Por Tereza F.
Quando se fala em violência contra meninas e mulheres, a primeira ideia que vem à cabeça é a violência física. Agressões físicas, estupros e feminicídios são as formas de violência contra as mulheres mais conhecidas. Mesmo assim, esse tipo de crime é minimizado e suas motivações distorcidas. Não é à toa que é muito comum ouvirmos de pessoas conhecidas ou lermos nas redes sociais sentenças do tipo “algo ela fez” e “com essa roupa, a essa hora, nesse lugar, queria o que? , em relação à mulher ou menina vítima, e “ele deve ter perdido a cabeça” ou “algum motivo ele tinha pra fazer isso”, em relação ao homem agressor.
E, se é assim, culpabilizando vítimas e desonerando agressores, que nossa sociedade trata a violência direta física contra meninas e mulheres, aquela que está escancarada e não há como deixar de ver; o que dizer em relação à violência não física, mas que também é direta? Trata-se aqui da violência invisibilizada, que ocorre no espaço social com muito mais tranquilidade e tolerância.
No início da madrugada de domingo para segunda, um programa de entrevistas de um canal de TV aberta protagonizou um exemplo desse tipo de machismo, que pode ter passado sem maiores estranhezas para a maioria das pessoas que o assistiu.
A entrevistada era Manuela D’ávila, deputada estadual pelo PCdoB do Rio Grande do Sul e pré-candidata à Presidência da República; na mesa, quatro jornalistas, entre eles três homens.
Já de saída, notava-se um certo tom ácido, por assim dizer, com que as perguntas eram dirigidas à deputada; mas, isso pode ser só uma impressão, não é, mesmo? Fato é que, dali em diante, durante todo o programa, que durou aproximadamente 50 minutos, o que se viu foi um festival de interrupções masculinas às respostas da entrevistada. Entre pequenas, quase imperceptíveis e grandes interrupções, a fala de uma mulher foi atravessada por intervenções masculinas, em torno de sessenta vezes. Isso significa, em média, mais de uma interrupção por minuto.
A fala dela foi atravessada em torno de sessenta vezes. Mais de uma interrupção por minuto.
O objeto dessas interrupções? Os mais variados: discordâncias, correções, explicações sobre perguntas dos entrevistadores ou respostas da interlocutora; e, inacreditavelmente, houve até mesmo uma reclamação: “a senhora ainda não respondeu à minha pergunta”; ao que ela foi obrigada a comentar que era impossível concluir um raciocínio diante de tantas interrupções.
Em dado momento, o festival machista chega ao ponto de um dos entrevistadores, em tom levemente jocoso, classificar a entrevista de “animada” e, mais adiante, usar a frase “pode beijar, mas não pode penetrar”, de clara conotação sexual em um contexto que, nem de longe, tinha cunho sexual, instalando um mal estar no ambiente que constrangeu, inclusive, seus colegas.
É bom que se diga que uma das características do programa de entrevistas em questão é a de imprimir um ritmo ligeiro entre perguntas e respostas, além de uma preferência por não se afastar de temas polêmicos que envolvam o entrevistado da vez. Quem acompanha sabe disso e não tem sido diferente na série de entrevistas com pré-candidatos homens à Presidência da República.
Mas não se trata disso. O que aconteceu no último programa, em que uma mulher era a entrevistada, foi a subida desse tom bem além da conta, aliada ao conforto em que homens se colocaram para, a partir dele, interrompê-la constantemente, como se sua fala e suas ideias fossem o que menos importasse naquele momento. Para uma entrevista jornalística, por motivos óbvios, isso pode parecer um contrassenso, mas foi assim que ocorreu.
Isto é violência de gênero. É violência contra a mulher. Este tipo de comportamento é machista e tem nome:
Manterrupting: é o comportamento masculino machista que ocorre quando uma mulher é impedida de concluir seu raciocínio, ou mesmo de falar, em razão das sucessivas e deliberadas interrupções de homens. Foram quase sessenta interrupções em cinquenta minutos, durante a entrevista.
Mansplaining: é o comportamento masculino machista que ocorre quando um homem se coloca na posição de explicar coisas óbvias a uma mulher, sem que ela tenha pedido, como uma pergunta que acabou de ser feita por outra pessoa, por exemplo, como se ela não tivesse suficiente capacidade para compreender o que lhe está sendo dito; também ocorre quando um homem discorda de uma mulher sobre fatos que ela conhece melhor do que ele, como sua própria opinião ou algum tema em que ela (e não ele) é especialista, por exemplo.
Manterrupting e mansplaining, juntamente com bropriating (apropriação das ideias de uma mulher, por um homem) e gaslighting (abuso psicológico de um homem contra uma mulher, tentando fazer lá parecer louca ou desequilibrada) (N. Ed.: ver traduções sugeridas), são violências de gênero classificadas como micromachismos e ocorrem frequentemente em ambientes dominados por homens, como algumas áreas de atuação (a política ou o trabalho, por exemplo). São utilizados como forma de diminuir, neutralizar ou impedir a atuação e a influência das mulheres nesses espaços. Nesse tipo de circunstância, homens se colocam numa suposta posição de superioridade, em franco exercício de não menos suposto poder, e, desse lugar, tentam dominar a situação.
Geralmente, a intensidade desses micromachismos é diretamente proporcional à capacidade e/ou competência da mulher alvo; quanto mais ela tiver destaque em determinada área socialmente entendida como masculina, mais ela sofrerá os micro machismos e estes serão mais frequentes e intensos.
Na política nacional, isso não é diferente. Muito antes pelo contrário, a política é cenário fértil para esse tipo de comportamento machista; nele, a prática é cotidiana. As mulheres que atuam nesses espaços sabem muito bem do que se trata.
No início da madrugada de domingo para segunda, tivemos um claro exemplo na TV aberta brasileira. Alguém viu? Quem notou? Muitas mulheres certamente notaram. E, não, senhor jornalista, não foi uma entrevista “animada”. A menos que ela tenha sido animada sob a perspectiva de um espetáculo machista.
E, apenas para não deixar passar batido, sobre a frase de conotação sexual absolutamente descolada do contexto em que foi dita, importa dizer que é desnecessário explicar a torpeza do simbolismo que ela carrega, porque, no mínimo e muito gentilmente, sua frase é démodé.
Aguardemos a entrevista com Marina Silva, pré-candidata à Presidência da República pela REDE Sustentabilidade, que acontecerá no próximo programa. Espera-se que, para essa e futuras outras entrevistas em que se tenha uma mulher como interlocutora, se não for por desconstrução de machismo (que, talvez, não haja tempo hábil para tanto), pelo menos, por uma questão de isenção, seja dado a elas o mesmo tratamento que recebem os homens entrevistados no programa.
Se esta pequena regra for observada, certamente haverá menos interrupções e a entrevistada poderá falar, expor suas ideias, concluir raciocínios. Afinal, este não é o maior objetivo de um programa jornalístico? O de informar a população acerca de fatos e pessoas?
Imagem destacada: Women Interrupted App
Fonte: Casa da mãe Joanna