Por Carlos Drummond.
O ex-presidente da Petrobras José Sergio Gabrielli de Azevedo, 68 anos, é considerado um dos maiores conhecedores da petroleira e do setor e projetou-a mundialmente em 2007 quando da descoberta do pré-sal durante sua gestão. Naquele período, o País atingiu também a autossuficiência em petróleo.
Gabrielli faz um balanço da situação atual e delineia as perspectivas da maior empresa do Brasil nas suas várias áreas de atuação, após quatro anos de Lava Jato e quase três anos e meio de gestão corporativa pró-mercado a partir da administração de Aldemir Bendine. O quadro descrito por Gabrielli é estarrecedor e revoltante.
Caso persista a atual política do governo, a companhia, até alguns anos atrás em plenas condições de ascender ao topo das maiores do planeta no segmento de óleo e gás, chegará ao final do desmonte comandado por Temer com a metade do tamanho e relegada ao papel de produtora de petróleo do pré-sal.
O detalhamento do ataque simultâneo em várias frentes permite concluir que não adianta culpar a corrupção de um punhado de ex-funcionários pelo desmanche em grande escala operado de forma concatenada pelos seus dirigentes, com destaque para o ex-presidente Pedro Parente, em parceria com o Congresso, o Executivo e o Judiciário.
Os crimes viabilizados por um punhado de ex-funcionários malfeitores, por maiores que sejam, não explicam o método e a pertinácia utilizados para saquear as reservas de petróleo e gás desnacionalizadas a preço vil.
Condenados na Lava Jato, cumprem penas de prisão os ex-diretores Jorge Luiz Zelada, Nestor Cerveró, Paulo Roberto Costa, Renato de Sousa Duque e os ex-gerentes Eduardo Musa, Luis Carlos Moreira da Silva e Pedro José Barusco Filho.
Tampouco justificam desmontar a estrutura verticalizada “do poço ao posto” globalmente vitoriosa no setor, desmantelar com a ajuda da Lava Jato a maior cadeia produtiva do País, forçar a ociosidade das refinarias para aumentar a importação de combustíveis fornecidos por concorrentes estrangeiras e detonar seu braço petroquímico, a Braskem, mercado crucial para as petroleiras diante do declínio do consumo dos derivados de petróleo, em consequência do aumento do uso de combustíveis renováveis e do advento dos carros elétrico e híbrido.
Contra Gabrielli há ações cíveis em andamento no Tribunal de Contas da União, na Controladoria-Geral da União e na Comissão de Valores Mobiliários, todas com acusações de omissão, mas nenhuma ação criminal na Lava Jato ou em outro âmbito.
A destruição da Petrobras, símbolo de uma nação que um dia ensaiou o desenvolvimento, obedece, entretanto, a uma lógica inquebrantável: encaixa-se à perfeição no calendário de suprimento de combustíveis dos Estados Unidos, detalha Gabrielli.
Uma estratégia de Estado, cabe acrescentar, executada pelas petroleiras privadas a ele articuladas e que agora encontram aqui condições excepcionais para participar da ofensiva internacional de rapinagem do patrimônio nativo.
Nesta entrevista Gabrielli, Ph.D. em Economia pela Universidade de Boston, pesquisador na London School of Economics and Political Science, ex-pró-reitor da Universidade Federal da Bahia e ex-diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da mesma instituição, descreve a guerra à Petrobras e ao futuro do Brasil.
CartaCapital: No mais recente dentre os vários ataques ao pré-sal, o presidente Temer sancionou na quinta-feira 14 a lei que autoriza a estatal Pré-Sal Petróleo a vender o óleo do pré-sal diretamente para empresas. O senhor conhece um precedente no mundo de alienação tão rápida e abrangente de ativos petrolíferos estratégicos de um país para concorrentes da sua petroleira controlada pelo governo, em operação liderada pela própria empresa com ajuda do Executivo, do Legislativo e do Judiciário?
José Sergio Gabrielli de Azevedo: A disputa pelo acesso aos recursos de hidrocarbonetos é intensa no mundo inteiro. O pêndulo entre mercado e Estado varia a depender dos momentos históricos de cada país. As empresas internacionais controlam um volume muito pequeno das reservas internacionais, que estão em sua ampla maioria sob o controle dos Estados e de empresas estatais.
Em certos momentos, as relações de forças internas dos países permitem uma avassaladora entrada de empresas internacionais sob a alegação de falta de capitais e tecnologias nos países hospedeiros. Essa alegação não procede em relação ao Brasil, que é líder da tecnologia e possui capitais para desenvolver seus recursos a longo prazo, mesmo com dificuldades a curto prazo.
CC: A que atribui essa escalada?
JSG: O petróleo é um produto estratégico e as empresas, mesmo as privadas, atuam em coordenação com seus Estados. Os principais conflitos geopolíticos do mundo giram em torno da garantia desse acesso. Alguns países, como os Estados Unidos, estabelecem a sua segurança energética como o principal motivador para sua política externa.
Os EUA aumentaram muito sua produção nos últimos anos com a generalização das técnicas de fracking (injeção de líquido sob alta pressão em rochas para abrir fissuras e extrair petróleo e gás) e a produção de shale gas (gás do xisto) e condensados associados, reduzindo muito sua dependência do petróleo importado nos próximos cinco a sete anos. O declínio da produção, no entanto, é acelerado e eles vão precisar de novas fontes em meados da próxima década.
Para esse fim, essas novas fontes precisam começar as atividades de exploração e desenvolvimento dos sistemas que levam de quatro a cinco anos para iniciar a produção. A abertura de novas áreas exploratórias no pré-sal brasileiro ajusta-se perfeitamente a este calendário americano.
CC: Como vê a reação interna a essa investida?
JSG: A questão-chave é saber se o Brasil precisa, nos próximos dois a três anos, acelerar a exploração de suas áreas potenciais ou se isso pode esperar esse período para a recuperação da situação financeira da Petrobras e a reconstrução da cadeia produtiva de petróleo e gás dizimada pela Lava Jato. A consciência da sociedade brasileira sobre a importância estratégica de longo prazo do acesso a esses recursos determinará a resposta a essa ofensiva internacional.
CC: O que acontecerá à Petrobras e ao Brasil no final desse processo?
JSG: No ritmo que vai, e com as mudanças de políticas para o setor implementadas pelo atual governo, a Petrobras será uma empresa de tamanho médio, voltada especialmente para a produção de petróleo do pré-sal, desintegrada.
Poderia ser uma das maiores empresas de petróleo do mundo, integrada da produção ao refino e distribuição, com expansão de horizontes exploratórios e aproveitando-se do tamanho do mercado interno de derivados.
A cadeia de fornecedores no Brasil será esmagada pela entrada de competidores internacionais, importações e ausência de compradores de grande escala, com a pulverização de operadores no pré-sal brasileiro. Poderia ser uma indústria crescente atendendo à grande demanda de um operador único, a Petrobras, com uma curva de aprendizagem que levaria todos esses fornecedores à competitividade internacional.
CC: As reservas do pré-sal permaneceram durante anos inexploradas pelas petroleiras estrangeiras presentes nas respectivas áreas, mas que não quiseram correr o alto risco da prospecção e exploração, tarefas essas assumidas pela Petrobras após décadas de investimento em pesquisa e formação de técnicos capacitados. Agora, com o investimento principal realizado e a Petrobras destituída da condição de operador único, entram para explorar o pré-sal. Isso é legítimo? Cabe algum tipo de medida para barrar esse avanço externo?
JSG: Está na função de operador, na indústria do petróleo, a principal parte do desenvolvimento tecnológico, a capacidade de estabelecer cadeias de fornecedores e a formação de pessoal. Múltiplos operadores distribuem esse conhecimento entre múltiplos atores, mas perde-se uma característica que era muito importante para o pré-sal: a escala das compras de equipamentos críticos poderia viabilizar a criação de uma nova rede de fornecedores que, inicialmente, teriam condições de concorrer com os produtores já existentes, mas com o tempo poderiam reduzir seus custos e competir internacionalmente. Isto é o que estava acontecendo com as sondas de perfuração e plataformas, cujo tempo de produção convergia para os tempos dos estaleiros mais eficientes do mundo.
CC: Poderia explicar o último ponto?
JSG: Uma medida de eficiência é o tempo de construção das plataformas e sondas. Os estaleiros brasileiros no começo levavam muito mais tempo para construir que os internacionais, mas ultimamente vinham se aproximando dos estrangeiros nesse quesito.
CC: Qual é a situação real das refinarias no Brasil e quais encaminhamentos considera apropriados para solucionar as lacunas ou inadequações eventualmente identificadas pelo senhor?
JSG: As refinarias brasileiras receberam grandes investimentos durante os governos Lula e Dilma, com o objetivo de melhorar os fluxos dos processos, ampliar sua capacidade de processar o petróleo pesado brasileiro e reduzir o conteúdo de enxofre nos derivados para o mercado. Tais investimentos levaram as atuais unidades a operar a mais de 90% da capacidade e agora elas estão operando abaixo de 70%, com algumas refinarias em torno da metade das suas capacidades.
O argumento de que a otimização dos resultados do refino pode levar à ociosidade de algumas unidades de processo, especialmente aquelas de conversão do petróleo pesado em derivados leves, é falacioso em situações em que a produção nacional de petróleo cru cresce a custos declinantes e os preços de derivados no mercado interno estão crescendo ou estão estabilizados. Nesse caso, o objetivo da otimização deveria levar em conta a máxima utilização das unidades já instaladas.
No caso do derivado produzido com petróleo nacional, sua lucratividade advém da diferença entre os preços de mercado e o seu custo de produção em reais, que inclui a matéria-prima de petróleo nacional aqui produzido. Os derivados importados têm sua lucratividade decorrente da diferença entre o preço dos derivados importados e as vendas no Brasil.
CC: O Brasil foi o destino de metade das exportações de combustível para jatos e diesel da Costa Leste dos EUA no primeiro trimestre, enquanto as refinarias nacionais operam com ociosidade anormalmente elevada. Em quais situações e para quais tipos de derivados a importação se justifica? Qual deveria ter sido a atitude da empresa? O refino tem importância estratégica para a Petrobras?
JSG: As importações brasileiras de gasolina, diesel e querosene de aviação são predominantemente oriundas dos EUA. O governo decidiu aumentar o número e o volume dos importadores de derivados, enquanto a Petrobras acumula capacidade ociosa para criar um clima favorável à venda das refinarias.
A redução da presença da Petrobras no refino é uma estratégia para, de um lado, atrair novos investidores e, de outro, transformá-la em uma empresa voltada apenas para a produção de petróleo. No mundo do petróleo, as grandes empresas e as mais sustentáveis a longo prazo são aquelas integradas do poço de produção ao posto de vendas no varejo.
CC: De um lado, há os defensores do controle pela empresa dos preços dos combustíveis para manter a inflação em patamares razoáveis e, de outro lado, os partidários da dolarização dos derivados no mercado interno. Entre esses extremos existe uma miríade de propostas que incluem desde subvenção do governo com dinheiro do Orçamento, tabelamento e cobrança de imposto variável sobre importados. Como vê essa questão?
JSG: Em todos os países grandes produtores de petróleo, com exceção da Noruega, há uma certa estabilidade dos preços quando comparados com a variação de curto prazo dos preços dos postos de gasolina dos países importadores de petróleo e, especialmente, dos importadores de derivados.
Os preços da gasolina na Noruega, Finlândia e Dinamarca são os maiores do mundo hoje, por causa dos impostos cobrados sobre os litros vendidos como forma de desestimular o uso dos automóveis com motores a explosão e compressão e estimular o uso de combustíveis alternativos e carros elétricos e híbridos.
CC: Como funcionava na prática a contenção de repasses imediatos de variações do preço em dólar do petróleo ou do próprio dólar e o alongamento e, portanto, a atenuação dessa transferência de impacto no interior da estrutura verticalizada da Petrobras?
JSG: No caso do Brasil, no período Lula e Dilma os preços dos derivados eram ajustados em ciclos longos, levando em conta as expectativas de variações futuras da taxa de câmbio, do preço do petróleo, dos preços dos derivados e do mercado interno brasileiro. Nesse período, os acionistas tiveram os maiores lucros da história da Petrobras e o valor de mercado da empresa atingiu seus picos históricos.
CC: O senhor tem criticado a troca da estabilidade de uma empresa integrada, que atua “do poço ao posto”, pela busca de fazer caixa a curto prazo com a venda de seus ativos, de forma a acelerar o pagamento das dívidas e dos dividendos.
JSG: A integração vertical permite proteção de longo prazo em relação às flutuações cíclicas dos preços do petróleo, uma vez que as margens de refino e os preços dos derivados, apesar de acompanharem os preços do óleo cru no longo prazo, não variam com a mesma intensidade nos mercados com grandes refinadores e com produção doméstica relevante. As empresas integradas internacionalmente têm mais lucro e maior sustentabilidade de longo prazo.
CC: A Odebrecht negocia a venda do controle da Braskem, na qual é sócia da Petrobras para a gigante holandesa LyondellBasell. A aquisição deverá dar origem à maior petroquímica do mundo. Qual será o efeito desse negócio para a empresa?
JSG: A petroquímica será a longo prazo o principal mercado do petróleo, uma vez que seu uso como energético para os transportes tende a se reduzir com a utilização das tecnologias de veículos elétricos e híbridos.
A utilização do petróleo como matéria-prima dos produtos petroquímicos deve, portanto, crescer a longo prazo e as principais petroquímicas mundiais aumentam sua integração com as unidades de refino. Os maiores projetos novos de refino, tanto no Oriente Médio como na China e na Índia, ampliam as relações das refinarias com as unidades petroquímicas.
CC: O que o Brasil perde com a venda do controle da Braskem?
JSG: A venda da Braskem significa a perda do controle nacional de um setor que se tornará crescentemente importante na indústria. A Braskem é uma das cinco maiores empresas petroquímicas do mundo e estava se expandindo fortemente nos EUA com a implantação de unidades naquele país para utilizar o gás natural relativamente mais barato e se consolidar como um grande player internacional. Com a sua venda, o Brasil coloca-se fora dessa disputa estratégica de longo prazo.
CC: Como vê a afirmação de que a Odebrecht foi forçada a vender o controle na Braskem pela Lava Jato, que, além de punir os executivos da construtora, o que acontece também no resto do mundo em casos de inidoneidade, foi além e puniu a empresa com a interdição por anos dos contratos com o setor público, o que é inédito na Europa e nos Estados Unidos em situações análogas envolvendo grandes grupos, os quais, após interrupção de semanas ou poucos meses, voltam a celebrar contratos normalmente com o Estado?
JSG: As motivações diretas da venda pela Odebrecht da sua participação na Braskem parecem ser relacionadas com a Lava Jato e, indiretamente, também com a posição da Petrobras, sócia relevante da Odebrecht na Braskem.
CC: A partir da Petrobras floresceram indústrias de bens de capital e, conforme o senhor destacou acima, de construção naval significativas, entre outras. Em sua opinião, o País e a Petrobras deveriam voltar a estudar a possibilidade de reforçar o setor de óleo e gás por meio de um amplo programa que incluísse associações inteligentes com empresas estrangeiras produtoras de equipamentos, de modo a revitalizar a cadeia produtiva?
JSG: Acho que sim. A tentativa de montar uma indústria parapetroleira no Brasil pressupunha uma empresa-âncora, grande compradora (a Petrobras), políticas de suporte e desenvolvimento econômico que baixassem os custos sistêmicos para a indústria e as condições de financiamento para viabilizar os investimentos no País.
Tudo isso está sendo desmontado pelo atual governo. Dificilmente será possível, a curto prazo, retomar tais atividades. Mas o País não poderá desconsiderar essas oportunidades a longo prazo. As pressões pela política de conteúdo nacional retornarão e mudanças da atual política deverão ocorrer.
CC: Uma corrente de opinião cada vez mais volumosa encorpa o movimento privatizante e desnacionalizante anti-Petrobras, iludida quanto à possibilidade de o País, dada a abundância de fontes renováveis, conseguir adotá-las a médio prazo em quantidade suficiente para substituir o petróleo.
JSG: As fontes renováveis de energia eólica, solar e outras deverão crescer mais do que as fontes primárias de combustíveis fósseis petróleo, gás natural e carvão. Há, no entanto, um problema com as fontes renováveis partindo de bases muito pequenas e com altas taxas de crescimento, que levarão muitos anos para atingir escala significativa. A Petrobras está fortemente associada ao sistema produtivo de uma fonte intermediária que é o gás natural, mas a política do atual governo é de tirá-la desse setor.