Por Thiago Soares Ouriques, para Desacato.info.
Sujo essas folhas agora com minhas lágrimas que são reflexo de uma alma que sangra. Não a minha, mas a da sociedade que perdeu sua identidade. E é nessa última tentativa que deposito minhas últimas esperanças, e faço isso pois sou humano. O último humano que ainda quer conversar com alguém. Talvez o último que lembra do quanto o mundo já foi lindo um dia.
Dói ver onde a humanidade chegou. Me dá uma profunda tristeza olhar ao meu redor. E não há mais como fugir, está em todo lugar. A globalização, terceira revolução industrial, ou qualquer outro nome que possa se dar ao que as pessoas fazem com seus celulares. O que se faz com celular é indiscutivelmente interessante, mas o que se deixa de fazer por causa dele, bom, é indescritível. No começo esse fenômeno atingiu só os jovens, que se sentiam o máximo com a exclusividade. Tinham um mundo só para eles, uma realidade paralela impenetrável aos adultos. Não durou muito tempo, é claro que os adultos movidos pela curiosidade humana logo ingressaram na nova e pulsante bolha chamada Redes Sociais. Antes cada um ficava em sua casa e usava seu próprio computador para acessar as redes e conversar com pessoas distantes, era muito divertido! Agora que o computador passou para a palma de nossas mãos, tudo mudou.
O celular é como um apêndice, ele já é como parte do corpo humano. Até o mais simples e primitivo ato que é o de acordar, mudou. Acordar era abrir os olhos, escovar os dentes e tomar aquele café fervendo que queimava os lábios se não cuidássemos. Era olhar o Sol nascendo e sentir aquele friozinho da manhã. Ver como o orvalho havia se instalado na grama durante a noite, como um fino lençol de minúsculos diamantes reluzindo ao Sol. Acordar já foi sim, dar um beijo em seu amor e sorrir com os olhos cheios de ramelas. Mas tudo mudou, acordar já não é mais nada disso, acordar é se conectar. Como um viciado procura sua seringa para injetar a heroína em suas veias sedentas pela droga, nossas mãos procuram em nossos criados mudos os celulares. Com os olhos ainda fechados tateamos até achar, e quando olhamos nossas conversas e mandamos bom dia, ainda deitados, finalmente acordamos.
E não é só isso. Tudo está completamente diferente! Acho que talvez numa próxima evolução da raça humana nasçamos com um teclado em nossas mãos. Provável que o grande e sábio homo sapiens sapiens se torne o dependente homo celularis. Também é possível que nossas cordas vocais caiam em desuso e se tornem um órgão residual como nossas amigdalas ou o próprio apêndice. O sistema digestório também não creio que será mais útil para nós. Os alimentos que antes eram devorados por bocas vorazes e ansiosas pelo sabor, hoje são devorados pelas câmeras. Um grande e suculento hambúrguer é servido. O alface verde e fresco, a carne fumegante infestando o ar ao redor com seu cheiro, o pão tostado por fora e fofinho por dentro, atolado de molho, maionese e ketchup escorrem pelos cantos do lanche. A primeira coisa a ser feita, obviamente, é tirar uma foto. A estupidez nos consumiu. Alimentamos ao nosso ego com fotos de nossas comidas postadas em milhares de redes sociais. Saborear a refeição não está mais no cardápio! O hambúrguer agora foi promovido a modelo e nós somos os fotógrafos. E após a sessão de fotos, a comida esfria. Agradeçamos acima de tudo, por termos comida para deixar esfriando.
Pelo menos os hambúrgueres têm uma profissão melhor agora. Pior são as esquecidas risadas. Os bares já não são mais lugares de conversa fiada e cerveja gelada no copo de todos. A cerveja esquenta em cima das mesas e a única coisa que ainda se fala é “olha o que eu te mandei no celular”, quem sabe um “curtiu minha foto?”. As pessoas não riem mais, não brincam mais, as piadas e risadas foram virtualizadas. Sugou-se tudo que havia de melhor em nós. Aquele burburinho que se ouvia quando a professora se virava para o quadro para escrever. A gente conversava! Jogava bolinhas de papel, subia na mesa e ria descontroladamente. E quando a professora virava de volta para nós, ainda tínhamos a cara de pau de dizer que só queríamos uma borracha emprestada. Sem contar o bombardeio da mesma pergunta que a professora recebia diariamente: “É pra copiar?”. Esses tempos também se foram para algum lugar muito distante e remoto. Cliques e mais cliques se ouvem e é assim que a matéria é copiada, fotos. Ninguém mais se dispõe a perguntar à professora se é para copiar. Ninguém mais se dispõe a falar, na verdade.
É um mundo diferente. Estamos todos conectados, sabemos de tudo que acontece em todos os lugares da face da terra! Conversamos com colegas do mundo inteiro, em segundos, não há mais telegramas, e-mails, cartas. Só mensagens instantâneas que interrompem as ocasiões antes importantíssimas, agora desprezíveis. A realidade agora é virtual, e o mundo virtual é a própria realidade. O que se passa ao redor não é mais importante. O frio, o calor, as sensações no geral não são mais sentidas. Mas a foto de casaco com a legenda “frio” e um floco de neve está lá. A foto sente por nós, os arrepios que subiam a nuca e as lindas bochechas rosadas das garotas no frio não significam mais nada.
O status de relacionamento hoje define o que estamos passando com nossos parceiros. Aquele verão maneiríssimo de Woodstock onde todo mundo vestia colorido e se proclamava livre virou “relacionamento aberto”. Coitadas das estonteantes tulipas que um dia compuseram um lindo buquê, viraram status. Somos rotulados igual produtos de supermercado, ler o verso de um pacote de salgadinho é o mesmo que olhar a rede social de alguém. Somos meras embalagens de algum conteúdo há muito esquecido. Livros com lindas capas e páginas vazias. Mentes brilhantes desperdiçadas.
Falando em livros, viraram todos depósitos de traças, percevejos, teias de aranha e poeira. Não se lê mais nada, se não mensagens instantâneas. Os gêneros textuais sucumbiram e se compactaram. Ninguém mais tem paciência para ler um livro grande como o saudoso Harry Potter ou até a bíblia. Agora só pequenas e curtas histórias ilustram nossa literatura. Parou de se escrever notícias quando descobriram que as pessoas só liam os títulos e os romances deixaram de existir quando as livrarias faliram. Até deus está desapontado com seus fiéis. Sua caixa de entrada virtual deve estar lotada. Os antigos altares e templos antes construídos em honra a ele cederam lugar a enormes correntes virtuais de trechos bíblicos e com o final “envie para cinco pessoas se você ama deus”. A fé não é mais tão difícil de ser provada, não precisamos mais queimar mulheres nas fogueiras ou ser bons. Todos podem matar e assaltar, mas têm que compartilhar a foto de deus no Facebook, quem só olha é satanista. Todos ficaram mais felizes nesse caso. Os satanistas também não se dão mais o trabalho de tomar sangue de bode e sacrificar galinhas, é só olhar a foto de deus e não compartilhar. As galinhas e bodes também curtiram essa nova onda. Deus e o diabo não gostaram, acho que eram mais ortodoxos, mas não sei, não conheço eles.
Fomos reduzidos a isso. Ao nada. Nossas mentes vazias refletem nossa fraqueza e presunção ao nos proclamar os dominadores do fogo, terra, água e ar. Não conseguimos nem nos dominar, nem nos controlar. Deixamos o que era mais obscuro e podre em nossas almas tomar conta de nós. Nosso egoísmo, sede por atenção e vaidade. Não valorizamos mais os momentos, não vemos mais o mundo com nossos próprios olhos, apenas através de uma tela. Nem ao menos admiramos à beleza alheia, não olhamos mais se uma pessoa é bonita pela sua estética, o número de curtidas já avalia por nós. Não nos reduzimos aos animais, pois esses já estão anos luz à nossa frente, aproveitando suas vidas e o de melhor que suas espécies têm a oferecer. Ou pelo menos o que restou delas, que não destruímos para construir horríveis e quadrados edifícios cinzentos.
Falta para as pessoas, reparar que existem sim, outras pessoas ao seu redor. Atrás da câmera que fotografa o mar existe sim, uma praia. Sim! Uma praia com a areia quente e o mar azul louco pra te refrescar. A mão que tira a selfie pode largar o celular e acariciar o outro ser humano que existe ali naquele recorte de existência chamado tela. Nos bares há sim, pessoas sedentas para conversar e rir de verdade, não o “kkk”, mas a risada alta e estridente, que como um vírus, infecta e contagia todos ao seu redor. As pessoas estão carentes de abraços, de beijos, de carinho! Curtidas nunca vão substituir o valor de um toque real. Não nos esqueçamos de quem somos! De quem fomos um dia, ainda há um coração dentro de cada um de nós. Não somos robôs, somos seres humanos, tão reais quanto as mãos que esmurram os teclados durante uma discussão, tão reais quanto os beijos molhados a apaixonados que já foram dados, tão reais quanto os calos nos dedos das lindas cartas de amor escritas, tão surreais quanto o espaço sideral, tão brilhantes quanto as estrelas no céu. Tão perfeitos, complexos, confusos, e tão selvagens como nenhum animal jamais visto. É isso que nós somos, nós somos reais.
16 de Abril de 2025
Imagem: Captura de tela.