Por Jane Regan y Milo Milfort/ IPS.
A audiência foi marcada para o dia 21 deste mês, quando mais uma vez o ex-ditador Jean-Claude Duvalier (1971-1986) se negou a se apresentar aos tribunais. A sala estava repleta de representantes de organizações locais e estrangeiras, jornalistas e algumas das 30 vítimas que processam Duvalier por violações aos direitos humanos.
Depois de escutar os argumentos do advogado de defesa, os três juízes emitiram uma ordem dizendo que era “imperativo” que o acusado comparecesse no dia 28, com escolta policial caso necessário.
As vítimas, entre elas Robert “Boby” Duval, prisioneiro do regime durante 17 meses em 1976 e 1977, que esteve na sede judicial, se mostraram cautelosamente esperançosos em relação à sentença.
“Se o sistema legal haitiano puder julgar um criminoso como Duvalier, isso significa as pessoas podem começar a ter um pouco de confiança”, disse Duval à IPS.
Faltou pouco para que Duval, hoje com 59 anos, morresse em Fort Dimanche, às vezes chamado de “o Auschwitz do Haiti”. Depois co-fundou uma organização de direitos humanos chamada Liga de Prisioneiros Políticos, Amigos e Familiares de Desaparecidos, e agora advertiu que a ordem judicial é apenas um pequeno passo.
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[Duvalier em 1980, quando estava no poder, ao lado de sua mulher]
A sessão desta quinta-feira (28/02) somente determinará se o governo iniciará uma investigação e começará a realizar audiências pelos processos das vítimas, disse.
Desde o repentino regresso de Duvalier ao Haiti em 2011, depois de 25 anos no exílio, “é quase como se o governo o estivesse protegendo, e isso é um problema, porque tem a obrigação internacional de julgá-lo”, considerou Duval.
Duvalier foi acusado, em 2008 e 2011, de crimes contra a humanidade. Mas no ano pasado, o tribunal repentinamente sentenciou que ele somente seria julgado por desvio de fundos, dizendo que os supostos abusos foram perpetrados há muito tempo.
Organizações de direitos humanos, vítimas e inclusive jornalistas criticaram a decisão, observando que, segundo o direito internacional, não tem nenhum estatuto que imponha limitações aos crimes contra a humanidade. A audiência desta semana é vista como a última oportunidade para as vítimas e a sociedade haitiana.
“O Estado tem a obrigação de garantir que não haja impunidade para as sérias violações aos direitos humanos cometidas no passado”, disse a alta comissária da Organização das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, em um comunicado divulgado no dia 21 deste mês.
Pillay ressaltou que Duvalier é acusado de supervisar “torturas, execuções extra-judiciais, desaparecimentos forçados e violações”. “Essas sistemáticas violações dos direitos humanos não deven ficar impunes”, continuou Pillay. “Todos os haitianos que sofreram estes abusos têm direito de ver que a justiça é feita.”
A ativista Marie Yolène Gilles, diretora de programas na Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos em Porto Príncipe, luta pela justiça no Haiti há duas décadas.
Jornalista na emissora radial destruída durante o golpe de Estado de 30 de setembro de 1991, levado a cabo em grande parte por ex-membros do antigo regime contra o presidente Jean-Bertrand Aristide, democraticamente eleito, Gilles se viu obrigada a se ocultar várias vezes ao longo dos anos. Não se mostra totalmente otimista sobre o compromisso do governo atual.
“Os que estão no poder sempre dizem que estão trabalhando pela democracia, pelo ‘Estado de direito’, mas se isso é verdade, devem enviar sinais claros”, disse à IPS.
Sinais contraditórios
Desde a repentina e suspeita volta de Duvalier ao Haiti em 2011 (chegou sem passaporte), os sinais do presidente Michel Martelly – confesso ex-integrante do grupo páramilitar “Tonton Macoute” durante o regime de Jean-Claude– não foram nada claros.
Martelly protagonizou uma visita pública ao ex-ditador e fez uma convocação à reconciliação. O governo deu um passaporte diplomático a Duvalier, argumentando que lhe correspondia por ser um ex-“presidente”.
No ano passado, apesar de uma ordem judicial que lhe impedia de sair de Porto Príncipe, Duvalier se transladou para Gonaives, a uns 100 quilômetros da capital, para assistir o ato comemorativo do segundo aniversário do terremoto de 2010. Sentou-se na primeira fila, ao lado do ex-ditador Prosper Avril (1988-1990), também acusado de violar os direitos humanos, e inclusive deu um aperto de mãos com o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton (1993-2001).
Com frequência, Duvalier é visto em restaurantes da moda com amigos e aliados políticos, alguns dos quais ocupam postos no governo.
No Haiti, muitos também criticam o governo dos Estados Unidos por não adotarem uma posição mais dura. Diferentemente da Organização das Nações Unidas e grupos de direitos humanos, Washington permaneceu em silêncio ou deu a entender que julgar o ex-ditador não é uma prioridade.
Em uma entrevista que concedeu em 2011 à rede CBS, a então secretária de Estado (chanceler) dos Estados Unidos, Hillary Clinton, disse que correspondia ao “governo e ao povo” do Haiti decidir sobre o destino do ex-ditador, que tinha antecedentes de “repressão”.
“Estamos centrados em tentar manter a estabilidade e impedir o caos e a violência neste período tão imprevisível com seu regresso”, enfatizou.
“Os países chamados ‘amigos do Haiti’ também têm sido muito tolerantes”, disse Duval à IPS. “Isso não acontece com outras nações. Isso é uma falta de respeito com o povo haitiano. Muitas pessoas morreram durante o regime de Duvalier”.
Com exceção de um breve período, o governo dos Estados Unidos apoiou a ditadura de 29 anos dos Duvalier (o pai de Jean-Claude, François, controlou o Haiti desde 1957 até sua norte, em 1971) com ajuda militar e o desenvolvimento, assim como um apoio direto ao seu orçamento.
O governo de Jean-Claude Duvalier também recebeu milhões de dólares de assistência (doações e empréstimos) do Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
“Não tem borracha para apagar o lápis da história”
A audiência de 28 de fevereiro é parte de uma apelação apresentada por um grupo de 30 vítimas e apoiada por organizações locais e internacionais de direitos humanos, muitas das quais tiveram representantes na sede judicial na semana pasada. Entre eles esteve Béatrice Vaugrante, da Anistia Internacional. “Jean-Claude Duvalier não pode estar além do alcance da Justiça” disse Vaugrante em um comunicado emitido após a ordem da semana passada.
“As autoridades do Haiti têm a responsabilidade de fazer tudo o que puderem para garantir que [Duvalier] enfrente os tribunais pelos abusos sistemáticos que ocorreram durante o tempo em que [ele] esteve no poder. Se continuar evitando a audiência, tem que ser preso”, acrescentou.
A ativista Gilles concordou. “Duvalier tem que ser julgado. Isso mostrará à população que as pessoas têm que pagar pelo que fazem. Ele tem que enfrentar todas as acusações e a sociedade deve saber porque ocorreram todos esses crimes, porque tantos morreram, porque torturaram pessoas em Fort Dimanche”, disse à IPS.
Gilles também citou um proverbio italiano. “‘Não tem borracha para o lápis da história’, e as pessoas estão olhando, anotando. Nunca deixaremos de reivindicar justiça”.
Fonte: Ópera Mundi