Graças a reforma agrária, comunidade produz seu próprio cacau no sul da Bahia

O processo de quebragem do cacau é feito de maneira coletiva em Dois Riachões. Foto: Patricia Moll.
  • Nos anos 1990, a praga da vassoura-de-bruxa devastou as lavouras de cacau na região de Ilhéus, deixando muitas fazendas abandonadas.

  • Uma dessas fazendas foi ocupada por 40 famílias, que hoje vendem o cacau para grandes marcas produtoras de chocolate.
  • A comunidade resgatou o sistema agroecológico chamado de cabruca, que permite plantar cacau sem derrubar a mata nativa.
  • Com a reforma agrária, a média de salário dos agricultores passou de R$ 246 para R$ 2 mil em dez anos.

“A gente considera a vassoura-de-bruxa não como uma praga, mas sim como uma ‘santa’ vassoura. Nós estamos na terra hoje graças a ela”. Essa frase, do agricultor Rubens de Jesus, pode causar arrepios e repulsa para milhares de fazendeiros que perderam suas lavouras de cacau nos anos 90, quando esta devastadora doença causada por um fungo deixou diversas propriedades improdutivas no sul da Bahia. A praga causou inúmeros prejuízos sociais, ambientais e econômicos, além de mais de 150 mil agricultores desempregados naquela que é a principal região produtora de cacau do país desde o século 18, responsável por abastecer as grandes indústrias do setor.

Na primeira metade do século 20, o cacau baiano era extremamente valorizado no mercado internacional, proporcionando décadas de fartura para os coronéis dos arredores, que exportavam toneladas para o exterior todos os anos. Com a doença, descoberta em 1989, o fungo rapidamente se espalhou e o período de abundância foi interrompido. Os cacaueiros secaram e passaram a aparentar uma vassoura velha – daí o nome. Cerca de 30 mil fazendas entraram em falência.

Diante deste cenário trágico, houve, porém, quem soube extrair benefícios. No assentamento Dois Riachões, no município de Ibirapitanga, a praga permitiu que se fizesse a reforma agrária e virasse o lar de 150 pessoas Após se engajar em movimentos de luta pela terra e receber capacitações e apoio de instituições, a comunidade tornou-se exemplo de superação. Passou a vender cacau premium e de qualidade para grandes marcas, conquistou liberdade, independência financeira e soberania alimentar. Mas nem sempre foi assim.

Ocupação da terra

Antes de tomarem posse do assentamento Dois Riachões — e da vassoura-de-bruxa —, muitos dos atuais moradores costumavam trabalhar em fazendas de cacau como empregados temporários, recebendo por semana de acordo com o serviço. As  condições de trabalho eram muito duras: há aproximadamente 15 anos, Edivaldo dos Santos, o Biscó, ganhava em torno de R$ 12 por semana, não tinha direitos, carteira assinada e tampouco podia plantar o próprio alimento. “Eu achava que não tinha valor nenhum, era praticamente um trabalho escravo”, diz.

Os trabalhadores não dominavam todas as fases da produção do cacau, como colheita, quebragem e secagem. Segundo Rubens de Jesus, “cada núcleo de família se ocupava de somente uma etapa, e assim se mantinha ao longo de várias gerações. “Era uma estratégia do fazendeiro, pra gente não entender o ciclo todo do cacau”, ele diz.Dessa forma, criava-se dependência do proprietário das terras.

É contraditório e desconcertante, mas as famílias de muitos cacauicultores nunca tinham comido chocolate até tomar posse das terras, e muitas vezes nem sequer sabiam o que era. “Eu quebrei muito cacau, mas não tinha direito de chupar um caroço de cacau, senão era descontado do nosso salário”, relembra dona Luiza dos Santos, acrescentando que sofriam marcação cerrada dos cabos de turno, como eram chamados os empregados da fazenda que monitoravam os trabalhadores.

Até que alguns agricultores começaram a se envolver em movimentos sociais de luta pela terra, como o Ceta (Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas)E decidiram montar acampamento em uma fazenda abandonada à beira da rodovia BA-652. Foram seis anos de medo e noites mal dormidas até a pressão fazer efeito e conseguirem ocupar a propriedade, em 2007, que foi finalmente concedida pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

Se não houvesse a cultura do cacau na região, a reforma agrária seria praticamente inviável. Mas as 40 famílias entraram na terra já sabendo que o cultivo garantiria o sustento e a principal fonte de renda.  O assentamento de 406 hectares agora não tem mais dono e a gestão é compartilhada por 150 pessoas.

Edivaldo dos Santos, o Biscó, no armazém de secagem do cacau: de quase escravo a dono da produção. Foto: Fellipe Abreu.

Sistema cabruca e o resgate da biodiversidade

Solos pobres e inférteis — efeito de anos de abandono — foi o que os agricultores encontraram ao ocuparem o assentamento, uma terra onde tudo o que havia era gado e cacau. Como é praxe nos movimentos de luta pela terra, assim que entraram, já plantaram alimentos para a própria subsistência, como mandioca e feijão. Em pouco tempo, o excedente passou a ser vendido nas cidades vizinhas e a realidade começou enfim a mudar. Nas palavras de Rubens, de “baderneiros e ladrões”, passaram a ser valorizados como produtores de comida.

Para recuperar as lavouras de cacau, resgataram a chamada cabruca, um sistema agroecológico com 170 anos de prática na região que consiste em cultivar sem derrubar a mata. Isso é possível porque o cacau é uma espécie que cresce bem sob a sombra, o que favoreceu a preservação da Mata Atlântica no sul da Bahia. Para ser considerado cabruca, são necessárias no mínimo 50 espécies de árvores nativas. O modelo de produção está ameaçado de extinção na Bahia porque opõe-se à monocultura a pleno sol fomentada pelo Governo do Estado e pela grande indústria, por ser em tese mais produtiva.

Frutos de cacau Parazinho, variedade regional resgatada pelas famílias de Dois Riachões. Foto: Fellipe Abreu.

Outra decisão fundamental foi focar o plantio na variedade Parazinho, local e ancestral, e não em variedade híbridas ou clonadas, amplamente utilizadas no entorno. Além de resultar em um chocolate muito mais saboroso, desta forma colaboram para manter a tradição.

Outra marca registrada do Dois Riachões é a participação coletiva. Cada etapa do cultivo é realizada em esquema de mutirão. O clima é de alto astral e a quebragem é feita cantando. “A gente não dá conta de quatro hectares sozinhos, mas através da troca de trabalho com o vizinho, a gente consegue”, explica Mara Silva.

Com este esquema, hoje o faturamento é quatro vezes maior o valor por hectare do que um modelo convencional. “O caminho que se tem é a produção agroecológica e o segredo é agregar valor. Hoje nós temos ainda a Mata Atlântica na Bahia graças ao cacau”, festeja Rubens.

Área de Mata Atlântica no sul da Bahia; os cacaueiros crescem entre as árvores. Foto: Fellipe Abreu.

Soberania e venda para marcas de chocolate premium

Através de parcerias com várias instituições, os moradores do Dois Riachões também aprenderam a dominar a fermentação, a mais cuidadosa e rigorosa etapa do ciclo, responsável por produzir uma amêndoa de cacau realmente de qualidade. Com isso, conseguiram começar a vender para as duas principais marcas de chocolate premium do mercado brasileiro: primeiro a Amma, em 2016, e depois a Dengo.

“É uma comunidade linda e integrada, com um belo modelo de organização”, diz o fundador da Amma, Diego Badaró, a respeito do assentamento “Fizemos uma barra e carimbamos para trazer identidade, safra, variedade e região.” Outra parceira, a Dengo, ajudou a elevar ainda mais a qualidade das amêndoas ao exigir que sejam analisadas pelo CIC (Centro de Inovação do Cacau), que avalia se estão no padrão para serem processadas. Na esteira vieram outras marcas menores mas também prestigiadas, como a mineira Kalapa e a carioca Quetzal.

“É uma sensação fantástica quando a Amma manda um chocolate com o nome lá: Associação Dois Riachões. Quem comprar estará consumindo um produto que não agride a natureza, respeita a questão social, econômica e vai beneficiar quem está lá na ponta, que somos nós”, celebra Rubens.

Finalmente a comunidade está introduzindo o cacau e seus derivados na alimentação. “A gente começa a usar para a gente também, para o nosso bem. A produção da comida é uma libertação”, observa Mara Silva.

Roquelina Moreira da Silva e sua última colheita: além do cacau, a comunidade planta e vende o excedente da produção agrícola. Foto: Fellipe Abreu.

“O processo de luta da Dois Riachões avança no sentido da educação de qualidade, de acesso a todos os níveis de formação”, explica Teresa Santiago, agricultora que também compõe a Comissão de Educação. Além da creche, estão finalizando a obra de uma Escola Nacional de Agroecologia. “Minha mãe não estudou. Eu estou terminando um curso de nível superior. Então aí já você consegue observar essa mudança. É soberania. Soberania alimentar, na produção, na organicidade, soberania na qualidade de vida.”

E há ainda mais motivos para comemorar. A média do salário dos agricultores passou de R$ 246, em 2008, para R$ 2 mil, em 2021. Em 2020, a comunidade inaugurou uma Fábrica-Escola e está prestes a lançar a própria marca de chocolate. Tudo isso em meio à pandemia da covid-19. Um grande alento em tempos tão difíceis.

A história da comunidade, é contada no minidocumentário independente “Dois Riachões, Cacau e Liberdade”. O filme, dirigido pelo cineasta Fellipe Abreu e pela jornalista Patrícia Moll, foi lançado em novembro de 2020 no evento Terra Madre Brasil, promovido pelo Slow Food. Assista aqui:

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