Uma semana após os dois atentados contra haitianos em São Paulo, nenhuma vítima dos disparos foi sequer procurada pela Polícia Civil. Feridos foram a pé até um posto da AMA e, quatro horas depois, encaminhados a um hospital. Lá, não tiveram os ferimentos tratados e permanecem com as balas alojadas no corpo
Por Lumi Zúnica, Ponte
Era noite do sábado 1 de agosto. Por volta das 20h00, Hudson Prohete, 28 anos, haitiano, retornava da escola dominical frequentada por imigrantes no bairro do Glicério, região central de São Paulo. Próximo dele, um casal da mesma nacionalidade conversava. Foi quando Hudson sentiu o que parecia ser o impacto de uma pedra na perna direita.
Segundos depois, viu sangue escorrendo na perna da mulher e percebeu que ele, o casal e outro homem tinham sido atingidos por balas, todas na região das pernas. Enquanto Hudson socorria a mulher, foi alvejado novamente.
Num português arrastado de sotaque francês, Hudson ligou para a polícia, mas o socorro nunca chegou.
Hospital não retira as balas
As vítimas, então, foram a pé até um posto da AMA (Assistência Médica Ambulatorial) na praça da Sé, a pouco mais de 300 metros do local do atentado. Lá, depois da realização de radiografias, foram informados que não havia recursos para atender os feridos.
Funcionários da AMA solicitaram três ambulâncias que, quase quatro horas depois, transferiram as vítimas até a Santa Casa de Misericórdia.
No hospital, receberam antibióticos, mas não tiveram os ferimentos tratados. Até a publicação desta reportagem, as vítimas ainda permaneciam com as balas alojadas nos corpos. Uma delas disse que sequer foram limpas as feridas, procedimento realizado pelos próprios haitianos quando retornaram para suas casas.
Mais vítimas
Durante sua permanência no AMA, Hudson afirma ter visto pelo menos mais três compatriotas feridos que chegaram procurando socorro médico. Segundo ele, um em estado mais grave foi baleado na região da virilha.
Outra vítima é o haitiano Joral Louis, 48 anos, que não fala português. Por intermédio de um tradutor, ele disse que os disparos partiram de um veículo de cor cinza. Não soube dizer qual a marca e placa do carro.
Até o sábado (08/08), a reportagem descobriu os registros de cinco haitianos vítimas de lesão corporal de natureza grave na 8ª Delegacia de Polícia (Brás), todos atingidos por disparos na mesma ocorrência. As outras três vítimas são Vilner Guervil, Michelet Saint Lous e a mulher Athice Luc.
Porém, relatos de Hudson e de outras testemunhas indicam que o número de pessoas alvejadas pode chegar a oito.
Segundo ataque
Ythel Jeune, 32, chegou do Haiti em 2011 e hoje é proprietário de um pequeno comércio na região do Glicério. Ele afirma que após os ataques da noite de sábado, outro haitiano foi atingido com disparos por volta das 10h do domingo (02/08).
Ythel tem dois filhos na escola e a mulher dele não quer que os filhos frequentem mais as aulas por medo dos atentados. Ele tem certeza que os ataques foram produto de discriminação. ” Se cortarem nossa pele vão ver que temos o mesmo sangue”, disse Ythel, indignado.
Hudson é da mesma opinião e pergunta porque com tantas pessoas na rua, só os haitianos foram alvejados. Depois dos disparos, ele ligou para a mãe no Haiti e disse que pretende voltar para a terra natal.
Investigação
O registro dos atentados na 8ª Delegacia de Polícia foi feito por guardas municipais que presenciaram a chegada dos estrangeiros no posto de saúde e foi lavrado sem a presença das vítimas.
Apesar do registro ter sido elaborado na 8º Delegacia, a investigação está sob responsabilidade da 1º Delegacia de Polícia (Liberdade). Até sexta feira (07/08), o delegado de plantão não sabia da existência do atentado contra os haitianos. Foi nossa reportagem que informou ao delegado de plantão os números dos boletins das ocorrências contra os estrangeiros. Nenhuma investigação tinha sido iniciada até aquele momento.
Os boletins de ocorrência divergem quanto ao tipo de munição empregada no ataque. Um dos BOs registrou o uso de arma de fogo enquanto outro consigna suspeita de se tratar de disparos de “chumbinho”.
Membros da comunidade haitiana afirmaram ser alvos constantes de discriminação racial e de ataques xenófobos.
“Já passaram carros jogando bombas contra nós”, afirmou um imigrante que não quis ser identificado. A mesma informação foi confirmada pelo funcionário de um comércio da região.
Prefeitura
A Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, em nota emitida às 18h40 de sexta-feira (07/08), informou que tomou conhecimento dos fatos e que está acompanhando a situação das vítimas. Na mesma nota, a Secretaria Municipal de Saúde informou que os haitianos baleados estão sendo atendidos na AMA Sé e que eles se encontravam internados no Hospital do Tatuapé. Porém, nossa reportagem apurou que nenhuma das vítimas foi internada.
Também segundo a Secretaria de Direitos Humanos, cinco homens e uma mulher receberam atendimento na noite de sexta-feira (07/08). Dois deles deverão voltar hoje (19/08) para extrair os projéteis. Quatro das vítimas não poderão ter as balas retiradas de seus corpos porque elas estão áreas mais sensíveis.
Até o fim da tarde de sábado (08/08), nenhuma das vítimas havia sido procurada por nenhuma autoridade policial.
Procurada, a Santa Casa de Misericórdia não se manifestou até a conclusão da desta reportagem.
Por telefone, no sábado (08/08), a Secretaria de Direitos Humanos desmentiu a própria nota e confirmou que não houve nenhuma internação.
Fonte: Pragmatismo Político.