Tempos extraordinários pedem novos olhares. O Grupo Corpo volta à cena no diapasão da renovação e da delicadeza com Primavera, coreografia inédita de Rodrigo Pederneiras sobre música da dupla Palavra Cantada, com 14 de suas canções adaptadas para uma trilha instrumental. O espetáculo estará em Florianópolis, no Teatro Ademir Rosa (CIC), nos dias 19 e 20 de abril, às 21h. É tempo, assim, de recomeçar, com a ideia da estação das semeaduras, em que um novo ciclo se apresenta. Alinhado à percepção de recomeço associada à estação do ano, o regresso do Corpo está envolto em cor e leveza.
“Estávamos presos nas nossas casas”, conta Rodrigo Pederneiras, “sem poder ensaiar, reunir o grupo, programar um espetáculo, projetar uma temporada, com os bailarinos fazendo aulas remotas”. Havia, claro, o horizonte das lives pelas plataformas digitais; e, nos últimos 18 meses, o grupo veio liberando gravações de balés e fazendo diversos eventos nas plataformas digitais, para o público. Nesse viés, em dezembro de 2020, começou a nascer a ideia de criar peças curtas, montar novas coreografias para a internet. E foi bem nesse ponto que uma conversa casual pelo whatsapp alinhou, num tedioso domingo à noite, o coreógrafo mineiro e o compositor Paulo Tatit, conhecidos de longa data.
“Foram quatro horas de mensagens pra cá e pra lá”, lembra, rindo, Tatit. “E surgiu a ideia de selecionarmos e adaptarmos os playbacks da Palavra Cantada. Enviamos, Sandra e eu, dezenas de playbacks dos nossos 27 anos de carreira. Rodrigo selecionou 14 deles e começamos a trabalhar”, diz o compositor.
O conjunto foi se ajustando, se complementando, ganhando uma feição, traduzida em módulos que fluíam. Florescendo, por assim dizer; e deixando de remeter ao universo infantil. Saíram as vozes, as melodias praticamente desapareceram, entraram novos instrumentos. O projeto que nascera em forma de peças curtas e independentes para a internet ganhou unidade – foi virando um conjunto. Emergiu uma continuidade. “Prelúdios, de 1985, parte de uma ideia assim: são peças soltas unidas pela coreografia”, complementa Rodrigo. Dessa vez, o romântico Chopin deu lugar ao sofisticado som do trabalho de Tatit e Peres para as crianças. “Eu diria que são divertissements”, avança o diretor artístico Paulo Pederneiras, referindo-se ao gênero que define pequenas peças de música ou dança, abordado por grandes criadores. De novo, a necessária leveza em tempos tão difíceis.
Com as adaptações, a remixagem e alguns acréscimos, a trilha emergiu – e seu conjunto encadeia uma gama de estilos musicais às vezes bem contrastantes, indo de um jazz light à percussão afro, em seus 36 minutos de duração. “Construímos um balé completamente diferente, singular, com a música de alta qualidade da Palavra Cantada”, define Rodrigo. “Diferente também porque é, como uma primavera, uma antecipação de dias melhores. Conjuramos assim um futuro mais ameno e, por que não?, mais feliz”.
Três pas-de-deux e distanciamento
Assim, nascido na pandemia, o balé incorpora – e, de certo modo, abraça – as interdições do momento. “Há somente três pas-de-deux”, comenta Rodrigo Pederneiras. “Só se tocam os bailarinos que são casais, vivem juntos” – Agatha e Lucas, Mariana e Elias, Karen e Rafael. “O restante do espetáculo se desenvolve em duos, trios, quartetos e todos mantêm distância entre si; há somente uma cena com oito bailarinos”.
Apesar do distanciamento físico entre os bailarinos, curiosamente a sensação de proximidade é forte – e os destaques individuais, mais constantes. “Em Primavera, temos a chance de ver cada elemento da companhia de maneira mais focada, mais íntima”, ressalta Rodrigo.
Trilhando
“É simplesmente um grande privilégio, é comovente ver o nosso trabalho vibrando, fisicamente, no balé do Grupo Corpo. onde passamos a enxergar a música; ela se materializa”, diz Sandra Peres. “Levar a nossa música para o universo adulto, com outro recorte, tem sido uma experiência fabulosa”. Há 27 anos, a Palavra Cantada – Sandra Peres e Paulo Tatit – vem trazendo ao público infantil música de qualidade indiscutível (“pensamos nessa qualidade como a melhor nutrição artística possível, da mesma forma que um alimento para as crianças precisa ser muito nutritivo”, ela completa) e propostas artísticas instigantes.
Aqui, o caráter infantil das canções originais como que se dissolve na adaptação que chega perto de uma recriação. “Com a supressão da letra, da voz cantada e de boa parte das linhas melódicas, fomos inserindo linhas de piano, violão, contrabaixo e alguns vocalises”, explica Paulo Tatit. “A base instrumental é bem aberta e o resultado ficou muito sofisticado”, completa.
Na trilha de Primavera, portanto, surgem 14 das canções de Paulo Tatit e Sandra Peres – compostas e gravadas entre 1999 e 2017 (relação completa no final do texto) -, remixadas e retrabalhadas. Papel fundamental foi o do produtor, músico e engenheiro de som Ricardo Mosca, que tratou de equilibrar e uniformizar o som de cozinhas instrumentais gravadas em estúdios diferentes, com recursos variados. “Muita coisa foi repensada para deixar a música mais pulsante”, conta Mosca, “com excelência na sonoridade”.
Projeções e cor
Na construção da linguagem cenográfica de Primavera, a ideia inicial – de criar peças menores para a internet – ficou no fundo da cabeça de Paulo Pederneiras, diretor artístico e cenógrafo do Corpo. “Quando vimos que havia ali um arco, um conceito, um espetáculo inteiro, eu já estava testando o uso de câmeras e decidi tirar partido dessa ideia”, explica. “No espetáculo, posicionamos duas câmeras minúsculas à frente do palco, operadas da coxia, trabalhamos as projeções dos bailarinos em tempo real, projetadas numa tela de tule preto, atrás da cena”. É a primeira vez que a companhia usa o recurso em seus espetáculos.
No contraste com a caixa cênica negra, os figurinos criados por Freusa Zechmeister para as bailarinas são monocromáticos, em cores fortes – tons de amarelo, laranja, vermelho e verde -, com saias de musseline amassada que voejam, bordando o ar, sobre collants. Já os homens envergam figurino mais clássico, calças pretas de neoprene, com corte social mais despojado, com camisetas justas, off-white, em malha de algodão.
GIRA
A noite termina com Gira, de 2017, de movimentos inspirados na umbanda, com a trilha poderosa do Metá Metá. A logística da cena sofreu adaptações: como os bailarinos não deixam nunca o palco – quando não estão no ‘terreiro’, o retângulo iluminado, se colocam nas cadeiras em torno, sob véus negros – as movimentações foram recalculadas para evitar ao máximo o contato e a proximidade.
GIRA
[2017] Coreografia: Rodrigo Pederneiras / Música: Metá Metá
Cenografia: Paulo Pederneiras / Figurino: Freusa Zechmeister
Iluminação: Paulo Pederneiras e Gabriel Pederneiras
Os ritos da umbanda – a mais cultuada das religiões nascidas no Brasil, resultado da fusão do candomblé com o catolicismo e o kardecismo – são a grande fonte de inspiração da estética cênica de Gira. Exu, o mais humano dos orixás – sem o qual, nas religiões de matriz africana, o culto simplesmente não funciona – é o motivo poético que guia os onze temas musicais criados pelo Metá Metá para Gira.
Mergulhar no universo das religiões afro-brasileiras para se alinhar ao tema proposto pelo Metá Metá foram as primeiras providências dos criadores do Grupo Corpo. Mas engana-se quem pensa que vai assistir a uma representação mimética dos cultos afro-brasileiros. Alimentado pela experiência em ritos de celebração tanto do candomblé quanto da umbanda (em especial as giras de Exu), Rodrigo Pederneiras (re)constrói o poderoso glossário de gestos e movimentos a que teve acesso.
Concebido como uma instalação, o não-cenário assinado por Paulo Pederneiras cobre com o mesmo tule negro os corpos dos bailarinos sempre que estão fora da cena, transformando-os em éter, e as três paredes da caixa-preta, criando uma ilusão quase espectral de infinito. Nos figurinos, Freusa Zechmeister adota a mesma linguagem para todo o elenco, independente do gênero: torso nu, com a outra metade do corpo coberta por saias brancas de corte primitivo e tecido cru.
P r i m a v e r a
[2021]
Coreografias: Rodrigo Pederneiras Música: Palavra Cantada
Cenografia: Paulo Pederneiras Figurinos: Freusa Zechmeister
Iluminação: Paulo Pederneiras e Gabriel Pederneiras
Duração: 36 minutos
Intervalo: 20 minutos
Gira
[2017]
Coreografia: Rodrigo Pederneiras Música: Metá Metá
Cenografia: Paulo Pederneiras Figurinos: Freusa Zechmeister .
Iluminação: Paulo Pederneiras e Gabriel Pederneiras
Duração: 40 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
De Sandra Peres e Paulo Tatit – Palavra Cantada / Produção e remixagem: Ricardo Mosca
1) Pé com pé (Sandra Peres e Paulo Tatit) Do álbum Pé com Pé (2006)
2) O Explorador (Sandra Peres/ Zé Tatit) Versão para Youtube
3) Oiá (Sandra Peres / Arnaldo Antunes) Do álbum Pé com Pé (2006)
4) Bolinha de sabão (Paulo Tatit) Do álbum Um Minutiiinho! (2012)
5) O camaleão (Paulo Tatit/ Zé Tatit) Do álbum Mil Pássaros (1999)
6) Bruxa feia (Paulo Tatit/ Zé Tatit) Do álbum Um Minutiiinho! (2012)
7) Olha o nenê (Paulo Tatit) Do álbum Um Minutiiinho! (2012)
8) Passeio do bebê (Paulo Tatit/ Zé Tatit) Do álbum Bafafá (2017)
9) Então tá combinado (Paulo Tatit/ Zé Tatit) Do álbum Um Minutiiinho! (2012)
10) África (Sandra Peres, Paulo Tatit / Arnaldo Antunes) Do álbum Pé com Pé (2006)
11) Bolacha de água e sal (Sandra Peres e Paulo Tatit) Do álbum Pé com Pé (2006)
12) Menina moleca (Paulo Tatit/ Zé Tatit) Do álbum Pé com Pé (2006)
13) Canção dos alienígenas (Sandra Peres/ Zé Tatit) Do álbum Bafafá (2017)
14) Meu lugar (Sandra Peres / Luiz Tatit) Versão para Youtube
Projeto viabilizado pela LEI FEDERAL DE INCENTIVO À CULTURA
Patrocínio premium: INSTITUTO CULTURAL VALE
Patrocínio master: ARCELORMITTAL
Realização: SECRETARIA ESPECIAL DA CULTURA, MINISTÉRIO DO TURISMO, GOVERNO FEDERAL
SERVIÇO
GRUPO CORPO
“Primavera e Gira”
Dias: 19 (terça-feira) e 20 (quarta-feira) de Abril
Horário: 21h
Local: Teatro Ademir rosa – Centro Integrado de Cultural (CIC) – Endereço:
Av. Gov. Irineu Bornhausen, 5600 – Agronômica, Florianópolis – SC
Ingressos: www.diskingressos.com.br e na bilheteria do teatro