Um relato do que vi e vivi na Colômbia. O jornalista acompanhou representação do Sindicato que prestou solidariedade à luta contra os ataques da GM.
Dia 19 de agosto de 2012. Manhã de domingo na capital da Colômbia. O Sol ora se esconde, ora surge impiedoso em Bogotá. O colombiano Carlos Ernesto Trujillo Rojas recebe muitas visitas: o pai, a irmã, a tia, a esposa e suas três filhas. Um carinho especial, no entanto, é dedicado ao caçula Martin, de apenas 11 meses. Carlos pega o filho no colo e brinca com o menino sorridente.
A narrativa acima poderia servir a muitas famílias num dia de domingo. Acontece que Carlos está vivendo em um acampamento improvisado há mais de um ano. No lugar de telhado, há lonas e plásticos pretos. Quando o Sol bate, o calor castiga. Quando chove, a situação fica terrível. O acampamento está montado em frente à embaixada dos Estados Unidos. Desde o último dia 1º de agosto, Carlos faz greve de fome. Mas não trata-se de uma greve de fome convencional. Além de deixar de ingerir qualquer alimento sólido, o colombiano decidiu costurar seus lábios. A imagem é impactante. Chega a chocar.
O protesto de Carlos não é solitário. Ele tem a companhia de outros seis companheiros da Asotrecol (associação de trabalhadores e ex-trabalhadores que adquiriram doenças do trabalho na GM local), que também fazem greve de fome com os lábios transpassados por linhas. São eles: Rafael, Wilson, Ferney, Pedro, Manuel e Jorge Parra, que é presidente da associação.
Todos ali foram demitidos arbitrariamente pela GM Colmotores (divisão da montadora no país), após adquirirem doenças ocupacionais por conta do serviço pesado que eram obrigados a desempenhar. As tarefas realizadas dentro da fábrica ocasionaram uma série de lesões em cada um daqueles trabalhadores: hérnias de disco, síndrome do túnel do carpo, tendinite, problemas na coluna e muitos outros. Alguns conseguem andar somente escorando-se em bengalas.
Apesar de ter apenas 32 anos, Carlos também está com sua saúde muito debilitada. Mesma situação vivida por um grande número de metalúrgicos da GM Colmotores. Um diretor do sindicato que representa os trabalhadores da montadora estimou que o número de operários com doenças relacionadas ao trabalho dentro da empresa é de 80%. O cenário trágico talvez se justifique pelos arcaicos métodos de produção desenvolvidos naquela unidade da GM.
“A forma de trabalho da GM colombiana de hoje é equivalente ao processo produtivo desempenhado há 30 anos nas unidades dos Estados Unidos. Para se ter uma ideia, não existe automação das linhas por onde passam os veículos. Os pesados carros precisam ser empurrados no braço”, relatou Manuel Ospina Contreras, que, com 42 anos de idade e 11 de GM, é o mais velho a participar da greve de fome.
A detecção do verdadeiro número de trabalhadores doentes é difícil, já que a repressão dentro da fábrica é muito grande. Os metalúrgicos não têm liberdade para se organizar e buscar seus direitos. Além disso, quem tem algum problema de saúde prefere sofrer calado para não ser demitido.
Não existe nenhuma proteção aos trabalhadores com doenças, e a direção da GM aproveita: demite sem piedade. Operários que iniciaram sua história na GM cheios de saúde e disposição acabam sendo descartados, como se fossem peças gastas. Não há palavra melhor para descrever isso do que “crueldade”. O mais grave é que esses trabalhadores não conseguirão arrumar outros empregos por conta das doenças que herdaram da companhia de origem norte-americana.
O cruel descarte de lesionados pela GM movimenta uma engrenagem que lhe garante altos lucros. Enquanto demite trabalhadores com salários mais altos, contrata jovens com o piso salarial, que gira em torno de 700 mil pesos colombianos, cerca de mil reais. Outro detalhe: na admissão de cada novo empregado, este é obrigado a assinar um termo no qual abre mão de uma série de direitos; é como se fosse um acordo individual firmado com o patrão, o que é proibido na legislação brasileira.
Não faltam exemplos de como as condições de trabalho na unidade colombiana da GM estão abaixo daquilo que conquistamos no Brasil. Na planta da montadora em Bogotá, a jornada de trabalho é extenuante. Oficialmente, são 45 horas semanais, mas trabalhadores com quem conversamos relataram que já chegaram a trabalhar 12 horas por dia. Não existe transporte da empresa para os metalúrgicos irem ao trabalho; cada um precisa se virar como pode. No equivalente à nossa Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), os membros eleitos pelos trabalhadores não têm sequer estabilidade no emprego. Como reivindicar, então, melhorias nas condições de segurança e saúde dos trabalhadores?
A luz no fim do túnel fica ainda mais opaca quando nos deparamos com a postura do governo colombiano. “O que é bom para a GM, é bom para a Colômbia”, sintetiza o presidente daquele país, Juan Manuel Santos, em evento realizado em fevereiro deste ano. O presidente Santos discursa como se fosse acionista da empresa e diz que o objetivo é que a GM Colmotores passe de “montadora à fabricante de peças e veículos”, e que exporte a países como o Brasil e outros do continente. Na cerimônia, o presidente da GM Colômbia, Santiago Chamorro, anunciou investimentos na ordem de 200 milhões de dólares na unidade, convertida, naquele ato, em zona franca.
O entusiasmo da GM e do governo colombiano não combinam com a realidade vivida pelos operários da fábrica. Muito menos com os que são demitidos após contraírem doenças do trabalho. A postura de empresa e governo também nos ajuda a pensar de que a injeção de investimentos numa empresa não significa, necessariamente, melhorias nas condições de trabalho. Na maioria dos casos, os investimentos servem somente para aumentar o grau de exploração.
Em São José dos Campos (SP), por exemplo, a companhia já manifestou sua vontade de impor uma série de medidas no sentido de reduzir salários e direitos. Para garantir seus lucros, a empresa faz uma espécie de leilão ao contrário: diz que vai investir (produzir novos modelos de veículos) onde as condições forem mais “competitivas”, neologismo que significa salários menores e direitos reduzidos. Os trabalhadores, até então, têm resistido.
É um processo global, onde a sede por lucros prevalece sobre milhares de vidas, que perdem seus direitos, salários e empregos. Aconteceu recentemente com o fechamento de dezenas de fábricas nos Estados Unidos. Está acontecendo na Alemanha, onde os operários lutam contra o fechamento da GM Opel, em Bochum. Na Coreia do Sul, onde os direitos trabalhistas são ainda mais precários, os trabalhadores da GM também resistem e, neste momento, estão em greve (iniciada no dia 7 de agosto) por melhores condições de trabalho.
Mas, voltemos à realidade do grupo de ex-metalúrgicos da GM que fazem greve de fome. Quando pergunto a Carlos o porquê daquele ato extremo, aquela agressão contra seu próprio corpo, ele não vacila na resposta.
“Ficamos um ano denunciando o que a GM nos tem feito e nada se resolveu. Estamos enfrentamos a fome e a humilhação de não ter o que dar de comer aos nossos filhos, fomos despejados de casa e ainda não conseguimos arrumar outro emprego por conta das doenças que adquirimos. Simplesmente, não temos outra opção. Não dá para morrer de fome sem ao menos lutar”, disse Carlos, olhar firme, mesmo apresentando sinais de fraqueza após o jejum de 19 dias. É ao lado de sua família e do filho de menos de um ano que Carlos profere palavras tão determinadas, à espera de que a GM revise sua postura e os recontrate, colocando-os para desempenhar tarefas condizentes às suas atuais limitações.
Estive nesta viagem à Colômbia junto com os diretores do Sindicato Herbert Claros da Silva e Renato Junior de Almeida. Nos vários encontros realizados em Bogotá, o Sindicato manifestou sua solidariedade à luta contra os ataques na GM, seja no acampamento da Asotrecol, seja na porta da fábrica, onde estivemos presentes.
Os trabalhadores da GM em greve de fome mantêm sua luta e necessitam de solidariedade internacional. Isso é fundamental para pressionar a companhia por uma solução. Por ora, eles resistem. Mas ninguém sabe ao certo até quando poderão aguentar. A situação se torna mais urgente a cada volta dos ponteiros. Não resta muito tempo!
Atualização em 27/08/2012
Os metalúrgicos demitidos da General Motors Colmotores, na Colômbia, anunciaram, na última sexta-feira, o fim da greve de uma fome que já durava 22 dias. O fim do jejum ocorre depois de um recuo da montadora, que tinha abandonado as negociações. Nesta semana, a GM volta a se reunir com a Asotrecol (associação que representa o grupo e que exige a reintegração dos trabalhadores lesionados à empresa). A negociação terá ainda a participação de representantes do governo norte-americano, principal acionista da companhia.
Fonte: http://www.sindmetalsjc.org.br
*Rodrigo Correia, 33 anos, é jornalista e cobriu a visita de solidariedade do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos aos trabalhadores da Asotrecol