Por Elaine Tavares.
Na última sexta-feira o Conselho Universitário da UFSC se reuniu mais uma vez para discutir a adesão à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. E, de novo, a mobilização de grupos contra e a favor, arrastou a decisão para a semana que começa. Cercados pelos manifestantes num auditório sem saída, os conselheiros decidiram apenas ouvir o voto do relator. Num documento de 44 páginas, o professor Carlos Locatelli apresentou os argumentos dos dirigentes do HU, da Ebserh, e não levou em consideração a consulta pública realizada pela instituição que deu um sonoro “não” à adesão. Seu voto foi favorável a contratação da Ebserh para administrar o Hospital Universitário, coisa que já era esperada.
O que se seguiu a leitura do parecer foi uma discussão que bem retrata a formação do conselho e os interesses que o movem. A maioria esmagadora dos membros do CUn é formada por professores. Funciona ali a democracia dos “filósofos”, bem ao gosto de Platão. Os técnicos têm apenas seis votos, assim como os estudantes, num fórum que tem mais de 50 pessoas. No famoso jogo das “garrafinhas”, só passa aquilo que é do agrado dos professores. Temas de interesses dos técnicos ou dos estudantes só são vencedores quando algum elemento também interessa aos docentes.
A fala de um conselheiro – depois de vários discursos – foi incisiva: “não adianta fazer discurso, todo mundo já tem seu voto. Ninguém vai mudar de lado por conta de uma fala”. Queria dizer com isso o jovem professor que todo o debate que se faz no CUn é ritualístico, mera formalidade, tudo já está dado. Talvez ele tenha razão. Outro professor atacou os que se manifestavam contra a adesão à Ebserh dizendo que o discurso desse grupo é ideológico, que não há números. “Eu quero números, números”, insistiu, depois de dizer que só quem vive dentro do HU pode saber o que se passa lá, e, portanto, decidir sobre ele. De novo, a lógica de Platão. Na república dos filósofos, só eles podem saber o que é bom à maioria.
Mas, os que ainda resistem, formando a minoria do Conselho, seguiram falando, porque, afinal, é só isso que podem fazer. Logo, que não venham os “iluminados” querer tirar até isso dos sem-poder. Os argumentos, que o professor chama de ideológicos, são baseados na vida mesma, na realidade concreta daqueles que precisam de um serviço público de saúde, coisa difícil de ser entendida por quem não necessita dele. Com a adesão à Ebserh, os hospitais-escola, vinculados às universidades, estão agora com duas portas. Uma para os doentes do SUS e outra para os dos planos privados. Quem depende da saúde pública sabe muito bem a diferença no atendimento.
A tal empresa pública – que é de direito privado – se move pelo lucro, pela produção. E o que produz um hospital? Doença? E o discurso dos “contra” é que é ideológico… A Ebserh entra no jogo da administração com metas e projeção de resultados, contrata trabalhadores pela CLT e cria uma seleta casta gestora. Haverá um superintendente e mais 75 cargos comissionados e funções gratificadas, todos com salários bem polpudos – maiores do que os dos cargos de direção da UFSC -, fatia bastante cobiçada pelos que querem a imediata contratação.
O que deveria ficar bem claro para a população catarinense – que é quem de fato precisa do hospital – que há nesse debate uma inversão da linguagem. Os chamados “contra” são os que lutam pela manutenção do HU 100% público, sem a segunda porta privada. Já os que se dizem “à favor” escondem esse pequeno detalhe: a Ebserh é uma empresa e agirá como tal. Ou seja, numa empresa, o que vem em primeiro lugar é o lucro e não o interesse público.
Nessa batalha o que fica escondido é justamente a miséria da saúde pública e a cada dia mais voraz investida do mundo privado sobre o que deveria ser um direito. As relações de produção criadas no sistema capitalista tornaram a vida mesma um espaço para a compra e venda. Há uma indústria de alimentos que promove a doença, há uma indústria de remédios que vende o paliativo para a doença criada e há os serviços de saúde que oferecem a ilusão da cura, num círculo vicioso de oferta de “mercadorias”. Nesse mundo só pode existir o cidadão-cliente, ou seja, aquele que paga pelas coisas. Os que não podem pagar são não-seres, inúteis no jogo, completamente dispensáveis, valendo algo apenas quando são evocados para garantir os recursos públicos que sustentam o lucro privado.
Essa semana, na terça-feira, o Conselho dará seu veredito e ele não será surpresa. Como a consulta institucional feita para ouvir a comunidade não é considerada “deliberativa” ela sequer será levada em conta, ainda que 70% da comunidade tenha dito não. Na UFSC, as “consultas” só são legais quando interessam a maioria dos professores, como é o caso das eleições para reitor que também são consultas informais, mas sempre respeitadas. Já no caso do HU, não. Ela é só consulta e ainda “teve muita abstenção”, como lembrou o relator. A lei de Ricúpero em ação. “Se é bom pra nós, acatamos, se não é, escondemos”. E assim segue a nave da UFSC.
Para os que discutiram com seriedade durante mais de sete anos a proposta da Ebserh, realizando seminários, encontros, debates e consultas, restará a amarga sensação de serem os “arautos da desgraça”, ou seja, aqueles que gritam na montanha sobre os males que virão, e que não são ouvidos ou críveis. A república dos filósofos votará pela adesão e o HU deixará ser administrado pela universidade. O tempo, então, dirá quem estava certo. Pessoas há que se darão muito bem no novo sistema, é certo. Mas, serão poucos. Aqueles que apenas contam com o serviço público para cuidar da saúde certamente perderão.
O discurso – esse sim ideológico – de que o privado é melhor que o público venceu entre os professores, entre os alunos da medicina e até entre a população, porque esse é mesmo o modo de ser da ideologia. Falsa consciência. Verdade encoberta. Poucos são aqueles que olham com vista crítica para os serviços públicos que foram privatizados, como a telefonia por exemplo. Todo mundo tem celular, é fato. Mas quanto custa mantê-lo e como é o serviço? Ah, a difícil tarefa do pensamento crítico!
E assim, na terça, lá estaremos, para o que nos resta. Falar. Deixar registrado na história que vozes contrárias existiram e lutaram. As mesmas vozes e pessoas que estarão, de novo, na luta, quando preciso for.
Fonte: Eteia.