Por Manuel Augusto Araújo.
Guernica é, provavelmente, das obras de arte mais reproduzidas. É, com a Gioconda de da Vinci, As Meninas de Velá
squez, a Ronda da Noite de Rembrandt, uma das pinturas mais conhecidas. O seu enorme poder simbólico não se desgasta com a usura do tempo. Tem ainda o valor complementar de demonstrar de forma inequívoca que a arte não se desvaloriza por ser politicamente comprometida.
Em Guernica a arte fala ao mundo como instrumento de consciencialização e, em plano secundário, processo de politização. A arte marca encontro com a política afirmando-se na plenitude dos seus materiais e ferramentas, sem nunca perder o controlo e o comando do processo de produção da obra de arte mas sem deixar que a estetização acabe por silenciar a mensagem política que o pintor queria transmitir.
A carga emocional quando se olha hoje para Guernica não é a mesma que se tinha quando foi exposta pela primeira vez. O bombardeamento da vila era notícia recente anunciando a barbárie nazi-fascista que iria invadir a Europa. A guerra de Espanha era o cenário em que se confrontavam a solidariedade internacionalista, a força bruta fascista, as traições por omissão ou negação das democracias ocidentais.
Guernica era um sinal de aviso que Hitler enviava ao mundo e devia ser um sinal de alarme para esse mesmo mundo. É nessas circunstâncias que Picasso pinta Guernica sem baixar o volume das sirenes que acciona, nem fissurar as emoções que grita bem alto. Tudo isso é memória para quem hoje olha para Guernica, memória que o mural não deixa apagar.
É o destino inexorável de todas as obras de arte que têm sempre a ver, sem nunca perderem, com a história do mundo e, em particular, com os contextos históricos em em que foram realizadas. Deles se vão libertando, sublinhando a sua intemporalidade. Essas são as grande obras de arte: Flauta Mágica de Mozart, Divina Comédia de Dante, Macbeth de Shakespeare, Regra do Jogo de Renoir, Guernica de Picasso.
Obras que não sujeitam os objectos de arte a uma comunicação literal em que o significado simbólico se acaba por perder e os fragiliza enquanto objectos estéticos, mas também obras que não embarcam num processo de estetização que as condenam à utilização publicitária da forma, a sublime inutilidade da fortuna histórica de todos os formalismos. Obras em que a política não coloniza a arte nem a arte coloniza a arte.
Talvez, como em nenhuma outra obra, as reproduções de Guernica não consigam transmitir o impacto que tem a quem a vê hoje no Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia. A dimensão, 3,50 x 7,80 metros, é um óbice. Nas reproduções há a percepção das linhas principais que conduzem imediatamente a atenção para os núcleos fundamentais do mural, mas a força imediata que guia o olhar confrontado com o original fica enfraquecida.
«Mais que contemplar, Picasso obriga a que o espectador participe racionalmente, sem perder a emoção.»
As várias personagens, mesmo nos formatos mais reduzidos, podem ser e de facto são normalmente transcritas em todos os seus pormenores, o que possibilita leituras bastante aproximadas da realidade, mas perdem muito do seu peso específico. O que é impossível reproduzir são os brancos fulgurantes, todas as subtilezas dos contrastes, dos cinzentos que destacam os negros, as diversas espessuras das linhas. O assombro brutal do primeiro olhar descrito por André Breton como tendo um efeito cegante. Um primeiro momento em que se fica aturdido, atingido por um flash fotográfico que, no momento seguinte, é uma iluminação reveladora.
O normal modo de ver uma obra de arte, de contemplar uma obra de arte em que o espectador vê, analisa e admira uma obra enquanto coisa remota, do passado, sem se situar ou mesmo considerando desnecessário situar-se na história é uma impossibilidade. Mais que contemplar, Picasso obriga a que o espectador participe racionalmente, sem perder a emoção. Não permite que fique privado da sua história para que a história do passado não seja mistificada, não deixe de lhe pertencer.
Guernica é uma obra épica na acepção brechtiana. O pintor é o narrador de um acontecimento que o mundo testemunhou que ele transpõe para a tela de forma objectiva como se tivesse sido um dos participantes desse sucesso.
Finge ter presenciado o bombardeamento, sobrevivendo para deambular por entre vítimas e ruínas e as pintar, tornando a realidade mais real que a realidade para que os espectadores, dos primeiros aos últimos, que nunca serão o último de hoje, nem um outro que o irá ver à distância de anos luz, compreendam o que lhes é mostrado, que faz parte do seu quotidiano mesmo que não se repita nem o vivam.
Guernica tem esse fim didáctico quando elimina todas as ilusões dos impactos mágicos da arte burguesa e das tergiversações das elites que extraem a arte dos seus contextos históricos, usando o subterfúrgio de já não fazerem sentido nos tempos actuais, com o fim último de justificar retrospectivamente o papel das classes dirigentes, o que se pode ler em muitos estudos publicados sobre arte e é controvertido em muitos outros.
Muitos são os estudos1 que se fizeram e continuam a fazer sobre Guernica. Há uma leitura coincidente nos seus traços essenciais e grandes divergências na leitura dos seus elementos.
São conhecidos 45 esquiços que Picasso datou na sua maioria. É provável que outros tenham sido feitos, como é provável que o pintor os tenha destruído. Os primeiros cinco esquiços têm a data de 1 de Maio.
Guernica foi bombardeada a 26 de Abril de 1937, as notícias surgiram logo no dia seguinte. A indignação internacional acontece a 28, quando no Times, Daily Express, New York Times e Ce Soir reportagens dramáticas foram publicadas. São esses relatos que têm imenso impacto em Picasso.
O pintor tinha recebido, em Janeiro desse ano, uma encomenda do governo republicano para realizar um grande mural no pavilhão de Espanha, na Exposição Universal de Paris. Fez duas gravuras, Sonho e Mentira de Franco, duas composições divididas em nove quadrículas, à maneira de banda desenhada em que escarnecia o ditador.
Do projecto para o mural não se conhece qualquer ideia, embora elementos dessas duas gravuras fossem, com forte probabilidade, ontos de arranque. Com o bombardeamento de Guernica, Picasso encontrou a espoleta que deflagrou a sua prodigiosa imaginação.
Logo no dia 1, desenhou a lápis sobre papel azul cinco esquiços e um outro a lápis sobre madeira e gesso. Quatro são projectos de composição e dois estudos de um cavalo que figura nos projectos de composição. Outra das figuras que aparece em todos os esboços de composição é a mulher que, de uma janela, estende um longo braço segurando um candeeiro.
Figura mais definida num estudo de composição feito a 2 de Maio e um outro, a 9 de Maio e que é central na obra final. Os outros estudos que foi realizando imcidem sobre as personagens do mural cujo primeira fotografia data de 11 de Maio. Algumas já existiam em algumas das quadrículas das gravuras Sonho e Mentira de Franco. É admirável o trabalho desenvolvido por Picasso enquanto pinta o mural, tal como a diversidade dos materias utilizados, desenhos a lápis, gravuras, pinturas a óleo.
Para memória futura, Dora Maar fez sete fotografias que dão a ver a evolução da obra.
Na primeira foto, três coisas a sublinhar: a já referida mulher que sai da janela transportando um candeeiro, uma fortíssima diagonal que vai de baixo para cima e da direita para a esquerda, que dirige o olhar do espectador para o candeeiro que a mulher segura, um musculoso braço de punho fechado que irá desaparecer no terceiro registo fotográfico e que, embora o ângulo da fotografia não possa deixar afirmar com certeza, divide o quadro pela clássica regra de ouro.
Na parte inferior do quadro, na sua base, destroços humanos e materiais. Braços, espada, patas de cavalo, mãos, pés que se alteram e até mudam de sítio durante o processo pictórico, são o chão de onde se erguem as vigorosas personagens que vibram dor, violência e a luz de esperança transportada na mão da mulher que lança o seu o seu braço firme sobre aquele apocalipse.
Picasso vai dando substância aos personagens, mudando-lhe posições, atitudes, desmenbrando-os, completando-os. Faz surgir uma luz no topo do quadro que espalha luz e sombras, sempre presente desde o primeiro estado, a mulher empunhando um candeeiro, a luz que quer dar a inteligência racional naquele caos.
A primeira diagonal continua bem nítida para nos orientar. Faz o lado de um triângulo, a outra aresta existe, sente-se embora só enunciada. O vértice é o topo do candeeiro. Um traçado triangular de uma estrutura piramidal aparente que solidifica e dramatiza as personagens e as suas interligações: a mulher no lado direito que grita com a outra que quer fugir, a mater dolorosa do lado esquerdo com o filho morto nos braços, o guerreiro que foi cada vez mais desmembrado enquanto o quadro encontrava a forma final.
O cavalo e o touro, imagens extremamente impressivas, muito trabalhadas tal como a cabeça da mulher chorando nos estudos, sobre cuja simbologia há as mais díspares e até antagónicas interpretações, para uns o cavalo é o franquismo e o touro o povo, para outros o contrário. Bem lá no fundo, entre cavalo e touro, uma ave morta sobre uma mesa numa quase invisibilidade.
Guernica é a evidência da portentosa imaginação criadora de Picasso. É um exercício extraordinário alinhar todos os estudos que o pintor fez e ver como se cruzam, enlaçam, contaminam e ressurgem no mural quando Picasso o deu por terminado. Como Guernica, com tantos elementos heterogéneos explorados pelo artista, alguns inesperados, alcança uma unidade soberba e deslumbrante. Talvez por Picasso associar à sua transbordante imaginação criadora uma paixão avassaladora pela humanidade e pela vida.
Todas as descrições e interpretações são sempre insuficientes perante aquela obra portentosa que é universal. Um símbolo intemporal dos horrores e da irracionalidade que a guerra provoca, seja a Guerra dos Cem Anos, a II Guerra Mundial, a guerra do Vietnam, as que decorrem no Oriente Médio. Todas as guerras que destroçam a humanidade. Guernica é, na história de arte, obra ímpar, inigualável, património de toda a humanidade.
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- 1.Arnheim, Rudolf; El «Guernica» de Picasso, Génesis de uma pintura, Editorial Gustavo Gili, Barcelona 1976. Larrea, Juan; «Guernica, Cuadernos para o Diálogo», Madrid 1977. Palau i Fabre, Josep; «El Guernica de Picasso», Editorial Blume, Barcelona 1979. Miró, Joan; Renau, Josep; Sert, Josep Lluis; Tussell, Javier; Chipp, Herschell B.; «Guernica-Legado de Picasso», Direccion General de Bellas Artes Archivos y Bibliotecas, Ministerio da Cultura, Madrid 1981.
Fonte: Abril Abril.