No final do século passado, prestes a fazer 7 anos, minha avó, com sua família, aportou ao Brasil e foi viver no lugar onde, hoje, existe a Usina Palmeiras. Foi lá que ela passou a sua infância, e mais de sessenta anos depois, ela contava as histórias daquela época com grande precisão.
Não sei como eles chegaram ao lugar onde foram morar – o que sei é que lá chegando, meu bisavô apressou-se a fazer uma casinha de palmitos e abrigar a família dentro. Na mesma noite em que lá se abrigaram, caiu violenta trovoada, coisa que não havia sido prevista, e a água da chuva, descendo morro abaixo, correu por dentro da casinha tanto quanto por fora. A noite foi um pesadelo, e minha avó sempre se lembrava disso, de como seu pai, na manhã seguinte, apressou-se a abrir valas em volta do abrigo, para que outra trovoada já os encontrasse prevenidos.
Com o tempo, as coisas foram se ajeitando. Sua primeira casa no Brasil ganhou uma mesa provinda de um tronco cortado ao meio, e cadeiras, que eram pedaços de troncos de árvores. Possuíam um rústico fogão de pedras, um baú, que viera com eles da Lituânia, alguma louça, algum conforto. Rapidamente, aprendiam a sobreviver na floresta amiga e hostil ao mesmo tempo, floresta povoada por animais perigosos e índios em pé-de-guerra. Quando meu bisavô teve a sorte de matar um porco-do-mato, foi uma festa. Preparam a carne que duraria muito, defumando-a, e aí surgiu um novo problema: onde guardá-la? Deixá-la dentro da casinha era um risco: quando saíssem para o trabalho na roça, era quase certeza que os índios espiariam por ali e roubariam aquela carne preciosa, certeza de sobrevivência. Foram criativos, então: meu bisavô achou uma velha árvore oca em plena floresta, e escondeu a carne defumada lá. E o que aconteceu? Aconteceu que os índios não roubaram a carne, mas os cachorros do mato descobriram-na e comeram-na toda. Mais de sessenta anos depois, quando contava essa história, ainda era muito forte em minha avó a decepção que tinham sofrido.
A vida, porém, por mais dura que fosse, não perdera o brilho. Naquele ermo, a 30 quilômetros do povoado mais próximo, tudo era muito difícil, mas a magia ainda existia. Um dia, lá no meio daquela mata toda, chegou o primeiro Natal no Brasil. É claro que Papai Noel não acharia aquelas crianças perdidas na imensidão; é claro que não haveria Natal. Só que Papai Noel é poderoso, e não poderia deixar as crianças e ver navios.
Na manhã de Natal, sentaram-se à mesa rústica para a primeira refeição. Cada criança tinha o seu prato, a sua caneca e a sua colher. Naquele dia, contrariando o hábito, os pratos na mesa estavam emborcados. Meu bisavô esperou que todos sentassem, e então sugeriu que virassem os pratos para cima: maravilha das maravilhas! Debaixo de cada prato havia um doce-de-Natal, coberto de glacê branco e enfeitado com açúcar colorido, bem como os doces-de-Natal que ainda hoje se fazem na nossa região!
Tantas décadas depois, minha avó ainda se emocionava ao contar da descoberta daquele doce-de-Natal solitário sob o seu prato, num Natal longínquo perdido na luminosidade da sua infância dos seis anos (ela fazia aniversário a 21 de janeiro). Claro que com o passar do tempo, ela descobriu a verdade: meu bisavô fizera à pé os 30 quilômetros até o povoado mais próximo, apenas para buscar aqueles pobres doces-de-Natal que fizeram toda a diferença num primeiro Natal no Brasil. Fico pensando, agora, sobre a importância que aquele meu antepassado dava ao Natal, a ponto de andar 30 quilômetros de ida e 30 de volta apenas para não deixar passar em branco a data para as suas crianças. Talvez seja dele que eu tenha herdado esta minha paixão pelo Natal, tempo que, para mim, é o mais lindo do mundo.
Urda Alice Klueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.
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