Por Marsílea Gombata, de Porto Príncipe. Ao longo de 38 quilômetros, dois blindados cortam Porto Príncipe, a capital do Haiti, com militares brasileiros. Equipados com capacetes azuis, coletes e fuzis, os soldados participam de uma patrulha noturna mecanizada, rotina da Minustah, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti.
Além da inexistente iluminação pública em quase toda a cidade, a poeira deixa carregado o ar quente do verão caribenho e torna ainda mais duro o trajeto dos haitianos descalços que cruzam nosso caminho. Nos pontos alcançados pelas luzes dos veículos de guerra ou iluminados por velas, olhares calados denotam apreensão.
A população parece acostumada à rotina militar ostensiva em meio às condições precárias do país mais pobre das Américas. Essa “cavalaria mecanizada” é parte das operações do Batalhão de Infantaria de Força de Paz (Brabat), responsável por manter segura uma área que compreende 32 dos 36 quilômetros quadrados de Porto Príncipe.
O batalhão representa o maior contingente militar do Brasil em terras estrangeiras e integra a Minustah, que chega ao seu décimo aniversário em meio a incertezas. Constituída por três componentes, a missão definida pela ONU trabalha com os elementos policial, civil e militar. Este, a cargo do general brasileiro José Luiz Jaborandy Jr., coloca o Brasil em um impasse.
Se no princípio tinha como objetivo funcionar como o principal vetor de segurança pública em um país marcado por um cenário político instável – com o exílio decorrente da renúncia de Jean-Bertrand Aristide – e pela guerra de gangues de tendências políticas distintas, hoje vê a violência diminuir e a única força de segurança do país, a Polícia Nacional Haitiana (PNH), se fortalecer, ainda que de forma lenta. Chefiada e financiada pelo governo brasileiro em sua maior parte, a missão militar da Minustah hoje tenta fortalecer as instituições haitianas, mas ainda está longe de resultados sólidos, que facilitariam sua saída. Por um lado, a força local passou do estágio embrionário de 2004 para o efetivo atual de 11 mil policiais. Por outro ainda há focos de violência que, muitos temem, podem se alastrar pelas imensas favelas de Porto Príncipe.
“Quando chegamos, a situação era totalmente caótica. Em Cité Soleil não se entrava se não fosse com os blindados. Era uma guerra civil, com as gangues aliciadas por grupos políticos”, explica o coronel Omar Tumas, subcomandante do Brabat, sobre o cenário de dez anos atrás. “Hoje, conseguimos mudar o quadro, e nossa preocupação é mantê-lo. Não temos de fazer gol, mas não podemos perder.”
A depender dos índices de violência, no entanto, não há “guerra civil” no Haiti. De acordo com Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé, think tank da área de segurança e desenvolvimento, em 2007 a taxa de homicídios no país era de 5 para cada 100 mil habitantes, abaixo da média global de 7 para cada 100 mil. Em 2012, no entanto, esse número saltou para 10 para cada 100 mil habitantes, número que diminuiu 20% em 2013. “O Haiti é, de fato, menos violento que qualquer país caribenho, como a Jamaica (52 para cada 100 mil) ou Trinidad e Tobago (35)”, afirma.
No entanto, a imposição da segurança pelos fuzis parece ser um preço que alguns estão dispostos a pagar. “Não me importam os blindados, porque hoje eu vivo a paz”, diz Jean Frizti, 42 anos, morador de Cité Soleil. “Há dificuldades ainda, mas agora posso sair à noite, comprar algo, conversar na rua.”
Apesar do componente político, a miséria haitiana também não ajuda no combate à violência. Com mais de 70% da população desempregada, muitos trabalham no setor informal da economia, vendendo comida, café, roupas, frutas, diesel e carvão nas ruas para conseguir 1 ou 2 dólares por dia. O restante da população é absorvido pela máquina estatal, pela modesta indústria que existe (como a têxtil) e as ONGs estrangeiras. Pior, sem saneamento básico ou tratamento de água, apenas 10% do país têm acesso a energia elétrica.
O país, que teve seu exército desmantelado nos anos 1990, hoje luta para reestruturar sua polícia e se vê sob tutela da Minustah, que conta com 5.165 militares de 20 países, 2.466 agentes de polícia, 362 civis estrangeiros, 1.235 civis locais e 165 voluntários. Na época do terremoto que arrasou o país, em 12 de janeiro de 2010, viu o efetivo militar chegar a 8.940 membros e o total de agentes policiais a 4.391.
Motivado pelo convite que o projetaria como um importante player regional e um aspirante de peso a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil viu na missão também a chance de agregar experiência às suas Forças Armadas, que se ressentem da falta de mais investimento na área militar.
Hoje, o Brasil chefia na missão 1,2 mil militares que compõe o Brabat, além dos 177 da Companhia de Engenharia de Força de Paz. Há ainda 31 soldados do Paraguai, 2 do Canadá e 1 da Bolívia ou do Peru, que se revezam a cada seis meses.
O principal propósito da missão, que já custou ao Brasil 2,11 bilhões de reais (com 741 milhões de reais reembolsados pela ONU), era firmar a Polícia Nacional Haitiana como a principal força de segurança. O objetivo, segundo o capitão Leonardo Sampaio, ainda não foi conquistado. “O policial haitiano ainda não se sente seguro, eles dizem que se a gente saísse agora, o sistema falharia.”
Apesar de o próprio ministro da Defesa, Celso Amorim, defender a retirada das tropas brasileiras no Haiti de forma “progressiva e programática”, as Nações Unidas ainda não têm definido um plano de saída. Enquanto alguns estimam que o ideal seria atingir o total de 90 mil policiais haitianos, o governo traçou uma meta de 15 mil policiais até 2016, para que então o contingente militar comece a ser reduzido.
Ainda que clamem para si um papel na reconstrução do país, os 177 engenheiros da Braengcoy (Companhia de Engenharia da Força de Paz) têm como prioridade a mobilidade das tropas. Estão envolvidos em obras de perfuração de poços, reconstrução de casas, escolas, estradas e até no tratamento de água, mas essas não são as prioridades da missão. No último corte de pessoal a Braengcoy passou de 250 para 177 membros – a Minustah chegou a ter 700 engenheiros, mas hoje conta com 318.
A reconstrução do país arrasado pelo tremor de 2010, que deixou mais de 200 mil mortos, está hoje estagnada e, a partir daí, avançou pouco além da remoção dos escombros. Um dos cartões-postais do Haiti, o Palácio Presidencial foi demolido à espera de seu reerguimento. A Catedral Notre-Dame continua semidestruída. No centro da cidade, casas e edifícios abalados pelo tremor de 7 graus permanecem arruinados, aumentando a sensação de abandono crônico e pobreza.
Como um dos reflexos, 137 mil haitianos vivem em acampamentos há quatro anos e meio. Em Icare, perto do Forte Nacional, 500 pessoas se apertam em microbarracos construídos com chapas de zinco, plástico e pedaços de madeira. O esgoto a céu aberto e o lixo acumulado dividem espaço com a venda de frutas e comida no chão. “Desde o terremoto ninguém do governo dá as caras”, conta Florence Porissaint, 50 anos, que vive em um barraco de 2 metros quadrados com a filha e a neta. “Não temos água ou comida. Vivemos como animais.”
No território onde as patrulhas não alcançam, a violência entre gangues e os estupros voltaram. Sem iluminação pública, ninguém se arrisca a caminhar pelas vielas à noite. Em uma conversa com a reportagem sobre sua preferência política, a moradora Marie Joseph, 43 anos, que cozinhava saucé poid (espécie de sopa de feijão) e fritava banana, entrou em uma discussão com membros do grupo de esquerda Movimento de Liberdade de Igualdade dos Haitianos pela Fraternidade (Moleghaf). A cozinha improvisada foi destruída e o bate-boca quase virou tragédia sob a ameaça de um facão.
O governo haitiano ressente-se da reconstrução inexistente do país. Dos 10 bilhões de dólares prometidos para o Haiti em 2010, menos de 5% chegaram a instituições estatais ou a organizações da sociedade civil haitiana. Estima-se que metade do dinheiro tenha ficado nas mãos de organismos internacionais e tenha sido gasto com ajuda humanitária, postos de trabalho de curto prazo, abrigos e remoção de escombros. Um assessor do presidente Michel Martelly que preferiu não se identificar lembra que à época todos queriam posar como doadores, mas apenas metade do prometido foi entregue. Apesar de aplaudir os dez anos da Minustah no país e rezar para que esses se transformem em 20, ele critica o Brasil, que não teria ido além da segurança pública. “Não fico triste de o Brasil investir em Cuba e em outros países. Só fico triste de não ter investido aqui”, diz. Hoje, o maior aporte financeiro do país vem do Petrocaribe, acordo com a Venezuela que garante ao Haiti 400 milhões de dólares ao ano.
Depois do terremoto que matou 240 mil pessoas e deixou 1,5 milhão de desabrigados, o país viu sua realidade piorar ainda mais. No fim de 2010, o Haiti foi palco de um surto de cólera que matou 8,3 mil pessoas e contaminou mais de 650 mil. Em agosto de 2012, a tempestade tropical Isaac causou perdas agrícolas na ordem de 254 milhões de dólares e deixou 1,6 milhão de haitianos em situação de emergência.
“O Haiti semprefoi muito pobre, cheio de surpresas. Aqui, como eles dizem, é o ‘vivre l’inesperé’ (viver o inesperado)”, lembra o cônsul brasileiro Vitor Hugo Irigaray. Segundo o diplomata, que trabalhou no Haiti pela primeira vez há 25 anos, a falta de infraestrutura é a maldição do país, que sofrerá com a saída das tropas estrangeiras. “Já disse e torno a repetir: o dia em que tirarem a missão, isso vai virar um caos. Eles não estão preparados, não existe uma força que possa garantir a segurança.”
Irigaray afirma ainda que a imagem do Brasil melhorou depois da Minustah, a ponto de os haitianos verem o Brasil como um destino possível. “Já havia um namorico com o Brasil, e esse namorico passou a ser um noivado. Hoje concretizamos esse noivado em um grande casamento”, diz sobre os 9.962 vistos permanentes concedidos pelo serviço consular de Porto Príncipe em dois anos e meio.
O Hexagone, prédio da Embaixada Brasileira em Pétionville, amanhece todos os dias com ao menos cem haitianos se espremendo em filas confusas na tentativa de conseguir um visto, como a vendedora de amendoim Janette Joseph, 45 anos, que tenta obter o visto brasileiro há mais de dois anos. “Tenho família lá. Quero viver com eles”, explica.
A visão sobre o Brasil, no entanto, não é unânime. Movimentos sociais e militantes, antes simpáticos ao “país do futebol”, passaram a ver o Brasil como o executor do “trabalho sujo” a mando da ONU. “Não entendemos por que um governo de esquerda, como o de Lula e Dilma, decidiu ocupar o Haiti”, protesta David Oxygène, 39 anos, que articula a fundação de um novo partido de esquerda no Haiti, o KOD (Kodinasyon Desalin). “A população não quer mais a ocupação, essa missão infringe a Constituição do meu país.”
“Dizem que a Minustah sairá quando o país conseguir caminhar com as próprias pernas, mas não podemos caminhar com essa força, que é de ocupação e não de paz”, critica Paul André Garçonnet, 49 anos, do partido esquerdista Lavalas. “Todos os países têm conflitos sociais latentes, com pessoas que não bebem, não comem e não têm acesso à educação. Isso não permite que nos ocupem militarmente.”
*Reportagem publicada originalmente na edição 811 de CartaCapital com o título “Pesadelo tropical”.
Foto: Reprodução/Carta Capital.
Fonte: Carta Capital.