Iemanjá mostra força afro-brasileira frente ao racismo religioso

As flores entregues a Iemanjá ao longo desta sexta-feira (2) em festejos em várias localidades do país são mais que um presente dos filhos devotos da Mãe dos Orixás. São o símbolo da resistência contra o racismo, o preconceito, a discriminação e a violência que marcam a população afrodescendente no Brasil. E um recado de que vai ter luta.

“Para além da questão religiosa, Iemanjá transmite a cultura de uma civilização. Os negros que foram trazidos para o Brasil, na diáspora, têm em Iemanjá a Orixá que divide com Oxalá as cabeças, ou seja, nossa mente, nossos erros e nossos acertos. Ela e as divindades, em nossos jogos de adivinhação, nos mandam como recado o preparo para a luta de resistência que a gente não pode fugir”, diz o sacerdote do Candomblé em comunidades de Terreiro Ilê Axé de Yansã, em Araras (SP), Elvio Aparecido Motta, o Tata Kejessy.

De acordo com a liderança, essa resistência à intolerância religiosa é marcada pela consciência do racismo enraizado na sociedade brasileira como produto dos mais de 300 anos de escravidão. “Estamos trabalhando na organização de coletivos de comunidades de terreiro para combater o racismo religioso, que é também uma maneira de combater outras formas de racismo e de discriminação. Entre as estratégias, a ampliação do diálogo com outras vertentes religiosas”.

Tata Kejessy rejeita o rótulo de intolerância religiosa para a violência que avança sobre terreiros e seguidores da Umbanda e do Candomblé. “Eu não quero falar de intolerância, quero ser respeitado. As bases do desenvolvimento desse país, que nos deve muito, está em nossas mãos. Trata-se de uma questão racial, esse racismo tem de ser entendido como crime do estado brasileiro. Estamos dialogando com a OAB, com a Anistia Internacional, porque o Judiciário tem de investir nessa questão porque, se derrubarem uma catedral católica, ou um templo evangélico, o Estado intervém. E por que não em relação aos terreiros, que são os guardiões da resistência e de preservação da cultura africana?”, questiona o sacerdote, que considera uma “insanidade” os direitos negados aos negros e suas culturas e tradições.

A estrutura social, política e econômica que se mantém apesar da abolição da escravatura, há 130 anos, respalda o racismo religioso, conforme Kejessy. “É mais do que intolerância o que enfrentamos, o que tentaram destruir de nossos valores mais preciosos. A construção da imagem de que Exu, que sincretiza um dos deuses principais por ligar o mundo dos humanos aos Orixás, como se fosse o diabo? Sobrevivemos a isso e crescemos, cultivamos valores solidários, de respeito às diferenças, inclusive de orientação sexual, o que nos faz neutralizar muitos aspectos do capitalismo. Daí outra razão para perseguirem e atacarem esses que são espaços de resistência e preservação de valores e culturas”.

Fundamentalismo

Sacerdote do candomblé, do terreiro Ylê Omiojuarô, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (RJ), Aderbal Ashogun destaca o “fundamentalismo social”, que vai além do religioso, está reduzindo a capacidade de reflexão das pessoas. “Iemanjá é a dona das cabeças, mas a humanidade não conhece Iemanjá, por isso está perdendo esse instinto básico, primordial, que Iemanjá representa. Se eu pudesse dizer algo para a humanidade, diria: aproveite os seios de Iemanjá, porque no mundo está faltando esse feminino – feminino que não tem nada a ver com gênero, mas com o instinto de preservação da humanidade”

O sacerdote destaca que o crime de intolerância contra as religiões de matriz africana, que segue impune, desqualifica a Constituição que o tipifica. “Se não tem ninguém preso por intolerância e nem por racismo, eu não posso orientar meu povo por uma Constituição que na prática não existe. Mas posso orientar por Iemanjá. O debate da intolerância é dos ignorantes. E o debate hoje deveria ser Iemanjá, sobre a falta de conhecimento a seu respeito..

“Em um cenário em que 60 mil jovens são assassinados, a maioria negros, é por ignorância, por falta de saber quem é Iemanjá. Não vi diminuir um número de jovem morto. São assassinos que não respeitam suas mães, não respeitam suas mulheres e não conseguem ver a humanidade com o carinho da rainha do mar.”

Para Aderbal, o desmazelo dos governos para com a população, especialmente a violência contra os jovens negros, resultam da usurpação do estado pelas igrejas, que “usam o dinheiro da corrupção, do tráfico, e tem a bancada evangélica”. “Existe essa quadrilha, que está organizada para promover a corrupção, a impunidade, a violência. Aí sim entram as questões de gênero. Imagine o Bolsonaro, que é um violentador de mulheres. O Feliciano, acusado de estupro. Então, essas pessoas usurparam o estado. O prefeito do Rio de Janeiro, em um estado laico, é um pastor. Os partidos políticos, são verdadeiras máfias são coniventes com o golpe (de estado)”.

Ele lembra ainda que os terreiros são os últimos focos de resistência real – daí estarem sendo atacados. “Os indígenas, os negos, os ciganos estão ameaçados de extinção em seu comportamento, em sua vida, seu dia a dia, saberes e fazeres, no seu patrimônio constituído. Acho que o debate é esse. Temos de educar nossa galera para saber que o racismo é de um estado dominado pelo fundamentalismo, que tem a igreja como nosso maior agressor, maior usurpador do estado”.

Subnotificação

Embora seja cada vez mais comuns notícias de ataques a terreiros de umbanda e candomblé, ou mesmo xingamentos e provocações nas redes sociais as quem professa a fé em religiões de matriz africana, não se sabe ao certo o tamanho dessa intolerância.

O Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Bahia, porém, registrou 108 casos em Salvador desde 2013. Apenas em 2017 foram 21 ocorrências, pouco mais de 20% do notificado em quatro anos.

De acordo com a titular da pasta, Fabya Reis, o dado não deve ser considerado um espelho do que acontece em todo o estado da Bahia – onde há a maior população negra fora da África – e muito menos no conjunto do território nacional.

O desafio, segundo ela, é encorajar as pessoas a denunciar esse tipo de agressão. “Sabemos que o número é subnotificado. E precisamos de dados mais próximo da realidade para propor campanhas e políticas públicas”, disse a secretária.

O Centro Nelson Mandela é uma conquista dos movimentos negros e em defesa da diversidade religiosa. Outra conquista recente foi a aquisição de uma unidade móvel, que poderá levar o serviço a várias localidades, como quilombos e comunidades indígenas, para realizar atividades educativas e promover a mobilização comunitária.

“São ações que reforçam a proteção a grupos atingidos pela discriminação e outras formas de intolerância que afetam principalmente as comunidades afrodescendentes”, disse Fabya.

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