Vivo em um vai e vem de estudos musicais. Quando paro pra descansar a cabeça das contemporaneidades aprofundo mais no passado musical brasileiro e das nuestras hermanas nações latino americanas. Me encontro agora no garimpo dos sons produzidos lá pelas décadas de 70 e 80. Acho que já comentei que sou usuária assídua do Youtube e sempre percebo movimentações novas nesse site, pessoas publicando sons e créditos de discos de vinil que guardam há anos, sites de resgate da memória cultural nacional, até mesmo canais de tv como Canal Brasil e TV Cultura, que têm um acervo riquíssimo das produções culturais de antigamente. Têm todo meu respeito e admiração as pessoas que disponibilizam seus acervos pela internet. Muchas gracias!
Alguns discos independentes são fundamentais na história musical brasileira e latino americana. Musicistas que falam do nosso povo, nossas riquezas naturais, nossos sentimentos mais singelos, nossas lutas eternas por justiça, igualdade, equidade. Divido com vocês o início de uma viagem rumo ao que há de mais rico e necessário na Música Popular Latino Americana.
Em algumas conversas com a Doroty Marques ela sempre afirma o caráter independente de seu trabalho. Trata-se de uma das primeiras mulheres no Brasil a produzir músicas de forma independente. A capa desse disco simboliza muito do que somos enquanto América Latina: trabalhadores do campo. Esse desenho foi criado no Presídio Político do Barro Branco – São Paulo em 1978 e descreve com fidelidade o conteúdo das canções interpretadas por Doroty. As músicas carregam mensagens de reflexão política por todo o álbum, contam histórias de lutas, além de exaltar a vivência nos interiores, as chuvas e geadas que acometem nossos cafezais.
Das mais belas obras musicais regionais da nossa história. O terceiro disco do mineiro Dércio Marques conta com participações especiais de sua irmã Doroty Marques, além de Diana Pequeno, Paulinho Pedra Azul, Parê e grupo Paranda. No repertório, muitas músicas dedicadas a figuras emblemáticas da música popular, sonoridades que nos levam aos mais longínquos interiores do Brasil e riquíssima mescla de elementos sonoros, como na música Fulejo (ritmos negros fundidos de Moçambique mineiro, samba rural do litoral, chula gaúcha, manha maranhense e cajón afroperuano). As canções retratam a preservação de valores e virtudes, a vida no campo, sons de passarinhos e a realidade de quem sempre viveu lutando por justiça e amores impossíveis. “Saudade, morena, sei que vou sentir, tenho um coração no peito, não posso ficar aqui, porque a polícia se espalhou no mundo inteiro e até hoje vive atrás de cangaceiro”.
Cátia de França representa pra mim um dos símbolos mais legítimos de resistência pela arte. Mulher negra paraibana compositora lançou Estilhaços em 1980 em parceria com outras gigantes da nossa música. Esse disco conta com participação especial de Clementina de Jesus e Pedro Osmar. A poeta se inspira em diversos outros poetas da nossa literatura nas letras e recita suas obras numa harmonia sonora incrível. Panorama traz uma metáfora genial da cidade grande, em que “tudo isso não faz inveja pra quem vem lá do sertão, bicho de qualquer qualidade soltinho na amplidão…” e Menina Passarinho é a descrição mais verdadeira de amor livre que já ouvi, “amor bom é o nosso, que sabe aceitar a hora da apartação”.
A Banda de Pau e Corda também faz parte dos sons necessários que melhor descrevem nossa história. Esse disco de 1973 traz causos, histórias, cenários, até o cheiro dos matos do interior dá pra sentir. Me gusta mucho a canção “Lampião”, uma poesia que ilustra a história do cangaceiro, diferente das perspectivas limitadamente negativas de sua existência. Roberto Andrade é uma grande inspiração como compositor e estudioso da cultura popular.
Contemplo aqui uma mulher que muito representa a música latino-americana. Outra guerreira que sempre falou sobre, pelo e para o povo. Em diversos registros que a internet nos traz dos shows de Mercedes Sosa percebemos que, além do espetáculo musical, ela trazia ricas referências sobre as inspirações das letras que interpretava.
Amplio meu olhar para músicas da América Latina por acreditar que a história do Brasil e de nossas hermanas latino americanas é a mesma. Disseram nos livros de história que fomos descobertos, mas na verdade fomos invadidos, explorados, estuprados. Porém nossa ancestralidade jamais se resumiu ou se limitará à glória das conquistas nortistas. Nosso povo sempre resistiu e resistirá com luta e sabedoria. Aquí se respira lucha!
Graças aos meus pais, esse disco da Banda de Pau e Corda esteve muito presente em minha infância. Hoje, beirando 45, Banco de Feira ainda me emociona: eu vejo o João chegando na feira e cantando suas lindas histórias. Lembro bem quando apresentei esse disco para minha esposa, multi artista, e o tanto que ela gostou. A trilha sonora da infância hoje é trilha sonora do nosso amor.