Hora de outro modelo: a economia feminista

Nas últimas décadas, ultraliberalismo impôs o modelo agropecuário que pode ter gerado o novo vírus. Serviços sociais foram cortados e remédios e insumos hospitalares protegidos sob patente. Superar este projeto exige colocar a vida no centro

Por Graciela Rodríguez.

Corre na internet um enorme número de notícias e artigos sobre a pandemia que nos acomete, na sua dimensão de crise sanitária, mas também enquanto colapso econômico que já começa a se notar, e em suas outras dimensões: políticas, sociais e ambientais. Entretanto, poucos deles direcionam a análise sobre o retrovisor, a ver como chegamos até aqui (1).

Escrevendo desde a América Latina, esse olhar retrospectivo não deve ser um esforço retórico, senão a forma de analisar as causas que motivaram em grande parte esta gigantesca crise do neoliberalismo, agora dramática pelo temor pandêmico.

Por esse motivo, considero necessário em primeiro lugar enfatizar que esta crise que se prognostica prolongada resulta em grande medida das políticas neoliberais que vêm sendo implementadas nas últimas décadas. Variadas são essas macropolíticas que estão mostrando agora seus efeitos nefastos. Aqui tentaremos focar em duas delas, a promoção do “livre comércio” e a liberalização dos investimentos, políticas que podem ser consideradas bases da globalização que se expande desde os anos 80, e que atualmente recrudescem em seus efeitos que faz muito tempo denunciamos (2).

Foram os acordos de livre comércio (TLCs) e a flexibilização dos fluxos de capitais através dos acordos de Investimento (TBIs) impostos pelos países do Norte, especialmente EUA e Europa, e depois pela OMC (Organização Mundial do Comércio), os que facilitaram a integração do mundo produtivo agrícola e industrial especialmente, e da maior parte das atividades econômicas, dentre elas os diversos serviços.

A liberalização do comércio agrícola – desenhando a brutal concentração das terras para monoculturas na maior parte dos países de América Latina – para a exportação das commodities (soja, carne, frango etc.) e de outros produtos primários, como madeira, pesca, frutos da floresta, etc, agravada “pela exacerbação no uso de agrotóxicos, pela presença de antinutrientes, pela contaminação da água, pela dilaceração dos ecossistemas e pelos crimes socioambientais” (3) questões todas que estão provocando neste momento a fragilização do sistema imunológico da população, e as graves perspectivas de colapso da segurança e da soberania alimentar e nutricional em nossos países.

Por sua vez, a abertura das fronteiras nacionais para a entrada das grandes empresas transnacionais no comércio de serviços (4) foi determinante nos processos de privatização, especialmente dos serviços essenciais como saúde, distribuição de água, saneamento, energia, educação e pesquisa científica, telecomunicações etc. Serviços atacados pelo desmonte dos Estados e suas políticas públicas e que se encontram hoje no centro da crise sanitária e social.

Se somarmos a isto as negociações de Propriedade Intelectual através da extensão do sistema de patentes, especialmente para medicamentos, instrumentos médicos, sementes, tecnologias industriais, técnicas audiovisuais etc (5) completamos o quadro de colapso em que o mundo está entrando.

Finalmente, sinalizar a importância da liberalização global dos fluxos de investimentos promovida pela desregulação financeira, e assentada na demanda por segurança jurídica persistentemente alentada pelas grandes corporações transnacionais, é com certeza enxergar o pilar fundamental do crescimento do sistema da dívida pública e privada, e das bolhas financeiras especulativas. Sua detonação na crise de 2008, que se arrasta até agora, explode novamente dissimulada pelo vírus que, aliás, pagará seus custos. O coronavírus só precipitou em forma trágica a crise surgida na corrida de desregulação financeira neoliberal. Uma brutal crise do capitalismo que, obscurecida pela pandemia, conseguirá provocar um colapso econômico de proporções nunca vistas a escala global, ainda mais intensa pela aposta que fazem as elites nacional e globalmente por continuar nesse capitalismo de cassino, como estamos presenciando mais uma vez (6).

Poderíamos listar muitos outros elementos das políticas neoliberais e das negociações internacionais das últimas décadas que agiram como argamassa da crise atual. Entretanto, esses quatro aspectos dos acordos de comércio e investimentos formam o principal núcleo duro da problemática que nos arrastou a esta crise econômica, social e também sanitária.

A falta de políticas públicas de saúde de atendimento universal, a carência de pessoal para atendimento das pessoas afetadas, a precariedade das instalações e do instrumental médico necessário, a falta de investimento em pesquisa científica, dentre outros aspectos cruciais para o enfrentamento da epidemia em cada país, mostram cruamente as políticas neoliberais falidas. Tudo isso somado ao modelo alimentar das populações baseado na agricultura química, na criação industrial de animais e na perda significativa de biodiversidade, aliás, um dos motivos já comprovado para proliferação de novos vírus – que refletem o modelo produtivo desenhado pela globalização neoliberal, com a perversa divisão internacional do trabalho que tem-se intensificado, condenando a América Latina à deriva extrativista. Por sua vez, a atuação dos lobbies farmacêuticos em torno a uma possível vacina, e a outros insumos hospitalares e de saúde, protegidos pelas patentes e os sistemas de demandas dos investidores sobre os Estados, também não são tranquilizantes.

Nesse sentido, as mulheres, ligadas ao cotidiano da vida e responsáveis cotidianas pela subsistência de milhões de pessoas, sofrerão enormes impactos dessa ausência de políticas públicas que vem reforçar a pandemia, tanto com o aumento do seu trabalho para suprir essas carências, como também pela sua maior presença nos mercados informais e o maior desemprego que sofrem na maior parte dos países da região (7). O custo e o endividamento resultantes do enfrentamento a esse cotidiano, com a carga reforçada pela epidemia, já está sendo adicionado sobre as costas das mulheres, e muito em breve se verá traduzido no reforço às desigualdades de gênero das sociedades latino-americanas.

A insegurança alimentar e a quebra da soberania alimentar em inumeráveis países torna-se uma perspectiva palpável a curto e médio prazo, aceleradas por um sistema agroalimentar industrial tóxico, e agora ameaçada pela queda do comércio internacional que seria pretensamente o recurso a ser utilizado pelos países, segundo as argumentações de quem alentava o agronegócio exportador nos países do sul global.

O trilionário apoio dos governos de EUA e da Europa aos maiores bancos privados para a derrama de apoio às populações e empresas atingidas pela crise tem um estilo de filme revisitado que já conhecemos, e que só aprofundou a crise em 2008. Os governos voltam a emprestar às empresas e as pessoas num momento com um nível muito elevado de dívida privada, em percentual da dívida em inúmeros países (8). Percorrer novamente a cadeia de endividamentos de empresas e especialmente das famílias para não diminuir o fluxo de consumo global não traz expectativas animadoras (9)…

Porém e como sempre, “nas crises não existem neoliberais” e ninguém se lembra dessas políticas nefastas. Assim, as soluções do sistema capitalista voltam a apontar sem pudor para o auxílio dos Estados, desmontados pelas políticas de “austericídio”, para recuperar o comércio internacional e as falidas cadeias globais de produção e para salvar o sistema financeiro e os bancos “grandes demais para quebrar”.

Esses apontamentos e questionamentos, ainda que muito resumidos, buscam nutrir reflexões que devem ser feitas com urgência, para que nos permitam avançar em formas novas, em âmbitos locais, nacionais e até internacionais de encarar os sistemas produtivos, o comércio internacional e as mudanças necessárias para a garantia de uma vida digna para as populações do mundo.

Diante desses dilemas, o feminismo, em reiteradas oportunidades, tem oferecido a mirada da economia feminista, que insistentemente vem trazendo a perspectiva de um mundo igualitário e falando em colocar “a vida no centro”. Talvez seja o momento de ouvir essa voz…

Notas:

(1) A autora é Coordenadora do Instituto EQÜIT –Gênero, Economia e Cidadania Global, forma parte da Rede de Gênero e Comercio e é membro da Coordenação da REBRIP -Rede Brasileira pela Integração dos Povos.

(2) Diversos artigos Rebrip -http://www.rebrip.org.br/

(3) Marciano Silva e Leonardo Melgarejo https://mpabrasil.org.br/noticias/artigo-ogms-15-anos-no-brasil-em-epoca-de-coronavirus/

(4) ISP-PSI. Adhemar Mineiro.”Acuerdos comerciales entre la UEylas Américas:Algunos elementos comparativos”.SP. Abril 2019

(5) www.deolhonaspatentes.org\GTPI -REBRIP

(6) Rodríguez, Graciela, Org.“O sistema financiero e o endividamento das mulheres”. Inst.EQUIT\Rede Gênero e Comercio. 2020.

(7) Espino, Alma. “Una mirada feminista sobre una región convulsionada”. Red de Género y Comercio. 2019. Bs As.

(8) Mariana Mazucatto http://obela.org/nota/la-triple-crisis-del-capitalismo

(9) Sanchis, Norma. –Org. “Mujeres ante la crisis: Endeudarse para vivir”. Red de Género y Comercio. Buenos Aires. 2019.

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