha solidariedade