Como quase todo habitante de Porto Príncipe, nesses dias, Jean Casimir (1938) só sai se realmente for necessário. O risco de ser sequestrado pelas gangues que controlam a cidade, ou de ser atingido por seus tiroteios, faz com que fique trancado. “Eu vou ao supermercado comprar minha comida, tenho um ou dois amigos que visito e nada mais”, conta de sua casa.
“Além disso, há sérios problemas de saúde pública, você não consegue encontrar um médico. E se vai, vai com medo. Também não vou dar aulas, porque estou muito velho para correr. Explico-me. Os linchamentos que estão ocorrendo, nesse momento, são populares porque as pessoas já estão no limite. Inclusive, irritam-se com os jornalistas que dizem que não se pode linchar, que é necessário passar pelo processo jurídico. Francamente, não sei como vamos seguiremos em frente”, diz.
Aos 18 anos, Casimir emigrou para o México para estudar sociologia na UNAM, onde se envolveu com o marxismo latino-americano e, depois, com os pensadores da teoria da dependência. Com o tempo, tornou-se o intelectual haitiano de referência para todos os que participaram dessas correntes (“O quê? Jean Casimir ainda está vivo?”, comentou com este jornalista um contemporâneo seu).
No entanto, desde o início, percebeu um descompasso: aquele pensamento emancipatório olhava para seus povos com olhos muito europeus. Ele ilustra, entre gargalhadas, com esta anedota: “No meu primeiro ano de universidade, um professor muito importante começou a falar sobre a antropofagia dos indígenas do México. E eu lhe perguntei: ‘Qual é o problema, se vocês comem Deus todas as manhãs?’ O professor desaba! ‘Não, não é a mesma coisa’. ‘Como que não? Pergunte a qualquer cristão, esse é o corpo de Cristo, não é um pão. Então, não vejo qual é o seu problema, se um índio come um pedacinho de outro índio’”.
Casimir retornou ao seu país 30 anos depois, trabalhou por mais de uma década na sede caribenha da CEPAL, publicou seu clássico La cultura oprimida (1981) e foi embaixador do Haiti nos Estados Unidos (1991-1996), nomeado por Jean–Bertrand Aristide. Hoje, divide seu ano acadêmico entre a Universidade do Estado do Haiti e a Universidade Duke.
Na semana passada, participou remotamente do Festival do Migrante, organizado pela Universidade de Santiago do Chile, onde apresentou seu mais recente e, talvez, mais ambicioso livro: Una lectura decolonial de la historia de los haitianos, publicado em francês, em 2018, e agora traduzido para o espanhol, focado na cultura haitiana.
A entrevista é de Daniel Hopenhayn, publicada por La Tercera, 21-05-2023. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Pode-se dizer, lendo seu livro, que dedicou sua vida a entender um problema cada vez mais atual: os desencontros entre a sociedade e o Estado.
E eu explico o porquê. Meus professores no Haiti eram da primeira geração da negritude que chegou ao poder, com a chamada Revolução de 1946. E o instrumento de mudança para eles era o Estado, certo? Contudo, quando chego a participar das altas esferas do Estado, percebo que a mudança, como se diz em bom mexicano, pues mis cuernos [foi infiel]. Nenhuma mudança.
Compreender isso, então, será fundamental para nós, pois também é a época do desenvolvimentismo de Raúl Prebisch, acreditava-se que uma intervenção planejada poderia alcançar isso e aquilo. A minha geração vai compreendendo que a sociedade tem seu ritmo, tem seus passos e você não pode mudá-la como quiser.
Apesar da história recente do Haiti, com todos os dramas que conhecemos, você argumenta que falar de um “Estado falido” denota uma espécie de preconceito moderno.
Sim. E por que digo isso? Para começar, porque chamam de “Estado falido” algo que na Europa nem sequer chamariam de Estado, porque nada mais é do que uma máquina administrativa. Começou sendo a burocracia que a França enviava para administrar a sociedade de plantações. Depois, nós nos tornamos independentes e nossos grupos urbanos, os escravizados libertos que falavam francês, apoderaram-se disso e deram continuidade. Contudo, as pessoas continuaram fazendo suas coisas, nunca tomaram ciência, porque o sistema capitalista moderno – o que essa burocracia queria impor – não tinha nada a ver com seus modos de vida.
Então, o que sempre fracassou é isso: uma máquina de gestão que quer nos integrar à modernidade sem nos perguntar. E que tem um discurso de participação popular, mas entra em pânico quando o povo participa. Desse modo, fingem que mandam de cima, colocando gente sem qualquer legitimidade, enquanto o suposto Estado anda em círculos. Perdem tempo, mas vivem disso, porque assim capturam o que as províncias produzem.
Você vai mais longe: diz que a sociedade haitiana não só ignorou o poder público, como também criou a si mesma em oposição a ele.
Aí colocamos o dedo na ferida. Observe, o povo que vai nascer no Haiti não é, como os da América do Sul, um povo com tradições próprias que um dia é invadido e são totalmente desarmados. Aqui, são indivíduos soltos que trazem do Golfo da Guiné, de umas 24 nações diferentes, falando não sei quantas línguas, para trabalhar como escravos em uma plantação.
E a primeira coisa que se tem que fazer, ao chegar, é entender quem é esse senhor que tem tanto poder e te pega se você não fizer isso ou aquilo, que pode cortar o seu braço, marcá-lo como um boi, inclusive matá-lo. Ou seja, você tem que se crioulizar, conhecer as regras do sistema que o domina.
Contudo, após trabalhar o dia todo recebendo golpes, você vai para o barracão onde dorme e encontra outras pessoas como você que vão lhe ajudar, passar um pouco de óleo, consolar, enfim. Então, com esse senhor que talvez fosse o seu inimigo, na África, vão criando uma ordem social paralela, com seus próprios conhecimentos, para se opor ao sistema que os oprime. Mas, essa oposição é feita na vida privada, em crioulo.
Já a ordem colonial fala francês.
Claro, mas ouça: você continuará vivendo sob as regras da ordem colonial. Portanto, tem que lidar com o conhecimento dos dois mundos. Assim, nasce essa dualidade que dá forma à sociedade haitiana. Papa Legba, um dos deuses do vodu, é o deus do cruzamento de caminhos. Nós vivemos em um cruzamento de caminhos, e no vodu se sabe que o cruzamento é um lugar muito perigoso, porque passam muitas correntes.
Então, você usa as duas mãos: tem que falar com o diabo e com os santos. As pessoas sempre sabem que precisam lidar com as duas coisas. É a nossa grande diferença em relação à Jamaica e Barbados, ou aos negros dos Estados Unidos, que vivem dentro de instituições modernas. Nós tivemos que talhar instituições na vida comunitária.
A partir daí, que estruturas sociais ou visões de mundo vão surgir?
Bem, como essas pessoas estão se defendendo da aleivosia dos mais fortes, acabam tendo como principal valor o famoso Tout moun se moun, “toda pessoa é uma pessoa”. Ou seja, nós que éramos inimigos na África, junto com os piratas, os mouros, os judeus e todos que vieram correndo, decidimos que todos são pessoas que merecem respeito. Ou um negro, porque você também é um negro.
Como?
Se alguém, nesse exato momento, telefonar-me, eu vou dizer: “não, estou ocupado conversando com um negro muito importante”. Percebe? É uma forma de codificar que, aqui, somos todos pessoas, não há raças. Outro exemplo muito simples. Nós não podemos dizer “vós” ou “vocês”, a palavra não existe no crioulo.
Hoje, nós combinamos de nos conectar às 11h e eu me atrasei, certo? E você vai me dizer que “nós” chegamos tarde, mas você já estava. O que acontece é que você e eu, quando nos juntamos, nos tornamos um nós. Criamos tudo isso para nos proteger, para prolongar o pouco de vida que o sistema escravista nos oferecia.
A base é a tolerância, a reciprocidade. Tudo gira em torno de manter a alegria, o gozo da vida. E observe que, já no século XVI, há um bando de marginais europeus que fogem para a América à procura da mesma coisa. São os que buscam ilhas desocupadas para viver, como Tortuga. As pessoas criteriosas diziam que eram desregrados que passavam o tempo bebendo e vivendo com mulheres depravadas, justamente porque desfrutavam a vida, enquanto o sistema feudal europeu exigia outra coisa.
Contudo, você diz que a cultura haitiana se diferencia, sobretudo, do capitalismo moderno.
Sim, porque foi criando outra forma de individuação. Para nós, o indivíduo é um senhor secundário à comunidade. É um fraco, um desafortunado, porque sozinho não vale nem o ar que respira. Mas, em grupo, é uma pessoa que pode se defender. Então, a primeira coisa é a sua vizinhança.
Eu fico muito desconfiado quando vejo alguém rico e com muito sucesso, já fica me parecendo que o diabo está metido nisso, porque normalmente subimos todos juntos. E isso não é exclusividade nossa. No México, por exemplo, existem instituições como as mayordomías: o mais exitoso do povoado tem que pagar a festa do santo padroeiro. Vai desembolsando seu dinheiro, hein?
Quando você afirma que ninguém perguntou ao povo haitiano se queria ser moderno, está dizendo que não deseja ser?
Em primeiro lugar, quando digo “moderno” não quero dizer “contemporâneo”, certo? Refiro-me ao projeto clássico da modernidade, não à tecnologia e essas coisas. De fato, o povo haitiano não poderia apresentar sua atual coesão sem o WhatsApp, o Facebook e o celular. Mas está buscando uma modernidade que não seja castradora e, aqui, voltamos ao problema do Estado.
Um exemplo. Na era colonial, antes de 1804, não existia mercado interno no Haiti, tudo era exportado. Mas, depois da Revolução, pouco a pouco, as pessoas substituíram a monocultura do açúcar ou do café pelo conuco, a pequena horta familiar que produz alimentos. E ocorrerá uma multiplicação de mercados rurais que fundam um mercado interno, onde o administrador número um são as vendedoras, as mulheres.
Ou seja, as pessoas mudaram a orientação da sociedade para as necessidades locais. E exportando os excedentes, mas não trabalhando mais para a exportação. Enquanto isso, o que está fazendo o Estado, os que herdaram o governo colonial? Tentando restaurar a grande plantação exportadora. Durante todo o século XIX, criaram normas de cultivo e leis rurais para retornar ao que existia antes.
No livro, você diz que tudo isso era uma dissimulação.
Ninguém dava a mínima! Contudo, continuavam se comportando como se o mundo inteiro os obedecesse, para engrossar a burocracia à custa da agricultura. Depois, em 1915, chegam os Estados Unidos, tomam o país e a primeira coisa que têm em mente é voltar às plantações. Ficam quase duas décadas e não deixam mais do que três plantações no país, pois o povo tem a sua própria passividade, por assim dizer, que é a sua forma de defender suas estruturas de convivência.
Não vence, porque não pode, mas se acomoda para não mudar. É melhor irmos trabalhar fora e enviar remessas, mas na casinha não mudamos. Consegue perceber? Os Estados Unidos puseram plantações em Cuba, na República Dominicana, mas, aqui, a única coisa que conseguiram é nos apertar o pescoço. E transformar Porto Príncipe, que era uma capital abandonada, em uma capital com poder que tira toda a nata das províncias.
Eu sou de Porto Príncipe, mas é uma cidade de parasitas. Trazem o dinheiro dos mercados rurais e aqui o roubam e destroem. Isso significou a introdução na modernidade para nós.
Mas a modernidade também significa, por exemplo, Estado de direito. Diria que o povo haitiano também resiste a isso?
Não, certamente nos atrai, mas qual é o problema? Que no Haiti a lei não reflete o direito! As pessoas têm uma ideia de seus direitos e querem que sejam respeitados, mas os concebem em relação aos bens que realmente possuem: seu espírito, seus costumes, seus desejos de reciprocidade. E isso teria que ser traduzido em leis, mas colocam a lei em você como uma camisa de força.
O Código Negro, criado por Luís XIV, que regeu todo o nosso período francês, estabelecia que o escravizado não pode possuir nada que não pertença ao seu senhor. Nesse marco, como você pode ter uma família, se para casar tem que compartilhar bens materiais? Para tê-la, inventará um sistema que não precise da propriedade privada. E sendo assim, também não pode haver patriarcado. Em quem o macho mandará, se anda com uma mão na frente e outra atrás?
Além disso, esse senhor não vai se casar porque eram todos amasiados, é uma união livre. Em resumo, a família é comunitária. Por isso, lá fora, onde há migrantes haitianos, não conseguem entender que uma criança faça algo e o vizinho lhe faça uma correção. “Como se atreve, se você não é o pai dela?”. Então, sem dúvidas, queremos o Estado de Direito, mas um que reflita nossos costumes. Caso contrário, é um Estado de leis, não de direito.
No que diz respeito à democracia, você argumenta que o obstáculo é que o Haiti nunca teve suas próprias elites.
Isso é muito evidente. Olha, se você tem 20 sapateiros, os três primeiros são a elite dos sapateiros, certo? Mas se você fala francês e o povo fala crioulo, você não pode ser a elite desse povo! É simplesmente uma oligarquia que se apropriou de tudo, quando retiramos os franceses, e que administra o país em sua própria língua.
Para você, a democracia haitiana só será viável se for a partir do crioulo?
Não, não, não. Em primeiro lugar, não vivemos em uma ilha, vivemos em um mundo. E isso implica… Vou contar uma história para você, que é melhor. E isso é verdade, é histórico. Em fins do século XIX, chega ao poder um general que é um cacique de província, um tipo que não sabe francês. E está montando seu gabinete, distribuindo cargos a um bando de mulatos de Porto Príncipe que falam francês. Vendo isso, seu braço direito lhe diz: “Presidente, você também me daria um cargo de ministro?” E ele se vira e diz: “Você pode ser presidente, mas ministro não pode ser” [risos], pois o ministro tem que conseguir discutir com os franceses!
Ou seja, as línguas devem ser usadas de acordo com sua função. Se estou administrando um laboratório, não vou procurar uma palavra em crioulo para dizer penicilina, eu a retiro dali. Contudo, ao mesmo tempo, não pode haver democracia se o pensamento popular não entra no espaço público.
E essa é a base da nossa crise atual: o pensamento popular está se metendo no espaço público, a ponto que o embaixador americano se viu obrigado a dar uma entrevista em crioulo, porque queria falar com o povo. Imagine, por exemplo, que no Chile todos os governantes falassem russo ou chinês. Quem conseguiria dizer que existe uma democracia no Chile?
Qual é a porcentagem de haitianos que entende bem o francês?
Não passa de 10%. Mas, hoje, estamos vivendo uma mudança de época, porque o crioulo já tomou conta do espaço público e isso não pode retroceder. A administração pública e a vida privada, que sempre foram realidades paralelas, vão ter que aceitar sua mútua existência e encontrar uma forma de dialogar.
Alguns dizem que os defensores do crioulo querem fazer uma “tabula rasa”, renegando a história do país que já se deu em francês.
Não é verdade. Há muito tempo venho dizendo que os haitianos, ao saírem do ensino fundamental, deveriam falar francês e crioulo, sem nenhum problema. E ao sair do ensino médio, espanhol e inglês, porque estamos no meio do Caribe. Agora, você não vai jogar no lixo a literatura haitiana em francês, nem a quantidade de intelectuais que tivemos, consigo me explicar? Não vamos cuspir sobre nossa riqueza.
Contudo, o que nos manteve com vida é o crioulo, não o francês. Essa língua é o nosso arquivo, a tradução de nossa experiência de vida. Em sociologia, por exemplo, eu não utilizo uma hipótese que não possa ser traduzida para o crioulo. Para nós que falamos francês, é um problema, porque sem percebermos passamos de um sistema semântico para outro. E acontece que família, vizinhança, religiosidade, todas essas coisas, têm outro significado em crioulo.
Um exemplo muito simples: não há um haitiano que não pratique o vodu. Se alguém diz que não o pratica, ninguém vai acreditar, porque o vodu não é realmente uma religião como o catolicismo, temos outra forma de espiritualidade.
Os críticos da teoria decolonial costumam dizer que essa escola, de forma voluntarista, tenta fazer diferenciações entre as culturas locais e a influência europeia, sendo que a mistura já é irreversível.
Falam sobre o que não conhecem. O que acontece é que, ao menos os franceses, consideram que são eles que deveriam tê-la inventado. Recentemente, ouvi que que há um problema porque querem que a teoria decolonial comece com Césaire e Fanon. Mãe de Deus, por que você sempre tem que estar no centro? Eu estou prestes a receber o Prêmio Fanon, não há ninguém que eu possa adorar mais, mas eles não têm que ser os descobridores de tudo.
Além disso, estamos fazendo uma leitura do que o povo vem fazendo há séculos. Thomas Madiou, um historiador do século XIX que era muito de direita, disse: “O africano, embora escravo, jamais deixou de ser livre”. Não pode deixar de vê-lo. Contudo, isso não quer dizer que você não precisa dos outros. Por Deus, Descartes é Descartes, Aristóteles é Aristóteles. E nós temos que lidar com as duas coisas, porque estamos em um cruzamento de caminhos e nessa encruzilhada temos que viver.
Alguns haitianos dizem que o caráter um tanto retraído do chileno é melhor do que o de seus vizinhos dominicanos, com quem não se dão muito bem.
Bem, é que o haitiano é fundamentalmente um igualado: mesmo que esteja na rua pedindo, não pensa que é inferior. E claro, isso causa atritos, porque enquanto o mundo descreve o haitiano como “pior não pode ser”, o mais baixo que existe, ele vai pensando que não fica atrás de ninguém. Isto cria problemas…
Em todo caso, agora, a cultura popular que descreve parece difícil de ser conciliada com a violência brutal que existe no país.
A explicação para isso é muito simples. Em inícios do século XX, um senhor disse que o Haiti era o país mais pacífico que se possa imaginar, exceto quando se coloca o problema político: não há lei lá. Bem, por que isso acontece? Porque dada a nossa estrutura social incompleta, sem classes dominantes propriamente, todas as revoluções são feitas contra um império, nunca contra uma classe local.
E os impérios, seja a França, os Estados Unidos, a Espanha, o que você quiser, vêm para varrer com você, não para negociar. De modo que você tem que lutar para tirá-los e isso é puro sangue, não há meio termo. E o que você vê agora é a continuação dessa violência política. Contudo, 10 anos atrás, tínhamos a menor taxa de criminalidade do continente, ou uma das mais baixas. Bairros inteiros podiam funcionar sem um único policial. Aí está a resposta à sua pergunta.
Mas, nesse caso, essa violência política se refere a qual poder imperial?
Ah, quem você acha que é o poder imperial na América Latina? Desde 1915, quando os Estados Unidos tomaram o poder, nenhuma pessoa conseguiu ser presidente do Haiti sem que dessem o sinal verde. O único exemplo é Aristide, que não durou dois anos, antes que recebesse deles um golpe de Estado.
E agora o povo vota conforme recebem dinheiro ou não, porque viu que essa democracia é um puro conto, que há países que jamais permitirão que nós, haitianos, dirijamos o Haiti. Estados Unidos, França, Canadá, Inglaterra, eles mandam, simples assim. E, então, as oligarquias, como não há instituições, vão adquirindo exércitos privados e assim essas gangues vão crescendo.
Mas, o ex-presidente Aristide é acusado de ter sido quem, no início dos anos 2000, começou a armar esses grupos de jovens para atuar politicamente nos bairros.
Não sei, pode ser que sim ou que não, para mim, é irrelevante quem começou. A longo prazo, esses grupos nascem porque um país não pode viver sem uma força pública manejável e que opere dentro de um sistema legal. Aqui, os Estados Unidos colocaram seu próprio exército, mais tarde, Duvalier o substituiu por seu exército privado, depois, Aristide o dissolveu para que não desse mais golpes de Estado e aí começaram a pipocar milícias privadas. Quem começou? Pode ser que seja ele, isso não importa.
Também temos que ver o que aconteceu com o sistema jurídico. Quem acabou com a imobilidade dos juízes? Os Estados Unidos. E com a liberdade de imprensa? A ocupação americana. E quem começou nomeando quase a dedaço os presidentes? E, agora, percebem que os haitianos têm um Estado falido.
Observe, a grande diferença entre o Haiti e as colônias inglesas é que se havia uma revolta na Jamaica, a Marinha Real chegava e colocava ordem. Mas quem gastava esse dinheiro? A Inglaterra. Quando os Estados Unidos criaram o nosso exército e o enviou para ocupar o país, pagávamos todos os soldados americanos com o nosso dinheiro. Ouça você, quem falhou?
De qualquer forma, os políticos haitianos fizeram sua parte. Financiavam as gangues que, hoje, disparam contra as pessoas…
Olha, eu não defendo esses corrompidos. O que estou tentando dizer é que se esse processo tivesse sido inconveniente para os Estados Unidos, teria morrido no ovo. Como pode ser que no Haiti, o país mais pobre da América, as pessoas tenham armas que custam mais do que um carro? Como é que aplicam muito bem os embargos contra certos países e não conseguem impedir que suas armas cheguem aqui? Nesse momento, estão adotando sanções contra uma série de oligarcas haitianos, por seus vínculos com máfias e sei lá eu. Vão me dizer que seu serviço de inteligência só ontem informou o que essas pessoas faziam?
Por favor, conte-me outra história de pescador, porque essas francamente não me fazem mais rir. Fazem isso porque estão com os dois pés no mesmo sapato: não sabem como dirigir este país e não vão deixar que nós o dirijamos. O ruim é que não podendo dirigi-lo, normalmente, nós nos afastamos da vida pública e assistimos para ver o que vão fazer. Mas, nesse momento, não podemos.
Por quê?
Porque estamos sem recursos para sobreviver, não temos para onde recuar. Os núcleos comunitários rurais tinham como encontrar recursos. Contudo, os núcleos que foram criados nos tugúrios, nos guetos, não comem se não servem a quem tem dinheiro, seja quem for. Estamos nesse beco sem saída e eu, pessoalmente, não vejo como vamos sair dele. O nível de sofrimento e precariedade que estamos vivendo chega a um ponto insustentável. As crianças que não podem sequer ir à escola, a desnutrição, a fome…
Que tipo de solução aspiram, então?
Não sabemos a qual santo rezar para que nos deixem em paz. Um enviado da França me perguntou como eu pensava que poderiam nos ajudar, e lhe disse: “Vou responder como um mexicano: por favor, não me ajude, compadre”. Essa é a melhor ajuda, que não nos ajudem tanto. Só impeçam que cheguem armas e nós encontraremos a solução.
—