Por Gustavo Freire Barbosa.
Uma das mais simbólicas expressões do êxito do pacote ideológico do neoliberalismo é a transformação das pessoas em empresárias de si mesmas. A reprodução dos valores do capitalismo na vida, monetarizando a própria existência, corresponde a uma das mais sutis e corriqueiras formas de colonização dos espíritos, chegando ao ponto de fazer piruetas hermenêuticas na expectativa de convencer as vítimas da espoliação de que a supressão de seus direitos é algo bom para elas.
Salário mínimo, jornada de trabalho, FGTS e demais garantias presentes na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por exemplo, são mostradas como um engodo para a classe trabalhadora, impossibilitada de negociar o valor de sua força de trabalho e de ocupar empregos cujo surgimento de novas vagas é tolhido pela lei.
É esta a narrativa, repleta de sofismas insustentáveis, que norteia a retórica apologista da reforma trabalhista em trâmite na Câmara dos Deputados, apregoando que a liberdade só é possível se vier no cadafalso das proteções legais.
Não é novidade o contorcionismo argumentativo que procura traçar uma relação de causa e efeito entre direitos guilhotinados e o aumento da liberdade.
A visceral oposição conservadora às intenções de Obama de expandir o sistema de saúde pública norte-americana e pôr tímidos limites à volúpia predatória dos gigantes da área se baseava exatamente na tese de que uma iniciativa desta natureza implicaria na diminuição da liberdade de escolher os médicos e médicas com os quais deseja se consultar.
Para a novilíngua neoliberal, a saúde deve deixar de ser um direito fundamental para se tornar um negócio ou investimento.
É nesse sentido que atua a lógica do empresário de si mesmo, assalariados colonizados pela narrativa “empreendedora” que expande as lentes do mercado para espaços que antes se situavam à margem das relações mercantis tradicionais.
Com efeito, são notórios os propósitos do atual ministro da saúde e da reforma da previdência de empurrar as pessoas para os planos de saúde e os fundos de pensão privados, representando o avanço do domínio privado sobre o público de forma que, ao transformar direitos fundamentais em mercadorias, a relação com serviços como educação, saúde e previdência passa a ser a de um investidor, e não de um sujeito investido constitucionalmente de direitos: qual a melhor escola particular, com o melhor custo benefício, para investir e matricular meu filho? Qual plano de saúde possui o catálogo de serviços mais amplo e com menor mensalidade, de modo que eu possa exponenciar meus ganhos? Qual o melhor fundo de previdência complementar para se investir?
Assim, problemas de ordem pública como o sucateamento de serviços constitucionais passam a ter como desfecho “soluções” particulares e mesquinhas. O mais interessante é que o que é visto como consectário de maiores liberdades diz respeito, na verdade, à obrigação imposta aos cidadãos e cidadãs caso queiram permanecer tendo acessos a estes serviços de forma minimamente correspondente com suas necessidades.
Todavia, longe de representar uma maior liberdade, a canibalização do público pelo privado atua exatamente no sentido contrário, ceifando as condições materiais mínimas de existência sem as quais não é possível ser efetivamente livre.
Diminuir o SUS em um país onde a maioria das pessoas não tem condições de pagar por um plano de saúde é, na prática, tirar este direito de seus alcances. O mesmo acontece no que diz respeito à educação e à previdência, também objetos das reformas do governo Temer.
Sem direitos básicos, não há plataforma para o exercício da liberdade em sua perspectiva material, contrária à concepção clássica e formal segundo a qual basta o Estado se abster para que seja alcançada. Como bem disse Anatole France, a lei que se pretende igualitária proíbe tanto os ricos quanto os pobres de dormir debaixo da ponte.
O mesmo acontece em relação à flexibilização das leis trabalhistas. Acreditar que retirar direitos é conceber maior poder de negociação para a classe trabalhadora é uma perspectiva que ignora as condições concretas em que as negociações irão ser realizadas caso a reforma seja aprovada.
Com um baixo índice de sindicalização, uma reduzida consciência de classe e uma fragilizada capacidade de organização política que a coloca em desvantagem em relação ao patronato, é a lei que supre este desequilíbrio de forças. Sem ela, a “liberdade de negociar” representará, na verdade, uma franca disparidade de armas em favor dos empregadores, que no lastro dos exércitos de reserva possuem maior poder para barganhar e impor o valor da força de trabalho que reputam conveniente ao aumento de suas margens de lucro.
Tudo isso parece óbvio, mas os ideólogos deste projeto buscam floreá-lo como uma espécie de trampolim para o aumento das liberdades a para o alcance do desenvolvimento econômico, como se direitos constitucionais relacionados à dignidade humana fossem obstáculos para a implacável marcha do “progresso”.
Enquanto o ministro da saúde vem afirmando sucessivamente que a Constituição não cabe no SUS – esquecendo que quase metade do orçamento geral da União está destinado ao pagamento dos juros da dívida -, o Planalto se esforça para proteger empregadores de mão-de-obra escrava. Tudo, obviamente, em nome da liberdade, do desenvolvimento e da geração de emprego e renda.
Bertold Brecht afirmou que apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la. O primeiro passo para manter tudo como está é mascarar esta realidade e apresentá-la como o melhor dos mundos possíveis.
Porém, como bem escreveu um certo filósofo alemão em 1843, um verdadeiro projeto emancipatório de sociedade requer que desnudemos este discurso e arranquemos as flores imaginárias dos nossos grilhões, mas não para que os suportemos sem fantasias ou consolo, mas para que deles nos desvencilhemos e a flor viva da liberdade possa enfim desabrochar.
Fonte: DCM