Por Larissa Cabral
Especial em 11 capítulos
Parte 7/11
Continuação do Capítulo 2: Amarras coloniais e reflexos seculares
REPÚDIO INTERNACIONAL – A reação internacional, em relação ao golpe, foi intensa. No dia 5 de julho, Honduras foi excluída da OEA, por 33 votos de 34 possíveis. Mais de dez nações latino-americanas, assim como todos os países-membros da UE concordaram em retirar seus embaixadores de Honduras até que Zelaya voltasse ao poder. Outras reações foram relatadas pela agência Reuters: a Venezuela suspendeu o envio de petróleo ao país e os vizinhos de Honduras – El Salvador, Guatemala e Nicarágua – suspenderam o comércio por terra por 48 horas. O Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento interrompeu seus empréstimos ao país.
Internamente, Honduras sofreu uma divisão entre os que eram contra o golpe e os “golpistas”. Os hondurenhos que se posicionaram contra formaram um grande e poderoso movimento: a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP). A entidade agrupa uma grande variedade de setores já organizados, como a maioria das organizações camponesas, indígenas, de trabalhadores, sindicatos, jovens, de artistas e de meios de comunicação, como a Radio Globo, o jornal El Libertador e o Canal 36. É uma organização com peso social e político de massas, com quase mil delegados e membros, inclusive, do chamado Departamento 19 (D-19), formado por hondurenhos, que vivem no exterior e que, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas, chega a movimentar 2 bilhões de dólares por ano. A FNRP, contudo, ainda não configura um partido político, mas um fenômeno social muito complexo.
Em termos práticos, em Honduras há dois tipos de resistência. Um é a FNRP, que funciona como uma instância, que pode hospedar sindicatos, grêmios, políticos, partidos; e há a resistência como fenômeno, um movimento “em resistência” há muitas décadas. “As mulheres, por exemplo, têm resistido à forma patriarcal de governo, os jovens têm resistido à discriminação da juventude, os homossexuais têm resistido aos maus tratos e à discriminação, assim como os indígenas, os garífunas e outros setores marginalizados”, explica o jornalista Gustavo Cardoza. Esse segundo tipo de resistência se mantém não só por causa de uma conjuntura pontual, mas sim por ser contra a estrutura dos governos, as más práticas dos políticos e a cultura de corrupção.
Após o golpe, Honduras mergulhou em uma crise política, que afetou diversos setores como o econômico. Na busca por uma solução, a OEA nomeou o presidente da Costa Rica, Oscar Arias, como mediador de um processo de diálogo. Nessa posição, Arias propôs o pacto de San José, que pretendia restituir Zelaya à presidência, ainda que com poderes executivos limitados. O acordo também pretendia dar anistia política a ele e antecipar as eleições de novembro, entre outros pontos. Dessa maneira, iniciou-se uma tentativa de conciliação entre o presidente deposto e o governo ilegal de Micheletti.
O impacto negativo que esse acontecimento histórico causou a Honduras foi bastante forte. Glória Oquelí lamenta um dos piores: na época do golpe, por exemplo, estava para ser assinado um acordo entre a região centro-americana com a européia, que representaria um pilar importante para a política, diálogo e defesa dos direitos humanos. Seria uma cláusula absolutamente democrática e benéfica, mas que foi impossibilitada pelo golpe.
Também é possível observar a influencia desse fato nas relações sociais de Honduras. Criou-se um ambiente social e psicológico de permissividade, que afeta tanto a estrutura do Estado, como o comportamento das pessoas. Na opinião da jornalista Diana Canales, já é possível ver que há coisas elementares que a população não quer respeitar porque viram que é possível desrespeitá-las. A impressão dada é que é possível romper com a normatividade, com tudo. “A polícia se comporta dessa maneira, assim como as pessoas na rua. As relações pessoais são mais autoritárias.”
O chefe das Forças Armadas Romeo Vásquez Velásquez tenta se justificar. Ele acredita que há feridas profundas no povo devido à crise política que envolveu os hondurenhos e por isso ele defende a ideia de que é necessário conhecer a cultura militar, que não tem nada a ver com o âmbito político e nem ideológico. “A atitude de tirar Zelaya de sua casa e seu país foi um cumprimento de ordens dadas às Forças Armadas pela Corte Suprema de Justiça, sem relação com o setor militar.” Para ele, os executores apenas se limitam a cumprir ordens dadas pelas autoridades competentes e a ordem era evitar as mortes a todo custo. “O que acontecia é que, às vezes, faziam registros de casos isolados e era isso que os meios de comunicação informavam, mas talvez não tenham se dado conta da verdade, que eram poucos os problemas que havia aqui”.
A crise política, de certo modo, aflorou o senso crítico da população que, desde o primeiro dia, se mostrou ativa nos protestos em busca de justiça e pela defesa da democracia. Ricardo Salgado Bonilla confirma que, durante o golpe, havia denúncias de abusos constantes e vindas de diversas regiões do país. Um fator decisivo para sua divulgação foi a atuação dos poucos meios de comunicação alternativos e independentes, que abriam espaço para aqueles que queriam se informar e buscavam notícias que os meios tradicionais se negavam a dar. “Honduras estava em todas as manchetes do mundo, depois do golpe, e ficou assim por quatro ou cinco meses. Depois, foi sendo esquecida”, lamenta Salgado.
Nesse contexto, em qualquer lugar do mundo, os meios de comunicação exercem um papel fundamental. Em Honduras, os veículos mais poderosos são antigos, tradicionais e posse da histórica oligarquia do país. Com isso, assim que se deflagrou o golpe, o maior desafio era romper o cerco midiático e ele foi encarado pelo povo, sobretudo, e por alguns meios alternativos, que serviam como um canal para a verdadeira resistência. Como conseqüência dessa postura meios de comunicação foram invadidos, fechados, censurados e profissionais agredidos e ameaçados.
Com a ajuda da internet, firmaram-se pontes de solidariedade e comunicação, que conseguiram levar ao mundo a notícia de que, em pleno século XXI, houvera um golpe de estado na America Latina, ainda que a maioria dos veículos noticiosos preferissem informar insistentemente sobre a morte de Michael Jackson, que ocorrera 3 dias antes do golpe. Uma dessas pontes veio até o Brasil e criou laços com catarinenses. O jornalista e historiador Celso Martins, por exemplo, abrigou o jornalista hondurenho Ronnie Huete em sua casa e, antes disso, criou um blog específico para tratar do tema, o Honduras é logo ali!, que chegou a ter quatro mil acessos diários. Para Martins, a Radio Globo e a Rede FIAN foram fontes essenciais de informação. “Naquele momento da resistência contra o golpe, o pessoal se engajou totalmente, enquanto foi necessário.”
A relação de Celso Martins com Honduras começou no dia da tentativa de retorno de Zelaya a Honduras, em 5 de julho, enquanto assistia ao noticiário. Ele não lembra como ficou sabendo da existência da Radio Globo, mas assim que soube, sintonizou-a via web. No site da rádio, ouviu as denúncias e o povo pedindo o retorno do presidente. “O que me sensibilizou foram aquelas vozes, de pessoas simples e sedentas por mudança.” A partir daquele dia, o jornalista se sentiu emocionalmente comprometido com aquela luta. “Senti que não era uma coisa ideológica, mas espontânea e séria, de pessoas que não tinham aceitado o golpe.”
Em seu blog, a preocupação fundamental era a violação dos direitos humanos, de um modo geral, e o cerceamento da atividade dos colegas jornalistas. Ele procurou nunca entrar em aspectos ideológicos, como a relação de Zelaya com Chávez, e condenar ou não o papel dos EUA. A luta pela redemocratização de Honduras saiu daquele território e viajou até o Brasil, mais especificamente Florianópolis, onde foi feito o primeiro ato de solidariedade ao povo hondurenho.
No dia 25 de setembro de 2009, na Esquina Democrática, em Florianópolis, o Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina promoveu, com o Portal Desacato e a revista Pobres e Nojentas, uma manifestação de apoio ao povo hondurenho, e reuniu assinaturas pedindo o retorno de Manuel Zelaya e em defesa da liberdade de imprensa e de expressão em Honduras. Essa atividade foi narrada, cinematograficamente, em uma passagem do filme De um golpe, Honduras, dirigido por Aline Razzera Maciel e Pepe Pereira dos Santos, escrito e realizado em Florianópolis.
Após o ensaio de retorno frustrado a Honduras, no dia 5 de julho, quando foi assassinado o primeiro resistente, o jovem Isis Obed Murillo, Zelaya retornou clandestinamente ao país, no dia 21 de setembro, quase três meses depois de ter sido retirado da presidência. Na capital hondurenha, o presidente deposto abrigou-se na embaixada do Brasil.
Durante a madrugada do dia 22, de acordo com a Folhapress, o governo ilegal cortou o fornecimento de luz, telefone e água na embaixada, casa de dois andares, que passou a atuar como refúgio, mas também cárcere de Zelaya. Além dele, estima-se que lá havia, primeiramente, 313 pessoas e depois, 70, que ficaram dependendo de um gerador de energia a diesel.
Nesse dia, houve uma manifestação pró-Zelaya em frente à embaixada, com a participação de aproximadamente quatro mil pessoas, que resultou em novos confrontos. Soldados lançaram gás lacrimogêneo e balas de borracha contra a multidão. A repressão desse dia fez mais uma vítima: a estudante de Direito, Wendy Elizabeth Ávila, de 24 anos, que sofria de asma e teve complicações em seu sistema respiratório devido às bombas. Cerca de 150 pessoas foram presas por “desrespeito ao toque de recolher e por participação em distúrbios”, como o ataque a veículos das forças de segurança. O confronto foi violento e várias pessoas saíram gravemente feridas.
Para o analista político Ricardo Salgado Bonilla, a ida de Zelaya à embaixada era algo inesperado, mas ele o fez, com o objetivo de conversar e negociar. “Ele é um homem que dialoga, que procura esgotar todos os meios possíveis, mas Honduras não é um ambiente de diálogo.” Manuel Zelaya deixou a embaixada do Brasil, no dia 10 de dezembro de 2009, depois de mais de quatro meses do seu turbulento retorno. O presidente deposto embarcou, junto com sua esposa e filha, para o exílio na República Dominicana.
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