Por Anna Beatriz Anjos e Igor Carvalho. Desde o último dia 3 de maio, quando coordenou a ocupação de um terreno a quatro quilômetros da Arena Corinthians, em Itaquera, zona leste de São Paulo, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) se tornou peça importante dentro do cenário político paulista. Chegou a ser alvo da atenção da presidenta Dilma Rousseff (PT), que os recebeu para uma reunião sobre moradia.
Desde então, o movimento impressionou ao colocar cerca de 20 mil pessoas nas ruas em suas manifestações. A luta por moradia passou a ganhar destaque na mídia. Boa parte dessa imprensa tentou de todas as formas classificar o MTST como “anti-Copa”.
“A mídia tentou seduzir o MTST. Ela viu no MTST, pela capacidade de mobilização e organização, uma oportunidade de repetir os aspectos negativos que junho de 2013 teve. E aí fazer isso em ano eleitoral, a poucos meses da eleição, de modo a jogar uma pá de cal na Dilma”, analisa Guilherme Boulos, coordenador nacional do movimento, para quem não há dúvida sobre a tentativa da imprensa em politizar as manifestações do grupo. “Na nossa avaliação, a mídia pretendeu conscientemente utilizar o MTST para essa finalidade e não conseguiu, porque o MTST se colocou de forma muito clara em relação ao seu discurso, que não é o discurso de ‘não vai ter Copa’, expressando que o nosso problema é outro.”
O MTST já atua em sete estados do país, mas integra a Frente de Resistência Urbana, o que amplia essa presença para outros estados. Ao todo, só em São Paulo, 20 mil famílias seguem o movimento, de acordo com Boulos. Confira a entrevista a seguir.
Fórum – A atuação mais contundente do MTST tem sido em São Paulo. Por quê?
Guilherme Boulos – Eu destacaria São Paulo e Brasília. É que São Paulo é uma caixa de ressonância, o que acontece aqui é nacional. Brasília, apesar de ser a capital do país, não é tanto caixa de ressonância. O MTST tem feito ocupações enormes em Brasília, mobilizado muita gente, travado uma luta dura contra o governo do Distrito Federal. Há uma atuação intensa do MTST em Brasília, marcada por repressão dura do governo do Distrito Federal. Ameaças de prisão, prisão, tentativa de homicídio de dirigentes, o negócio é meio terrível por lá. Voltando aqui para São Paulo, aqui é o lugar onde o MTST é mais antigo e mais articulado, onde o movimento teve tempo e condições para construir um trabalho de base, contínuo e intenso, de modo a acumular mais força social. Além do que, São Paulo, por ser a grande metrópole do país, concentra as contradições, o que tem de mais rico e de mais pobre no país também. São Paulo tem alguns bolsões de miséria na sua região metropolitana, enormes “cidades-favela” que criam as condições para uma atuação mais intensa do MTST.
Fórum – Em entrevistas recentes, você disse que a capacidade combativa e questionadora do capitalismo dos movimentos sociais está muito aquém do que poderia ser. De que forma o MTST age diferente nesse aspecto? Você poderia falar um pouco sobre a tática de acúmulo de forças?
Boulos – O MTST não é um movimento de moradia, nós não nos definimos como um movimento de moradia. Somos um movimento territorial, que atua nas periferias urbanas, com muita referência do que foi o movimento dos piqueteiros, na Argentina; os movimentos comunitários, na Bolívia; vários movimentos que surgiram nos últimos 20 anos na América Latina e que são resultados do fato da segregação territorial mais profunda nos grandes centros urbanos. Podemos fazer uma analogia: do mesmo jeito que o capitalismo concentrou, no século XIX, os trabalhadores na grande indústria e criou condições para o surgimento do movimento operário, no século XX, o capitalismo concentrou os trabalhadores nas periferias urbanas e criou condições para um movimento territorial de novo tipo, que é o que tem surgido nos últimos anos. Por isso – e é nesse sentido que não nos colocamos como movimento de moradia, o MTST toma a pauta da moradia como seu foco, seu centro, mas é um movimento que tem uma proposta mais ampla de conquista de direitos sociais, de reforma urbana e de construção de poder popular. Isso nós expressamos na nossa prática. Não que outros não expressem; não achamos que somos a única coisa que presta nos movimentos sociais brasileiros, ao contrário. Há muitas experiências interessantes ocorrendo de movimento urbano no Brasil. O MTST talvez seja aquela que conseguiu se consolidar de forma mais unitária e com maior visibilidade. A nossa crítica – e aí entra a tática de acúmulo de forças do movimento – vai no seguinte sentido: nós temos a clareza de que os grandes problemas que a maior parte da população trabalhadora vive não serão resolvidos nas atuais relações sociais, econômicas e de poder político. É preciso ter uma mudança estrutural na sociedade para construir uma vida digna. Nesse sentido, a nossa luta não é pautada por um avanço determinado. Ontem [9 de julho], nós conseguimos uma grande conquista – muito bem, o pessoal da Copa do Povo vai ter moradia, fortaleceu o “Minha Casa, Minha Vida Entidades”, conseguimos avanços até para a própria política habitacional no país. Mas isso não basta, é um passo importante, mas isso é mais um passo no acúmulo de forças. Nós temos que chegar ao momento – e é nisso que o movimento acredita, e para isso que trabalha – em que a força do poder popular vai poder lidar de igual para igual com a força do capital. Aí nós vamos tratar conquistas em um outro nível. Só que não adianta ter posições radicais sem ter condições para ter ações radicais, isso é gigante com pé de barro. Não adianta ter ideias muito revolucionárias, muito socialistas, se você não cria as condições na base, do ponto de vista de força social, para que isso se efetive.
Fórum – E sem receio de admitir o socialismo?
Boulos – Não temos receio nenhum. O MTST é um movimento que, na sua estratégia, entende que o capitalismo não vai resolver o problema dos trabalhadores, e que é preciso uma nova forma de sociedade, que nós não temos vergonha alguma de chamar de socialista.
Fórum – Qual a relação entre as pessoas que chegam ao movimento e a especulação imobiliária?
Boulos – Nos últimos três, quatro anos, esse efeito se fez sentir de forma mais forte. Se formos pegar do ponto de vista dos dados, é anterior, mas até o dado se fazer sentir na ponta, há um tempo. A partir de 2007, 2008, ocorre um processo de recrudescimento da especulação imobiliária no país. Não que isso não acontecesse antes, mas há um recrudescimento. Isso tem a ver com os efeitos do crescimento econômico lulista; o segundo mandato do Lula, a partir de 2006, 2007, é o período de maior crescimento econômico em relação ao primeiro mandato. O crescimento econômico brasileiro nos últimos anos foi centrado essencialmente na construção civil. O nível de subsídio, de dinheiro – seja subsídio ao crédito através BNDES -, que o governo federal deu para a construção civil depois de 2009, ainda mais em uma política anticíclica para reverter os efeitos da bolha dos Estados Unidos em 2008, foi uma coisa incrível. Esse setor cresceu muito. Se pegarmos os níveis de crescimento do patrimônio da Odebrecht nos últimos dez anos, é algo enorme. Camargo Correia, as grandes empreiteiras cresceram isso, injetando recurso público, principalmente por meio do BNDES. Qual é o resultado disso para chegarmos ao ponto da especulação? Essas construtoras, também para somar, tomaram a opção, entre 2006 e 2007, de abertura de capital na bolsa de valores. Abriu o capital, vendeu ação; vendeu ação, fez caixa. O que elas fizeram com esse dinheiro? Compraram terra nos grandes centros urbanos brasileiros. Se você tem a terra, tem o controle da política urbana. Tinha demanda, porque tinha crédito mais amplo pros trabalhadores, tinha mais gente demandando produto habitacional – habitação como mercadoria. A partir dessa lógica do endividamento, as construtoras foram produzindo para a chamada classe C em regiões que antes eram periféricas – Campo Limpo, Itaquera, Pirituba. Ou seja, regiões que não eram centrais, que não eram alvo do capital imobiliário, passaram a ser. Alguns podem pensar: “poxa, que bom, vai valorizar a periferia”. Porém, se esquecem de que boa parte dos trabalhadores que vive na periferia mora de aluguel. Eu moro em Campo Limpo. Lá, um aluguel, em 2006, de uma casa de dois cômodos era 300 reais. Hoje, um aluguel de dois cômodos no Campo Limpo, 8 anos depois, não sai por menos do que 700 reais. O cara que morava de aluguel no Campo Limpo já era, porque o salário dele não aumentou nessa proporção. Ele foi pra Taboão da Serra, Itapecerica, Embu. A periferia da periferia: é isso que se criou.
“Para nós, a Copa do Povo é um exemplo do que queremos continuar construindo. Se um imbecil de um Reinaldo Azevedo ler esta entrevista, ele vai escrever um artigo dizendo: ‘É, não falei, eles vão invadir mais’. É isso. É exatamente isso. Estamos em lados opostos e é isso que vamos fazer.”
Fórum – Estamos novamente em ano de eleições. Hoje, a atual situação política do Brasil se deve muito a essas empreiteiras. A Constituinte pela reforma política será uma bandeira do MTST? Se sim, em que momento?
Boulos – O MTST entende que uma reforma política é um ponto básico. O debate da Constituinte, principalmente em relação ao financiamento público de campanha, é um ponto elementar, basilar, não digo para resolver os problemas, mas para, de algum modo, apresentar uma inibição da apropriação do Estado pelo capital privado, para a privatização do poder do Estado – que é o que acontece hoje por meio do financiamento privado das campanhas eleitorais. Para o MTST, isso é uma bandeira. Não houve uma articulação adequada do MTST com os movimentos que estão puxando isso por uma série de razões circunstanciais, mas o MTST pretender levar essa bandeira adiante, antes do dia 1º de setembro. Nossa ideia é: havendo um entendimento com as entidades que estão construindo isso, queremos encampar o plebiscito e levar isso adiante. Essa é uma bandeira essencial para nós.
Fórum – Como você pensa que o Estado deveria regular o preço dos alugueis?
Boulos – Queremos uma nova lei do inquilinato no país. Mesmo com a diminuição do crescimento econômico, os alugueis continuam aumentando muito. A “Ocupação Copa do Povo”, em Itaquera, é emblemática, porque lá a especulação tem muito a ver com a Copa e com o estádio. Todo mundo fala a mesma coisa. Parece que foi combinado, parece que o MTST orientou em assembleia: “olha, falem isso”, mas não foi. Foi o que aconteceu, um processo real. As pessoas vão dizer: “não consigo mais pagar aluguel, eu pagava 300, estou pagando 600”. Essa é a situação geral. O que nós entendemos como uma forma de se contrapor a isso – é claro que essa medida não resolve todos os problemas nem vai acabar com a especulação imobiliária no país -, é que se uma nova lei do inquilinato é aprovada, nessa lei você estabelece um teto para reajuste de aluguel. E diz o seguinte: nenhum contrato de aluguel pode ser reajustado acima do índice anual de inflação. Isso, por mais que possa parecer uma coisa estranha e até subversiva, comunista, não é nada disso; é só regulação de mercado. Isso ocorre em outros países, se não me engano, no Uruguai há uma lei dessa natureza, aqui mesmo na América Latina. Isso ocorreu no Brasil em 1917; uma das bandeiras das greves de 17 era o controle do valor dos alugueis no Rio de Janeiro e em São Paulo e foi vitoriosa. Esse controle ocorreu durante toda a década de 20. Na década de 30, Getúlio Vargas fez três decretos de inquilinato. Governo Dutra, Juscelino, todos eles mantiveram leis de inquilinato. Quem acabou com isso foram os militares, e aí se manteve. É uma questão de regular mercado. Hoje o mercado imobiliário, que incide na vida de milhões de pessoas por meio do preço do aluguel, faz o que quer, não tem nenhum controle público, é a lei da oferta e procura. Isso é inconcebível. Por isso, a proposta de uma lei nova lei de inquilinato.
Fórum – Qual foi a contribuição das manifestações de junho e da Copa do Mundo para esse quadro que, depois do anúncio de que serão construídas 2 mil habitações na ocupação Copa do Povo e o programa Minha Casa Minha Vida será modificado, se tornou vitorioso na trajetória do MTST?
Boulos – Junho de 2013 para nós foi um grande marco, aliás para a luta social no Brasil. Talvez muito mais pelo que significou do que pelo que foi. É claro que foi algo muito importante; em nenhum momento podem ser tirados os méritos do Movimento Passe Livre por ter protagonizado, criado uma luta, mobilizado milhares de pessoas e ter sido vitorioso na sua pauta de reivindicações. No entanto, junho, nós sabemos, depois tomou uma direção – e à revelia do MPL, não por opção – muito preocupante, que foi apropriada por setores conservadores, por uma classe média que está descontente porque aeroporto virou rodoviária, pelo pessoal que defende redução da maioridade penal. Em uma das manifestações, eu vi um rapaz com um cartaz que dizia “redução da maioridade penal já”, “militares no poder”. A maior parte dos trabalhadores mais pobres do país não foi às ruas em junho, particularmente em São Paulo. No entanto, junho deixou um significado muito importante para os trabalhadores de periferia. Depois de 20 anos de estancamento e criminalização das lutas sociais, de um ideário de que quem vai para a rua lutar é vagabundo e não tem o que fazer, houve a ideia de que o povo, quando vai para a rua, é vitorioso. E essa ideia incidiu, gerou impacto na consciência popular, de modo que, se pegarmos a luta pela moradia, que foi talvez a que mais recebeu destaque depois de junho, no segundo semestre de 2013, em São Paulo, ocorreram mais de cem ocupações de terra, a maioria delas, espontânea.
Fórum – Nos atos do MTST, normalmente não há a presença dos black blocs. Por quê? Os praticantes dessa tática já procuraram vocês, houve alguma discordância?
Boulos – Primeiro, em relação aos black blocs: com todo o respeito que quem está na luta merece, somos críticos dessa tática. Achamos que ela não contribui para o acúmulo de forças e para o avanço das lutas populares. Quebrar um banco pode parecer muito radical, mas é muito fácil. Quebrar uma vitrine de banco, podemos sair daqui e quebrar. Isso não vai fazer do Santander ou do Bradesco mais pobres. Isso pode resolver meu problema psicológico, mas não radicalizar as lutas sociais. Vai isolar as lutas populares no país. Não concordamos com essa tática e não a aceitamos nas nossas manifestações. Não aceitamos que uma minoria queira impor ao MTST, um movimento organizado, nas manifestações puxadas pelo MTST, formas de luta que tiram da sua cartola sem discutir em nenhum espaço. Prezamos por definição coletiva. Nesse sentido, deixamos isso claro para os black blocs e acho que eles compreenderam e respeitaram, não é que não apareceram nas nossas mobilizações.
Fórum – Você sente que parte da mídia tenta colocar no MTST um adesivo de anti-Copa do Mundo?
Boulos – Claro. A mídia tentou seduzir o MTST. Ela viu no MTST, pela capacidade de mobilização e organização, uma oportunidade de repetir os aspectos negativos que junho de 2013 teve. E aí fazer isso em ano eleitoral, a poucos meses da eleição, de modo a jogar uma pá de cal na Dilma. Na nossa avaliação, a mídia pretendeu conscientemente utilizar o MTST para essa finalidade. E não conseguiu, porque o MTST se colocou de forma muito clara em relação ao seu discurso, que não é o discurso de “não vai ter Copa”, expressando que o nosso problema é outro. Esses efeitos perversos urbanos decorrentes da Copa não são nem sequer essencialmente por conta dos gastos públicos. Não que nós sejamos a favor dos 30 bilhões gastos na Copa, ao contrário, somos contra; mas, cá entre nós, se a mídia tivesse dedicado um décimo do tempo que dedicou a esses 30 bilhões para falar dos 718 bilhões gastos só ano passado com o pagamento da dívida pública, que é a verdadeira torneira do recurso público, as coisas seriam outras. Trinta bilhões equivalem a quinze dias do pagamento da dívida pública no Brasil. O cerne dos problemas da Copa são essas contradições urbanas, a cronificação e avanço da especulação imobiliária, e por isso construímos uma pauta nesse campo. Fomos muito claros em caracterizar a posição do MTST como uma posição de classe, a nossa cor é a cor vermelha, o nosso discurso é um discurso político, que tem lado. E isso, de algum modo, afastou a mídia, tanto que, já nas últimas semanas, a visibilidade que o MTST tem ganho é menor. A visibilidade que tivemos quarta-feira passada [dia 4 de junho] ao botar 20 mil no Itaquerão não foi nem um terço da visibilidade que tivemos duas semanas antes ao botar 20 mil na Ponte Estaiada. Porque eles já haviam percebido que ali não valia a pena apostar. O MTST não vai cumprir esse papel que queriam que cumprisse, e começaram a tirar o pé do acelerador. Para nós foi bom. Deixamos claro que não vamos trocar posição política por 15 minutos de fama. O MTST tem um lado político claro e contrário às corporações da mídia privada, a quem os financia, e ao Estado capitalista.
Fórum – O Judiciário parece que joga contra os movimentos, embora o direito à moradia esteja garantido pela Constituição. Como lidar com essa situação?
Boulos – É emblemático que os poderes mais conservadores do país hoje – tão conservadores que consideram de esquerda o governo do PT – são o judiciário e a mídia. São os únicos, dos quatro, que não são eleitos. O Judiciário é meio que uma capitania hereditária da grande burguesia, da oligarquia. Um poder que vai passando de família em família, das elites urbanas tomando conta, se tornando juízes, tomando o Ministério Público e levando para dentro dessas instituições toda a sua visão de classe, preconceituosa e atrasada. O Judiciário é isso, não tem nenhum controle público no Brasil. É muito engraçado que quando se fala em controle público do Judiciário é amordaçar, em relação à mídia, é censura. Agora, o Executivo e o Legislativo têm controle público a cada quatro anos. E deveria ser muito maior, deveria ser um controle público permanente, por meio de mecanismos de exercício do poder popular, conselhos e tudo mais. Mas, ainda que precário e dominado pelas grandes corporações como é o sistema eleitoral hoje, há algum grau de controle. O Judiciário e a mídia não têm nenhum, por isso são os poderes mais conservadores e atrasados do país. O advogado pode ganhar uma causa, mas a estrutura está toda carcomida.
Sobre os black blocs: “Quebrar um banco pode parecer muito radical, mas é muito fácil. Quebrar uma vitrine de banco, podemos sair daqui e quebrar. Isso não vai fazer do Santander ou do Bradesco mais pobres. Isso pode resolver meu problema psicológico, mas não radicalizar as lutas sociais.”
Fórum – Em relação à Copa do Povo, há quanto tempo o MTST monitorava aquele terreno e em que momento a decisão de ocupá-lo foi tomada?
Boulos – Há muito tempo o MTST tinha a intenção de atuar mais firmemente na zona leste, estávamos mapeando o terreno, porque o movimento já havia sido demandado em Itaquera, por conta do avanço brutal da especulação imobiliária. Mapeamos alguns terrenos, fizemos o levantamento de todos e vimos que aquele era interessante para pensar construção de moradia popular, por uma série de razões específicas. O movimento começou a fazer reuniões naquela região, levou reforço de ocupações de outros lugares, o que foi escandaloso para alguns – “Denúncia: pessoas da Nova Palestina foram ocupar”. Foram sim. Foram fortalecer a construção do movimento, e isso foi muito importante. Essas pessoas não foram obrigadas a nada, foram conscientemente. Não temos nenhum problema em dizer que pessoas de outra ocupação foram se solidarizar e fortalecer uma outra ocupação até que ela se consolidasse. A Copa do Povo nasceu desse processo. É claro que a decisão de ocupar teve uma relação com o processo da Copa do Mundo, é natural. Isso é inegável. Ocupar um terreno em Itaquera a um mês e pouco da Copa não foi por acaso. Seria subestimar a inteligência das pessoas se a gente negasse isso. Mas não foi também simplesmente uma ação abstrata anti-Copa, foi resultado de um processo que a Copa ajudou a produzir, que foi a especulação brutal em Itaquera.
Fórum – Qual é o papel do programa Minha Casa, Minha Vida no acesso à moradia? Você diz que ele enxuga gelo. Por quê?
Boulos – Primeiro, tem a discussão da ausência da política urbana. Essa especulação imobiliária brutal produz novos sem-teto. Começo argumentando com um dado: o Minha Casa, Minha Vida produziu dois milhões de moradias nos últimos cinco anos, desde que o programa existe. O déficit habitacional brasileiro nesse período aumentou. Como se justifica? Porque, por outro lado, subterraneamente, há essa política da especulação imobiliária criando novos sem-teto. Afinal, um dos critérios para definição do déficit habitacional de sem-teto no país é o comprometimento de mais de 30% da renda familiar com aluguel. Esse quesito aumentou brutalmente nos últimos anos, aumentando o déficit, mesmo com a construção de novas moradias. Por isso nós dizemos que enxuga gelo, é uma política habitacional que está girando em falso. Agora, a questão é: ela está girando em falso conscientemente. Não está resolvendo o déficit porque seu objetivo nunca foi esse. O Minha Casa, Minha Vida foi criado em 2009, seis meses depois do estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos, não para resolver o déficit habitacional, mas para dar liquidez às grandes empresas do setor da construção, que estavam à beira da falência, por conta de seus investimentos absurdos e irresponsáveis no mercado financeiro. Essa mesma turma, que financia campanha eleitoral no Brasil desde sempre, bateu na porta do Planalto e disse: “Presidente Lula, nós financiamos sua campanha, agora precisamos de ajuda.” E, em abril de 2009, o Lula lança um pacote de 39 bilhões de reais de subsídio, sendo que, desse total, 38 bilhões foram para as empreiteiras, 500 milhões para habitação rural e 500 milhões para entidades. Foi uma política de emergência, anticíclica, para injetar dinheiro público no setor da construção civil, no setor imobiliário. O programa foi concebido para isso e funciona dentro dessa lógica. Ele acaba, na verdade, sendo parte da lógica de fortalecimento do setor imobiliário, de especulação, de uma anti-política urbana no país. Por isso que temos essa posição em relação ao Minha Casa, Minha Vida. Mas não queremos ser injustos com o programa. É sempre importante dizer isso porque senão a nossa crítica pode ser apropriada por uma visão ainda mais atrasada. Essa turma da direita gosta quando a gente critica o Minha Casa, Minha Vida, mas porque eles são contra o programa por aquilo que ele tem de bom. Primeiro, é o fato de que, em 30 anos, desde o fim do BNH [Banco Nacional de Habitação] na década de 80, não havia sido criada nenhuma política habitacional no país. Nenhuma, só as Cohabs, que são políticas fragmentadas, não federais. Segundo: o Minha Casa, Minha Vida incorporou uma reivindicação histórica das lutas sociais por moradia no país, que é subsídio. Não se resolve o problema habitacional dentro da lógica de mercado de financiamento, porque moradia é uma mercadoria cara. 70% das famílias que compõe o déficit habitacional no país ganham menos que três salários mínimos de renda mensal. Quem está nessa situação, não tem como comprovar condição de pagamento de um crédito imobiliário, então não entra. Todos os programas habitacionais, inclusive o BNH, sempre foram pensados por uma lógica de financiamento. O BNH era um banco. O Minha Casa, Minha Vida não fugiu inteiramente disso, tanto que quem o opera é um banco – a Caixa Econômica Federal. Mas, para a faixa 1, que é a de 0 a 3 salários, o programa deu uma quantidade considerável, que pode chegar até 90%, de subsídio. Isso permitiu que ele atendesse uma parcela da faixa que mais precisa. Essa, na nossa avaliação, é uma virtude do Minha Casa, Minha Vida. Mas, no geral, é um programa vicioso.
“O cerne dos problemas da Copa são essas contradições urbanas, a cronificação e avanço da especulação imobiliária, e por isso construímos uma pauta nesse campo”, diz Guilherme Boulos (Foto: Jornal A Nova Democracia)
Fórum – Você acredita que o precedente aberto para a Copa do Povo possa ser expandido para outras ocupações, não só em São Paulo, mas em todo o Brasil?
Boulos – A vitória de ontem [9 de junho, dia do anúncio de entendimento com o governo federal], para nós, foi muito simbólica e emblemática. Depois de meses de intensa mobilização do MTST, com uma pauta nacional definida, o grosso dessa pauta foi atendido. Conseguimos algumas mudanças no Minha Casa, Minha Vida para fortalecer aquela gota no oceano que é o Minha Casa, Minha Vida Entidades, a gestão direta pelos trabalhadores, que produz habitações com muito mais qualidade e maiores, porque você tira a empreiteira. Um exemplo disso é o que estamos fazendo em Taboão da Serra, na região metropolitana: com o mesmo dinheiro que os caras estão construindo apartamentos de 39m², estamos fazendo 63m², com três dormitórios. Conseguimos também medidas para fortalecer o Minha Casa, Minha Vida, corrigir algumas de suas distorções, e, o que para nós é muito importante, a criação de uma Comissão Federal de Prevenção de Despejos Forçados. Será integrada pelos ministérios das Cidades e Justiça, Secretaria-Geral da Presidência da República e Secretaria de Direitos Humanos e vai monitorar e procurar intervir em casos de despejo conflituoso, violento – buscar inibir novos Pinheirinhos, digamos assim. Há também a vitória da Copa do Povo. A Copa do Povo, em particular, é uma sinalização, e nós queremos tratar assim. O governo morre de tratar assim, deve pensar: “Se a gente ceder para a Copa do Povo, todo mundo vai querer ocupar.” Que bom. É isso que nós pensamos. É importante que haja vitórias para que as pessoas percebam que a organização e a luta popular trazem resultados. É uma forma de nos contrapormos a essa institucionalidade conservadora que temos no Brasil hoje. Para nós, a Copa do Povo é um exemplo do que queremos continuar construindo. Se um imbecil de um Reinaldo Azevedo ler esta entrevista, ele vai escrever um artigo dizendo: “É, não falei, eles vão invadir mais”. É isso. É exatamente isso. Estamos em lados opostos e é isso que vamos fazer. A Copa do Povo é um emblema para continuar e avançar.
Fórum – Você pensa, para o futuro, em uma carreira política atrelada a um projeto eleitoral?
Boulos – Eu já tenho uma carreira política.
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Fonte: Portal Fórum