Por Luís Costa Pinto.
MICOS AMESTRADOS
A greve geral da última sexta-feira, que paralisou parcela relevante e majoritária do país, aprofundou também o fosso que aparta a mídia tradicional brasileira do Brasil real. Veículos como a Rede Globo (TVs aberta e fechada, suas rádios, jornais e sites), TV Bandeirantes e sua rádio, jornais O Estado de S Paulo, Correio Braziliense e muitos outros títulos regionais parecem habitar um bloco de gelo que já se separou do continente e navega num mar de rosas particular.
O bloco, transformado em iceberg, assiste de longe ao derretimento continental. Mas seus arautos áulicos preferem crer que o mar de rosas enxergado só por eles irá congelar e reconstruir caminhos capazes de lhes conduzir de volta ao meio de onde vieram, e onde haviam reinado. A Folha de S Paulo, desesperada e na dúvida, segura-se com uma mão na beira do abismo formado entre o iceberg e a placa continental em chamas. Em razão disso, ainda é dentre eles o único veículo capaz de relatar com alguma fidelidade o que se passa na vida real.
No universo paralelo do iceberg que está a vagar por águas incandescentes não houve greve geral – houve “paralisações pontuais” e “protestos promovidos por centrais sindicais”. O entardecer da sexta-feira, que levou às ruas das principais metrópoles vigorosas manifestações de repúdio a uma agenda de reformas econômicas que carece de chancela popular, posto não ter emergido das urnas, foi o “encerramento com protestos de grupos violentos, entre eles black blocks”.
Em seu desespero e confusão mental produzida por quem parece estar mais atenta a ter tudo o que todos têm e menos à qualidade do que publica, sem saber se é uma foca destinada a se conservar placidamente na praia iceberguiana ou se é uma orca com gana predatória por notícia, a Folha de S Paulo produziu a pérola destinada a sintetizar o vergonhoso momento da mídia tradicional brasileira: ante sequência irrefutável de imagens que mostravam um capitão da Polícia Militar de Goiás desferir violento golpe de cassetete contra a cabeça do estudante Mateus Ferreira da Silva, durante os protestos em Goiânia, descreveu o ato de violência desproporcional como tendo sido praticado por “um homem trajado de policial militar”.
A atitude do jornal foi tão covarde quanto a do capitão Augusto Sampaio de Oliveira Neto, subcomandante da 37ª Companhia da Polícia Militar de Goiás. Ele foi o agressor de Mateus, usou de força tão desproporcional que o porrete quebrou na cabeça do estudante. Mateus respira por aparelhos, corre risco de morte. O mau jornalismo que produziu o relato parcial do crime quase consumado contra o universitário goiano, contudo, é apenas a síntese parcial de um conjunto patético de veículos de comunicação que já não sabem refletir sobre o papel destinado a eles na sociedade. Dentre todos esses veículos os casos mais abrasivos de divergência entre o fato e a versão são protagonizados pelas TVs Globo e GloboNews e pela rádio CBN.
Na quinta-feira 27 de abril, como relatado aqui e em diversos outros espaços destinados a tentar flagrar uma crônica lógica do dia a dia político do Brasil, os veículos das Organizações Globo esconderam a greve convocada para a sexta-feira. Quando a greve eclodiu, com sucesso, na manhã do dia 28, os telejornais vespertinos pareciam surpresos e tentavam bancar o papel de guardiães do serviço público focando nos “transtornos” do movimento paredista à população e tratando a greve como “protestos de centrais sindicais”. E momento algum houve foco naquilo em torno de que se protestava – as reformas trabalhista e da Previdência que tramitam no Congresso Nacional. Um mico.
Ao longo do dia, comentaristas amestrados desses canais, que nasceram para funcionar como elos entre a sociedade dispersa e as instituições do país e são concessão pública (devendo, portanto, observar um compromisso mínimo com a tradução de expectativas sociais e a mediação de conflitos de opinião), esforçaram-se por tentar explicar o que para eles – e só para eles – parecia inexplicável: por que existe quem seja contra reformas como aquelas ora propostas? O esforço, como todo o resto, era parcial. Não havia opiniões divergentes às deles sendo ouvidas e levadas em conta nos programas levados ao ar.
Para alguns é cômico, motivo de piada de mau gosto, flagrar a desfaçatez diária com a qual a notícia é maltratada nesses veículos. Há sempre um viés político por trás daquilo que se diz, ou daquilo sobre o que não se fala. Não é difícil perceber a seletividade dos temas abordados, a escolha precisa de qual frase de entrevistado encerra as passagens das “reportagens” – em geral, com a missão precisa de reafirmar a tese dominante dos controladores de opinião desses veículos. Mas é tudo muito trágico. Afinal, o telespectador médio brasileiro, habitante de um país de iletrados reais ou funcionais, só tem contato de fato com o cotidiano do Brasil por meio de veículos audiovisuais. Produz-se, portanto, uma massa bovina que segue o peão boiadeiro. As reses que ousam fugir do rebanho tornam-se, por conseguinte, desqualificadas e imprestáveis. O berrante segue guiando a massa para o matadouro, um ou outro mugido é ouvido, e aqueles que saíram do caminho são apartados para virar boi de piranha nas travessias mais arriscadas do charco.
As focas contemplativas que lagarteiam na praia gelada do iceberg da mídia tradicional brasileira falam apenas para dentro do universo paralelo em que vivem. Como o continente está em chamas, a luta travada nesse momento só tem dois resultados possíveis: ou o calor dos fatos, de um país que arde por dentro, derrete o bloco à deriva no mar de rosas particular; ou o ar gelado da redoma construída pelas focas às custas de muitos micos arrefecerá as chamas e permitirá o reembarque deles num país só existente em seus imaginários panglossianos.