Hoje é o Dia do Teatro do Oprimido? Sim. E não.

Hoje é o aniversário de 90 anos do ser humano mais importante para o mundo do teatro, em minha opinião. Viva Augusto Boal.

Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.

Reproduzo uma entrevista concedida recentemente, traduzida ao português e originalmente publicada na Revista Europea de Educación para la Transformación.

O que é o Teatro do Oprimido?

É uma das mais importantes expressões mundiais de como realizar um teatro popular: por, para e com o povo.

Como foi que tudo começou?

Durante muitos anos, quando eu comecei a “fazer teatro”, participar de oficinas de teatro e deixar de lado a timidez para subir num palco e interpretar um texto teatral, eu dizia que fazia Teatro Popular. Popular era o nome do teatro que nós fazíamos, na cidade onde eu morei quase toda a minha vida, Olinda. E que se confundia, felizmente, Teatro Popular com Teatro de Rua, no Nordeste do Brasil.

Do Oprimido?

A palavra Opressão ainda é muito válida, mas foi mais usada no século passado, principalmente pelos movimentos sociais brasileiros que já a mencionavam no plural: um complexo sistema de opressões sobre as camadas mais empobrecidas (não pobres; e sim “empobrecidas”) da sociedade. Esse sistema, não somente econômico e político, deveria ser derrotado e substituído por uma intenção de desopressão. Liberdade, como costumo resumir.
No TO, Boal falava muito em desautomatização, da nossa vida muito mecanizada e carregada de opressões. A mulher livre e o homem livre renasceriam desse processo de conscientização, de que passamos nossas vidas interpretando um papel muitas vezes imposto pela sociedade. Já que estamos fazendo teatro o tempo todo, pois que seja em outro sentido: o de desoprimir. Liberdade, enfim.

Paulo Freire?

Nesse sentido, o brasileiro Augusto Boal, influenciado pela pedagogia de outro brasileiro importantíssimo para o mundo, Paulo Freire – autor de Pedagogia do Oprimido, criou o que eu considero um marco teórico e prático (juntos, como Práxis) de fazer teatro.
Em minha opinião, Boal revolucionou a forma como o mundo ocidental estabelecia um diálogo entre teatro e sociedade, indivíduo e coletivo.
Eu costumo dizer que eram dois grandes filósofos da cultura. E que esse encontro genial, entre os dois, somente poderia dar-se num país carregado de dualidades, como o Brasil.

Quem foi Augusto Boal?

Um gênio. Um grande filósofo. E, principalmente, um leitor incansável. Só um grande leitor é capaz de construir, na arte, uma linguagem própria. Com atenção para um detalhe “Freireano”: A Leitura do Mundo antecede a Leitura da Palavra. E Boal dedicaria um texto belíssimo (no livro sobre a Estética do Oprimido), sobre o que eu chamo de “maravilhamento da palavra”.

Ele foi um dramaturgo brasileiro que fez do exílio (durante a ditadura militar brasileira), em toda a sua desgraça, um profundo momento de reflexão, de práxis e de criação. Transformou-se absolutamente, irradiando possibilidades – sempre abertas – de muitas outras mudanças.

Você conheceu o Boal no Brasil?

Pessoalmente, não. O vi uma vez numa Palestra (assim como vi um dia uma Palestra de Paulo Freire, em Pernambuco). Engraçado como chamavam de Palestra, o que era, de fato, um diálogo aberto.
Mas devo confessar que, inicialmente, não dei muita importância ao Boal. O meu “amor à primeira vista” fez-me apaixonar por outra “etiqueta”: o Teatro do Absurdo. Só tinha olhos para Antonin Artaud, para Esperando Godot (meu primeiro papel), Becket, Martin Esslin, Ionescu, Jean Genet… Logo descobri que o sistema patriarcal, claro, escondia muitas dramaturgas até melhores que muitos desses. E foi assim que eu fui seguindo o meu próprio caminho até que descobri, no Brasil, um espanhol chamado Fernando Arrabal.

E daí a Boal?

Eu nem imaginava que todos aqueles caminhos me levariam a um mesmo destino: a Augusto Boal. Além disso, eu estava muito influenciado pelos dramaturgos pernambucanos que faziam um “teatro popular e regional” (Suassuna, principalmente), mais próximo ao que eu tinha como expectativa, na cidade onde eu morava: basicamente teatro de rua. Entretanto, absolutamente panfletário, político, no movimento sindical.
Até chegar ao ponto que hoje me arrependo de um desprezo rebelde e juvenil pela técnica. Além de que para a maioria dos trabalhadores (eu era dirigente sindical e militante do movimento estudantil ao mesmo tempo), o teatro sempre foi uma coisa cara, tanto como espetáculo como formação e requeria muito tempo. Todo aquele tempo que nós pensávamos que não tínhamos e, na verdade, era somente uma questão de prioridade.
Anos depois, descobri todas as semelhanças e “ganhei tempo”. E talvez por isso hoje eu tenha tanta dificuldade de separar todas as formas de teatro que valorizam as experiências de vida. Para Boal, Teatro e Vida sempre se confundem. Eu concordo muito com isso. Foi assim que eu cheguei ao Teatro Vivencial, lá em Pernambuco.
Mas a grande epifania foi descobrir que temos mania de seguir botando etiquetas, teatro disso ou daquilo, quando na verdade, a base é clássica e por isso muito forte.
Picasso e Dalí tiveram que alcançar a excelência no classicismo, até mesmo pra depois poder renega-lo e fazer o que quisessem: transgressores, em liberdade total.

Foi assim que você entrou numa formação de Teatro do Oprimido?
Sim e não.
A primeira formação de TO que eu pude fazer, pois sempre achei cara demais para o que eu podia pagar (até hoje; o que me deixa mais triste), ficou pela metade. Se bem que eu sempre digo que as pessoas deveriam reconhecer todo o esforço desses artistas e formadores que se dedicaram durante muitos anos e agora estão passando por um momento muito difícil para todo o mundo da cultura.

E depois de emigrar?

Anos depois, já morando em Barcelona, eu decidi voltar a aprofundar não somente meus conhecimentos, mas a minha práxis de TO. E, por incrível que pareça, comecei a descobrir mais oferta de TO (e muito bem feita!) fora do Brasil do que no meu próprio país. Começando por Paulo Freire que sempre foi muito mais valorizado fora do que dentro do próprio país, com exceção de toda a comunidade educativa que já reconheceu nele a melhor saída para a crise de valores que atinge todas as escolas. A pré-história do TO, Freireana, é tão importante quanto o próprio legado histórico de Boal.
Naqueles dias, logo que cheguei à Barcelona, quando criamos o Coletivo Brasil Catalunha, eu prometi a mim mesmo preocupar-me com uma coisa: toda vez que eu saiba que alguma pessoa que quer fazer teatro e precisa de ajuda (financeira, principalmente), farei de tudo para que esta pessoa não fique de fora de nenhuma atividade onde eu esteja e possa colaborar.

Pode falar um pouco mais sobre o Teatro Vivencial?

A formação que eu fiz e que eu não entendo como não chamaram também de Teatro do Oprimido, por todas as semelhanças, objetivos e métodos, foi de Teatro Vivencial. O nome diz tudo: as vivências ganham um papel fundamental. Pensando bem, o que nos fez não adotar o “rótulo” de TO, foi um profundíssimo respeito a todo o trabalho, à história de vida e ao imenso legado de Boal.
Em Barcelona, sim, pude participar de algumas formações, pude atuar como formador de Teatro Vivencial – aproveitando momentâneas viagens de aprendizagens à minha cidade, Olinda.
O Teatro Vivencial é o teatro que haveria desenvolvido Paulo Freire se não houvesse escolhido a pedagogia em vez da dramaturgia. E hoje em dia já se descobre até mesmo esse interesse do próprio Paulo e seus diálogos interessantíssimos com Boal.

Seguiu formando-se, portanto, em Barcelona?

Sobre o TO, especialmente, nunca me esquecerei das vezes que conheci Julián, filho de Augusto Boal, forte e intenso (e ao mesmo tempo “doce” como dizem que sempre foi o seu pai). Uma experiência muito renovadora e motivadora. Foi na melhor escola de TO de Barcelona, em minha opinião, o Forn de Teatre Pa Tothom, onde a palavra Forn se traduz por padaria e Pa Tothom é outro jogo de palavras que significa Para Todos. No Pa Tothom conheci Montse e depois Jordi Forcades, que acho que são irmãos e fui bem acolhido por eles. Primeiro eu tive um choque, um bom choque cultural, necessário pela força de sua expressão. Logo passei a recomendar a todas as pessoas, brasileiras principalmente, que me perguntam onde fazer TO em Barcelona – que tem muita oferta de excelente qualidade. Eu nunca tive uma escola de teatro e, como eu trabalhava perto deles, no Raval, bairro de maior imigração, no Centro de Barcelona, passei a frequentar Pa Tothom o máximo que eu pude – pois eu moro no interior da Catalunha.

E hoje em dia você faz formações?

Tenho tanto respeito por Augusto Boal que sigo chamando as formações que eu ofereço como Teatro Vivencial. Eu gosto muito de falar do que eu vivi mais intensamente. E o Vivencial remete a um nome: um grupo chamado Vivencial Diversiones que eu conheci muito jovem, em Olinda, minha cidade.
A formação de TO sempre será, respeitosamente, algo muito profundo. Requer um trabalho que necessita mais tempo e muita (muita!) Práxis. Eu que já passei pelo mundo acadêmico costumo dizer que o TO merecia ser uma Pós-graduação, onde se fosse por mim eu daria já o título de Doutor a muitos mestres – que a universidade da vida formou mais que em muito espaço meritocrático.
O TO é, realmente, algo ainda hoje tão forte que a primeira vez que eu ofereci uma proposta de oficina de teatro, naquele tempo, sem maiores sobrenomes, ou apelidos, todas as participantes só queriam saber de Boal e de Freire. E claro que são sempre irresistíveis. Nunca se sabe quando um sai de cena e o outro passa a atuar. Eu ouso dizer que é uma mesma obra. Aprendi com uma professora chamada Tânia Baraúna, aqui em Barcelona, num lugar chamado Casa Criativa. Leiam ela. Leiam Tânia!

Então, como se oferecem estas formações, hoje em dia?

Tal como acabei de dizer. Muito Freire e muito Boal. E muito “trabalho emocional” (menos intelectualismo patriarcal). Não menos teoria, pois o acesso está felizmente cada vez mais possível, aqui principalmente. E a teoria, como dizia Freire, é nossa pois é conhecimento construído coletivamente, sem “patentes” nem certificado de propriedade intelectual. Por isso, oferecemos CPE: Certificado de Propriedade Emocional. Mas, sobretudo, mais Práxis. E alteridade, pois se aprende mais (a conhecer suas próprias potencialidades) com o jogo de espelhos do que tudo. Por isso, explodiu o Teatro em Casa, recentemente. Só eu ofereci meia dezena de formações grátis, online, voluntariamente, durante o confinamento. Porém, absolutamente insuficiente diante da demanda que aumenta e da diversidade de oferta que sempre existirá. Haverá Boal ainda por muitos 90 anos!

Publicaremos esta entrevista no dia do seu aniversário, nos 90 anos de Boal.

E não esqueçamos, por favor, que 2021 é o ano do centenário de Paulo Freire.
Os seus livros estão em todos os idiomas que você possa imaginar, em todas as bibliotecas. Além de entrevistas, vídeos e documentários diversos, pela Internet. Logo, como valorizo muito as vivências de cada pessoa, não conheci (até hoje) ninguém que ainda não soubesse algo sobre a dramaturgia, o teatro (da vida, que é quase o mesmo).

Uma última mensagem?

A grande questão é essa: aproveitar aquilo que a gente já sabe – e até pensa que não sabe, a motivação e a força dessa expressão artística tão potente e ao mesmo tempo tão historicamente maltratada, o teatro.

Então, poderias concluir dizendo-nos como participar?

Como há tantas coisas acontecendo e eu particularmente percebo que os interesses aumentaram com a Sindemia do Covid, deixarei o meu e-mail [email protected], o meu Facebook @quixtemacunaima e o meu Instagram @1flaviocarvalho que tem o mesmo endereço do meu Twitter, @1flaviocarvalho.

Aquele abraço. Grato, por tudo. Viva Boal.

Flávio Carvalho é sociólogo, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya

@1flaviocarvalho, sociólogo e escritor. @quixotemacunaima (siga-me no Facebook).

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