‘Guerra Fria’ é uma fascinante epopeia romântica e musical sobre a Europa pós-1945

Imagem- Divulgação

Há filmes que tratam de fatos históricos e, não raro, pecam pela imprecisão e pela superficialidade da abordagem. Existem também os que se apropriam da História apenas como pano de fundo, e pouco ou nada contribuem para a compreensão da época retratada. Guerra Fria, do cineasta polonês Pawel Pawlikowiski, não cai em nenhuma dessas armadilhas. É uma transcendente obra de ficção, cuja trama passa-se nas duas décadas que sucedem o término da Segunda Grande Gerra. A epopeia amorosa narrada materializa e pessoaliza um momento do século 20 quando o mundo, sobretudo o continente europeu, estava dividido entre duas superpotências: Estados Unidos e União Soviética.

Indicado ao Oscar em três categorias – melhor filme estrangeiro, direção e fotografia (assinada por Lucasz Zal) – Guerra Fria tem muitas conexões com o premiado Ida (2014), longa-metragem anterior de Pawlikowiski que discute de forma corajosa e intimista um tema delicado: a participação da Polônia no Holocausto, falando de culpa, omissão e busca pela verdade depois de 1945, mesmo período da ação de Guerra Fria. Os pontos em comum entre as duas obras, contudo, não param por aí.

Como em Ida, a fotografia em preto e branco e a opção pela tela quadrada não são caprichos estéticos. Tem uma razão de ser: o mais importante no cinema de Pawlikowiski, vencedor do prêmio de melhor direção último no Festival de Cannes por Guerra Fria, são as pessoas, e não apenas as localidades. Ele fala do impacto da geografia, em suas implicações políticas e sociais, quase sempre opressivas, sobre os protagonistas Wiktor (Tomasz Kot) e Zula (a revelação Joanna Kulig), que em muitas cenas estão confinados à parte inferior dos planos.

Ao mesmo tempo em que que o filme é uma arrebatadora história de amor, Guerra Fria também se revela um potentíssimo musical. A ação se inicia na virada dos anos 1950, quando Wiktor e Irena (Agata Kulesza, de Ida) viajam pelo interior da Polônia, já sob o jugo soviético, pesquisando manifestações da música folclórica de seu país, e buscando cantores e dançarinos que possam participar de um espetáculo que pretendem montar em Varsóvia. Trata-se de um projeto de afirmação identitária e cultural em uma nação assolada primeiro pela ocupação nazista alemã durante a Guerra e, depois, pelo controle político e ideológico dos russos.

Como em Ida, a fotografia em preto e branco e a opção pela tela quadrada não são caprichos estéticos.

Durante o processo de escolha do elenco, Wiktor conhece Zula, uma jovem cantora talentosa de temperamento intempestivo e com um passado obscuro que o cativa instantaneamente. Ela é escolhida para dançar e cantar no espetáculo, que se torna um imenso sucesso quando estreia, mas acaba sendo muito rapidamente instrumentalizado pelo governo pró-soviético, para desespero de seus idealizadores. Os números musicais são impressionantes, de enorme importância dentro da trama, desempenhando função narrativa essencial, como a sequência em que Wiktor e Irena são forçados a inserir uma canção em louvor ao líder soviético Jozef Stalin, com uma imensa imagem do ditador russo ao fundo.

A distorção dos objetivos tanto da pesquisa quanto da montagem em si causa revolta em seus idealizadores, fazendo com que Irena se afaste e Wiktor opte por fugir para França, durante uma série de apresentações em Berlim. Zula, com quem ele agora vive uma intensa paixão, desiste do exílio na última hora, e o deixa partir sem ela. A separação geopolítica entre Europa Ocidental e Oriental também se materializa na vida do casal, que passa a viver uma guerra particular de encontros, desencontros, dor e ressentimentos, em um filme no qual macro e micro, vida pública e privada, se confundem, assim como no notável longa-metragem alemão A Vida dos Outros (2006), de Florian Henckel von Donnersmarck, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro.

As idas e vindas do amor entre Wiktor e Zula ao longo da década de 50 até os anos 60 constituem uma aula de História Contemporânea, conduzida por Pawlikowiski com mestria. Seu rigor estético é impressionante – cada plano é uma pintura a ser contemplada, meticulosamente concebido, mas não em uma busca vazia e exibicionismo pelo belo. Há sempre algo sendo dito por meio das imagens – o plano de Zula boiando e cantando no rio, que parece leite na expressionista fotografia em preto e branco, permite leituras profundas sobre a sujeição dos indivíduos a uma ordem maior opressora que lhes rouba o direito a escolhas fundamentais, a busca pela felicidade.

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