A negligência por parte do poder Executivo e o endosso, sem lastro científico, a um medicamento que supostamente pode ser eficiente não são características exclusivas da pandemia do novo coronavírus, afirma a médica e historiadora Dilene Raimundo do Nascimento, em entrevista ao UOL. O Brasil passou por situação semelhante há cem anos, durante a gripe espanhola, que deixou cerca de 50 milhões de mortes no mundo.
Não há uma contabilização exata das vítimas no país, mas estima-se que 35 mil pessoas tenham sido mortas por conta daquela epidemia — 15 mil só no Rio de Janeiro, capital do país à época.
No domingo de páscoa, contrariando médicos e os levantamentos e projeções do Ministério da Saúde, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou, em uma live com líderes religiosos, que “está começando a ir embora essa questão do vírus”, reforçando sua posição contrária ao isolamento social recomendado pelo ministério e pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
“Durante as epidemias, historicamente, é muito comum a demora em tomar medidas. Há receio em acreditar que a situação é realmente grave. Isso aconteceu em relação à gripe espanhola. Isso de [o presidente] falar que é ‘uma gripezinha’ acaba atrapalhando a ciência. Vivemos um momento distinto daquele, mas é comum que a primeira manifestação seja de negação”, diz Dilene, pesquisadora da Coc/Fiocruz (Casa de Oswaldo Cruz).
Minimização
Quando a gripe espanhola desembarcava no Brasil, em 1918, o país não tinha um ministério da Saúde e estudava a formação de um órgão que concentrasse os setores de saúde pública. Somente em 1920 foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, órgão equivalente à pasta. Hoje, o ministério representa posição antagônica à do presidente na pandemia e tem endossado as medidas restritivas adotadas nos estados onde há mais casos.
No início do século passado, os brasileiros não demonstraram preocupação imediata com a gripe espanhola — que ganhou esse nome por conta da imprensa daquele país, uma das poucas que tinha liberdade para relatar os fatos em meio à Primeira Guerra Mundial. Os jornais brasileiros, antes de o vírus chegar por aqui, ignoravam ou davam pouco espaço aos relatos. Depois, passaram a cobrar as autoridades por medidas consistentes na área da saúde pública.
Quando o caos se instalou no país, o então presidente Venceslau Brás se tornou o primeiro alvo da imprensa. Em outubro de 1918, quando seu mandato estava acabando, os jornais destacavam sua “inoperância” frente à gripe espanhola. O diretor de saúde pública naquele ano, Carlos Seidl, foi chamado pelos jornais de “cretino”. As críticas fizeram com que a gripe passasse a ser chamada, à boca pequena, de “mal de Seidl”.
Em determinado momento, Seidl tentou atribuir aos doentes um “caráter de benignidade”, conforme descrito pelo microbiólogo Maulori Cabral e pelo virologista Hermann G. Schatzmayr, no livro “A Virologia no Estado do Rio de Janeiro” (Fiocruz, 2ª edição, 2012). Depois, Seidl admitiu que a gripe poderia não ser controlada pelo Estado, o que gerou mais pânico e apreensão.
“Tem um registro de que o Carlos Seidl foi a uma reunião na Academia Nacional de Medicina [instituição médica brasileira fundada em 1829], e ele disse que se tratava de apenas um tipo de influenza, só mais um resfriado”, conta Dilene. Seidl renunciou em outubro de 1918, dando lugar a Theóphilo Torres, que chamou o médico sanitarista Carlos Chagas para ocupar a linha de frente no combate à gripe. Ele assumiu praticamente no pico da doença, que acabou se alastrando por conta da inépcia do poder público na sua fase inicial e da falta de estrutura na saúde.
“O episódio acabou abrindo caminho para a reforma dos serviços de saúde pública no estado, a partir de 1919, com a ativa participação de Carlos Chagas”, escrevem Cabral e Schatzmayr.
Tratamentos milagrosos
De acordo com a Fiocruz, cientistas conseguiram sequenciar em 2005 o vírus que acometeu a população durante a gripe espanhola. Tratava-se da Influenza A (H1N1). Durante a pandemia, no entanto, não havia o conhecimento detalhado do vírus. Guardadas as devidas proporções, o novo coronavírus, pelo seu aspecto relativamente inédito, também continua gerando mais perguntas do que respostas. Sua origem e sua taxa de mortalidade e de transmissão seguem como incógnitas.
Como no século passado, há espaço para que tratamentos ainda sem respaldo científico sejam propagados como milagrosos. “Remédios” como a Água Purgativa Queiroz, as Pílulas Sudoríficas de Luiz Carlos ou as Balas Peitoraes estampavam os classificados dos jornais em 1918; hoje, a hidroxicloroquina monopoliza o debate público.
“Vários médicos aproveitaram para fazer dinheiro. Isso desencadeou o aparecimento de remédios nunca vistos, ou que durante a epidemia ganharam atribuições curativas para a influenza. Já as autoridades públicas limitavam-se a orientar a população a evitar lugares de aglomeração”, diz um artigo do jornalista Rodrigo de Oliveira Andrade, publicado na Revista Pesquisa Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Entre os tratamentos utilizados na época, sem comprovação de eficácia, estavam as soluções de quinino (substância com funções antitérmicas e analgésicas, retirada da casca da árvore cinchona).
Cientificamente eficaz contra doenças como malária, este alcaloide de gosto amargo foi substituído, com o passar das décadas, pela cloroquina (sintetizada artificialmente) — tratada pelo presidente Jair Bolsonaro como um remédio “que está dando certo em todo lugar” contra o novo coronavírus.
“A população, ante a ausência de tratamentos para se livrar da doença, cria várias receitas. O quinino, por exemplo, era usado para tudo na época. As pessoas morriam de gripe espanhola, mas poderiam também estar morrendo em função do tratamento. Hoje sabemos que a cloroquina tem efeitos colaterais muito importantes, não é para tomar por autoindicação”, diz a professora Dilene Raimundo do Nascimento.
Não há comprovação científica em relação ao efeito da cloroquina diante da covid-19, e publicações de Bolsonaro nas redes sociais foram apagadas pelas plataformas Twitter e Facebook, sob alegação de que o presidente está compartilhando informações falsas. “A gravidade [no apoio de Bolsonaro à cloroquina] está no seguinte: no momento de epidemia tem de haver uma fala uníssona. Quando cada um fala uma coisa diferente, acaba confundindo a população. O Ministério da Saúde recomenda tal medida, e aí vem outra pessoa que tem um posto de liderança e diz outra coisa totalmente diferente. A população fica como?”, questiona a pesquisadora da Fiocruz.