Relato da M:
Meu nome é M., tenho 22 anos e sou estudante universitária. Pertenço a uma família religiosa e extremamente conservadora. Não gosto de simplificar minha sexualidade a rótulos prontos, mas ter tido relação com homens e mulheres ao longo da minha vida (sem preferências) explica um pouco do que sinto. Me apaixono por pessoas.
Sempre tive uma relação boa com a minha família, até meados de 2010.
Nesse ano, meus pais descobriram sobre mim e nem preciso dizer que a casa veio abaixo: depois de uma discussão exaltada, apanhei, ouvi o quanto minha vida é nojenta e passível de culpa, além de ter sido obrigada a me afastar da minha relação para tirar um tempo para “pensar”.
E ouvi diversas hipóteses que podem explicar a minha não heterossexualidade: quando era pequena, não brincava de boneca e preferia desenhar; também não gostava de usar aqueles vestidos empiriquitados por atrapalhar nas brincadeiras e não gostava de brincar de casinha, e sim de cientista.
Passei todos os dias da minha adolescência e da vida adulta me lamentando e tentando escapar do controle da minha mãe.
Infelizmente, estudo de noite e passo o dia trabalhando, ganho pouco e não tenho condições de morar em uma república (cujos custos de aluguel são divididos e mais “suaves”) e de me virar sozinha com alimentação e com as contas básicas. Por isso, tenho que depender de onde vivo, mesmo bancando todas as outras despesas. Mas um teto é impossível para mim neste momento.
Às vezes, consigo fazer uns bicos e trabalho em dois períodos (além de ir para a faculdade) para dobrar o meu salário, mas parece que nunca saio da estaca zero. Fora que não é sempre que esses bicos aparecem e, por isso, não conseguiriam me sustentar, apesar de eu ter minhas economias (que ainda não são suficientes para nada). Além do mais, não quero ajuda financeira da minha namorada, que tem uma renda maior do que a minha. Tenho um senso de independência um tanto forte.
Para mim, “ser ajudada nas despesas” acabou sendo sinônimo de “você é minha e eu posso fazer o que quiser com você”.
Apesar de toda a situação conturbada da descoberta ter acontecido há um certo tempo, poucas coisas mudaram: meu pai já não fala mais nada; entretanto, minha mãe continua sendo a pessoa controladora que sempre foi.
Tudo o que ela faz é para sabotar minha sexualidade e minha relação. Joga na minha cara que moro no teto dela e que tenho de aceitar as condições que ela impõe, estipula toque de recolher e faz um terrorismo psicológico absurdo. Chegamos a um ponto em que minha mãe me pediu para eu escolher entre ela e a minha relação! Além de já ter me expulsado de casa e eu ter implorado para ficar, já que não tinha para onde ir.
No mais, toda essa situação estremeceu demais meu namoro (que tem já vários anos de existência). E tudo isso fez com que minha namorada ficasse insegura demais a meu respeito. Enquanto ouvi, de um lado, perguntas de quem era o homem da relação (é essa a sociedade patriarcal em que a gente vive, na qual é imprescindível a relação de um homem, senão não é relação), ouço, de outro, minha namorada questionando meu círculo de amigos, perguntando com quem tanto eu converso e querendo saber de tudo na minha vida. Até hoje nunca consegui falar de nada disso com ninguém, de detalhes do ocorrido na minha casa, do circo de horror em que vivo durante anos.
Você deve receber centenas de e-mails como este por dia e nem sei se vai ter tempo para ler. Mesmo que não leia, só de transpor isso tudo para o papel está me fazendo bem. Sou uma pessoa fechada demais e acabo me sufocando com os meus próprios sentimentos.
Bom, eu apenas gostaria de dizer, para não sei ao certo quem, que vou sair dessas amarras emocionais e psicológicas e vou viver intensamente quem eu sou.
Tenho muito orgulho de mim. E gostaria de falar para todos os gays, lésbicas, transgêneros e para todos aqueles que não nasceram conforme as regras dos bons costumes desta sociedade do século XXI (que mais parece do século XVI) as seguintes coisas: não desistam, tenham sonhos, criem um alicerce, um objetivo de vida e lutem, lutem muito. Lutem para ter dignidade, lutem para ter respeito, lutem por seus direitos. Estou fazendo isso no que posso, mesmo com essa maldita condição financeira.
Li uma enxurrada de notícias sobre violências a gays, que me motivaram a escrever este texto. Especialmente uma em que um pai fez ameaças de morte ao namorado do filho em pleno shopping, no horário de almoço, e manteve o filho em cárcere privado, e ninguém fez nada. Ali, todo mundo foi omisso e todo mundo consentiu. Não só ali, mas nos inúmeros casos de agressões por dia, como naquele dos playboys que bateram no rapaz atravessando a rua ou naquele outro em que rapazes foram feridos com uma lâmpada, e em todos os estupros corretivos que acontecem sempre, mas que não são noticiados.
Desejo, do fundo do meu coração, que vocês reúnam suas forças e optem por sair de casa, e não por tirar suas vidas. Eu também vou conseguir.
Fonte: Escreva Lola Escreva