Por Elaine Tavares, jornalista
Áreas indígenas já definidas e prontas para serem demarcadas na região do Rio Grande do Sul e Santa Catarina tiveram sua legalização suspensa pelo governo de Dilma Roussef. Rapidamente a presidente rendeu-se aos argumentos dos agricultores. que realizaram um protesto ontem (06 de novembro), fechando estradas no sul e exigindo do governo a suspensão do processo. Nunca um protesto foi tão efetivo em tão pouco tempo. Segundo Dilma, novos estudos serão feitos nas áreas. Com isso, ela pretende aliviar o clima de tensão que existe hoje no sul. Aliviar para quem? Essa seria a pergunta crucial!
Na queda de braço entre proprietários de terra e indígenas, raramente os indígenas saem vencedores. Roubados de suas terras desde a invasão em 1500, sistematicamente os povos originários foram sendo atacados, dizimados e humilhados. Na região sul do Brasil, boa parte dos povos autóctones que viviam no litoral se deslocaram para o interior, juntando-se a outras etnias que ali já viviam, como os kaigang e os xokleng. Já no século 18, com a abertura de caminhos para a passagem das tropas que iam e vinham de São Paulo ao Rio Grande, então Província de São Pedro, os indígenas enfrentavam os brancos em batalhas fortuitas. Mas, foi só no século XIX, com o processo de migração de famílias europeias, que todos esses grupos começaram a enfrentar com mais frequência a captura, assassinato e consequente tomada das terras. No caso da região que hoje configura o oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, essa nunca foi uma terra sem gente, daí a necessidade de uma política de extermínio por parte do governo. Tudo isso foi levado a cabo. Os chamados “bugres” eram caçados como bichos e os que não aceitavam a “civilização” eram mortos.
Os poucos que sobraram foram sendo confinados em aldeias, onde permanecem até hoje, tutelados e tratados como seres de segunda categoria. Considerados naquele então um obstáculo para o “crescimento econômico” do estado e do país, eles passaram de legítimos donos das planuras a quase mendigos. Com o passar do tempo, esses indígenas que resistiram ao massacre foram sendo esquecidos. Cada imigrante que chegou para “desbravar” o interior foi cercando a área onde fincou raízes e as terras começaram a ser tituladas. O que era campo de liberdade para os originários passou para a “propriedade” de alguns.
Esse deve ser o caso das mais de 30 mil famílias – segundo Fetraf-Sul (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Sul) – que vivem em terras já definidas como indígenas no Rio Grande do Sul e das outras 300 famílias que ocupam área indígena em Santa Catarina. Possivelmente todas essas famílias que hoje vivem na área que foi delimitada como “terra indígena” compraram suas propriedade de boa fé, têm escritura e tudo mais. Só que os indígenas também reivindicam esse território desde a invasão. Logo, se for aplicada a Justiça, não pode haver dúvidas de que quem ocupava o território primeiro eram os povos originários.
O debate que as entidades que representam os agricultores fazem é que a maioria dessa gente é pequeno produtor e não sabe fazer outra coisa na vida que não seja plantar. Sem as terras, eles morrem. O argumento é forte, mas se for aplicado aos indígenas, também deveria ter a mesma força. As famílias originárias que hoje reivindicam a área passaram gerações e gerações sofrendo o assassinato, a fome, a miséria, o medo, o terror. Da mesma forma que as famílias – hoje novas proprietárias – também nada mais gostariam de fazer na vida do que viver em paz na sua terra, onde possam plantar e cuidar dos filhos. Qual a diferença, então, entre os dramas?
As áreas no Rio Grande e Santa Catarina já foram vistoriadas e passaram por um longo processo de estudos e burocracias. Está mais do que provado de que são terra originária, portanto é de direito que sejam devolvidas aos indígenas. Mas, agora, o governo diz que vai fazer novos estudos. Paz para os agricultores, mais dor para os índios.
O fato é que com a demarcação as famílias que compraram as terras, muitas delas com registro desde o ano de 1919, não ficariam desamparadas. Todo o processo de demarcação garante indenização àqueles que, de boa fé, compraram terras indígenas. É certo que a situação causa sofrimento a quem construiu toda uma vida num lugar. Esse é o drama da maioria das famílias de agricultores que, com a decisão, precisariam mudar de lugar e até de cidade. São dramas humanos que não podem ser diminuídos. Mas, humano por humano, os indígenas também vivem mergulhados no drama. E, diferentemente das famílias que puderam viver em paz, plantando e comerciando seus produtos por anos e anos, os indígenas tiveram de passar todo esse tempo em aldeias mal arranjadas, muitas vezes passando fome e sem poder garantir de maneira autônoma sua existência.
Conforme reportagem produzida por Ibiapaba Netto, em 2008, na revista Planeta (http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/reportagens/indios-x-agricultores-campo-minado-em-santa-catarina), a história da compra dessas terras segue a rota do roubo perpetrado pelo próprio estado ao longo do processo de colonização. Segundo ele, as vendas das terras, na parte catarinense, foram feitas pela Companhia Territorial Sul Brasil, que era um braço privado dentro do estado. Era a empresa que fazia as vendas para os imigrantes que chegavam da Europa acreditando entrar numa terra vazia. Daí que a lógica seria garantir às famílias, hoje proprietárias, uma indenização que cobrisse todo o patrimônio e não apenas as benfeitorias. Afinal, a maioria dessa gente foi enganada pelo próprio estado. Sendo assim, a batalha que hoje está sendo travada entre os índios e os agricultores tem vítimas dos dois lados.
O governo, que deveria assumir a responsabilidade por todo esse imbróglio criado há séculos, acaba por fomentar ainda mais a separação dos dois grupos que se enfrentam como inimigos. E, agora, com a suspensão da demarcação, bota ainda mais lenha na fogueira. Se diminui a tensão entre os agricultores, aumenta no lado indígena. Talvez aposte na fragilidade dos originários que, comparados aos atuais donos das terras, seguem em absoluta desvantagem, seja no campo jurídico, na correlação de forças e no imaginário coletivo.
Desde o início do processo de luta por demarcação das terras originárias, todos os dias, as emissoras de televisão regionais e estaduais disseminam o ódio aos índios. Em quase todas as notícias relacionadas com o tema, os indígenas aparecem como os “invasores”, os “vagabundos”, os que querem “impedir o progresso”, os “selvagens” que não precisam de terras porque não trabalham. Esse estereótipo do índio está consolidado no imaginário popular e segue sendo fortalecido pelas usinas ideológicas que são os meios de comunicação. Daí ser tão difícil fazer o debate sobre o tema de forma tranquila. Criou-se na maioria da população, que é não-índia, a ideia de que os índios não precisam dessas terras, que deveriam se contentar com suas reservas e as cestas básicas dadas pelo governo. É, na verdade, a continuidade, a perpetuação da ideia primeira dos portugueses e espanhóis que aqui chegaram e passaram por cima das milhares de criaturas que eles acreditavam não ter alma por não falarem sua língua nem viverem da mesma maneira que os europeus. Toda a cultura indígena foi ignorada, bem como a própria humanidade de cada um dos primeiros moradores dessas terras. Aparentemente, apesar das atitudes caridosas eventuais, é o que boa parte da população segue pensando com relação aos índios. São nada, coisas descartáveis, gente não-produtiva, atrapalhos à nação.
No oeste de Santa Catarina essa é a realidade que os xinguara e os kaigang vivem desde há séculos. Hoje, muitos deles vagueiam sem rumo pela região, trabalhando de boia-fria, enquanto outros se submetem a humilhação das reservas que não oferecem muita condição de vida digna. Mas, ao que parece, poucos estão interessados nessa realidade. A mídia regional, bem como as forças políticas aliadas ao poder dominante insistem em tornar mais “triste” o destino daqueles que perderão suas terras para entregá-las ao que nominam como “meia dúzia de índios”.
Ora, como fazer uma competição para saber qual sofrimento é maior? Haveria ganhadores? Aquele que sofre entende sua dor como a maior do mundo. Não é o caso de fazer concorrência. O fato é que existe uma dívida histórica do estado com relação aos povos indígenas e também com as famílias de agricultores. E o estado deveria fazer tudo para sanar essa dívida sem fazer chantagem com os mais fracos, sem fomentar o preconceito.
Também é importante ressaltar que, na maioria dos casos envolvendo demarcação, os “opositores” não são os pequenos produtores de boa-fé. Mesmo no Rio Grande e em Santa Catarina, muito do que comanda a “luta” anti-demarcação é ação dos grandes fazendeiros e do setor de especulação sobre a terra. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, os indígenas precisam enfrentar a sanha de jagunços a soldo dos latifundiários, que matam, violentam e ameaçam as famílias de índios que vivem nas beiras de estradas. E como se isso não bastasse, ainda enfrentam a Justiça, que está sempre do lado dos fazendeiros, e as ameaças de uso da Força Nacional para a realização dos despejos de áreas ocupadas pelos indígenas. Porque índio quando está quieto é queridinho, mas se ousa levantar-se em luta passa a ser só mais “terrorista, baderneiro” como qualquer outro militante social. Sobre esses dramas a mídia comercial não fala. Sobre essas ações violentas, assassinatos e jagunçagem, nenhuma linha nos jornais. E é assim que vai se formando a opinião pública contra as demarcações. Porque no mundo capitalista não dúvidas de alguns são sempre mais iguais que outros. E assim, a dor! …
A única saída possível é a indenização justa a quem comprou terra de boa-fé e a urgente demarcação das terras indígenas para que essa gente que anda vagando pelos caminhos desde o fatídico 1500 encontre finalmente morada e possa viver sua vida em paz.
Fonte: Brasil de Fato
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil