O Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) entregou nesta sexta-feira (18) à Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright (CEV) os resultados da investigação sobre o suposto julgamento do professor Marcos Cardoso Filho nas dependências da antiga Escola Técnica Federal de Santa Catarina (ETFSC). Com o documento, o IFSC atende à solicitação encaminhada pela CEV em novembro de 2013 e elucida as circunstâncias em que ocorreu o suposto julgamento, além de iniciar um trabalho de resgate da memória do professor dentro da instituição.
O caso de Marcos Cardoso Filho foi levado à CEV por Nestor Manoel Habkost, atual diretor do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (CED/UFSC) e ex-aluno do curso de Eletrotécnica da ETFSC. À comissão, o professor relatou ter presenciado, enquanto estudante, o julgamento do professor Marcos Cardoso Filho, professor da disciplina de Medidas Elétricas, no auditório da Escola Técnica. Seus colegas de turma e estudantes de outras classes também teriam sido conduzidos ao auditório para acompanhar o ato. “A memória que eu tenho do evento que se passou é muito viva, porque ela foi chocante, brutal”, afirma Habkost.
A partir do relato do professor Nestor Habkost, a Comissão Estadual da Verdade encaminhou ao IFSC solicitação para que os fatos envolvendo o possível julgamento do professor Marcos Cardoso Filho fossem esclarecidos. Em fevereiro de 2014, uma comissão de oito servidores da Reitoria e do Câmpus Florianópolis foi nomeada para apurar os fatos e, além de elaborar o relatório atendendo à demanda da CEV, também promover ações para resgatar a memória de Marcos Cardoso Filho na instituição.
A investigação envolveu pesquisa documental nos arquivos da antiga ETFSC e em documentos externos, entrevistas com familiares, amigos, colegas de militância e ex-alunos de Marcos, além de pesquisa bibliográfica. O relatório final, com 29 páginas e 17 documentos anexados, chega a duas conclusões principais: primeiro, que de fato houve uma audiência da Justiça Militar na ETFSC, em setembro de 1976, na qual Marcos Cardoso Filho figurava como réu; segundo, que a demissão de Marcos Cardoso Filho da ETFSC, em 1978, teve motivação política.
História
Nascido em Tubarão, em 1950, Marcos Cardoso Filho era engenheiro eletricista formado pela UFSC e começou a dar aulas no curso de Eletrotécnica da ETFSC em abril de 1973. A partir de 1975, passou a atuar como docente também na UFSC, no Departamento de Engenharia Elétrica – antes, no início dos anos 1970, já havia lecionado Física no Colégio de Aplicação da UFSC. Apesar de sua aptidão para as ciências exatas, Cardoso Filho também tinha forte inclinação à ciência política e militava, desde o final dos anos 1960, no então proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi sua atuação como militante que o levou a ser preso na chamada Operação Barriga Verde, deflagrada pelo governo militar ditatorial da época para coibir a reorganização do PCB em Santa Catarina.
Marcos Cardoso Filho foi preso com outros 41 acusados de atuar na reestruturação do PCB no Estado em 4 de novembro de 1975 – uma terça-feira, dia em que daria aula das 15 às 18 horas na Escola Técnica Federal. Nenhuma informação sobre o assunto foi passada aos alunos, como recorda Nestor Habkost: “Nós nem sabíamos da prisão. Marcos desapareceu. Disseram apenas que ele não ia mais dar aula”. Dez meses depois, Habkost e os colegas foram surpreendidos com a ida da turma ao auditório da ETFSC, onde estava montado um tribunal militar – o que, para eles, tinha as características de um julgamento.
“Nós descobrimos que o ato que o professor Nestor Habkost descreve como um julgamento foi, na verdade, uma audiência da Justiça Militar para analisar o pedido de relaxamento de prisão de Marcos e de outros indiciados na Operação Barriga Verde”, afirma a jornalista do IFSC Ana Paula Lückman, que coordenou o trabalho de pesquisa da comissão. “A 5ª Circunscrição Judiciária Militar, onde corria o processo, tinha sede em Curitiba, e o número de acusados era muito grande. Então para evitar a necessidade de deslocamento de muitas pessoas, optou-se por realizar a audiência em Florianópolis, em um espaço federal como a Escola Técnica”, acrescenta.
Nos documentos da antiga ETFSC não foram localizados registros formais da requisição do espaço da ETFSC pelos militares – o provável é que isso tenha ocorrido por meio de ofício. A confirmação de que a cena descrita por Habkost foi a audiência que analisou os pedidos de relaxamento de prisão veio dos jornais da época – tanto o Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, quanto O Estado, de Florianópolis, fizeram matérias sobre o assunto. A audiência aconteceu nos dias 21 e 22 de setembro de 1976. O julgamento propriamente dito de Marcos Cardoso Filho só ocorreu em fevereiro de 1978, em Curitiba (PR). A maior parte dos 42 indiciados foi inocentada. Marcos recebeu a pena de três anos de reclusão. Uma vez libertado, em abril de 1978, não voltou a dar aulas na ETFSC, tendo sido exonerado pelo diretor Frederico Guilherme Büendgens em setembro do mesmo ano.
Resgate
Para a reitora Maria Clara Kaschny Schneider, o pedido da Comissão da Verdade proporcionou o resgate de uma parte importante da história da instituição. “Quando recebemos no IFSC os representantes da Comissão da Verdade que nos relataram o caso, ficamos surpresos e também muito sensibilizados”, afirma. “Optamos por criar a comissão interna que fez o trabalho de levantamento de documentos que pudessem clarear os fatos. O trabalho foi primoroso e hoje temos um relatório para entregar à comunidade esclarecendo o que aconteceu em nossa instituição com o professor Marcos Cardoso. Esse trabalho é essencial para que, conhecendo nossa história, possamos reparar os erros cometidos mas também, principalmente, que fatos como esse nunca mais se repitam em nosso país”, diz a reitora.
A tarefa da comissão interna agora é estudar formas de resgatar a memória e homenagear Marcos Cardoso Filho dentro do IFSC. O professor morreu em um acidente de barco na Lagoa da Conceição, em dezembro de 1983, aos 33 anos.
Fotos: Lourival Bento (no alto) e acervo da família Cardoso