Por Cleber César Buzatto, Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário, CIMI. A proposta de Projeto de Lei que autorizaria o Poder Executivo a criar o Serviço Social Autônomo denominado Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), empresa de direito privado, guarda no seu bojo muito mais que o tema “saúde”. Dentre outros absurdos, chama a atenção o fato da possibilidade do Instituto ser financiado com recursos provenientes de “empresas”.
A questão é extremamente grave. Com o INSI, a atenção à saúde indígena poderia receber, por exemplo, financiamento privado de empresas, muitas delas multinacionais, ligadas ao agronegócio (Cargil, Bunge, Singenta, Monsanto, New Holland, Massey Ferguson, BRF, JBS-Friboi), à mineração (Vale, Alcoa, Alunorte, CBMM, Namisa, Samarco), empreiteiras (Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Correa, Queiroz Galvão, Grupo OAS…), à geração de energia elétrica (Suez, CPFL, General Electric, Eletrobrás, Eletronorte), à indústria farmacêutica e cosméticos (Avon, Natura, Boehringer Ingelheim, Pfizer, Eli Lilly & Co., Novo Nordisk A/S, Novartis, Teuto, Neoquímica), dentre outras.
Cumpre lembrar que a proposição do INSI dá-se num contexto em que é desferido um ataque orquestrado e violento aos direitos dos povos indígenas no Brasil. Os objetivos deste ataque são, fundamentalmente, de impedir novas demarcações de terras e de invadir e explorar as terras já demarcadas, que estão na posse e sendo preservadas e usufruídas pelos povos. Como é sabido, os sujeitos político econômicos promotores deste ataque aos povos e seus direitos são, exatamente, indivíduos e empresas ligadas aos interesses financeiros do agronegócio, mineração, empreiteiras, dentre outras.
De acordo com o projeto de lei em questão, o INSI assumiria o monopólio das ações de atenção à saúde dos povos indígenas. Isso significa que praticamente todos os seus funcionários, aproximadamente 7 mil não indígenas, atuariam dentro das terras indígenas, junto às comunidades. O financiamento privado permitiria que os interesses das empresas financiadoras chegassem e fossem promovidos, cotidianamente, junto a milhares de indígenas país afora.
Isso certamente facilitaria e agilizaria a implementação de projetos de interesse dessas empresas e do próprio governo, tais como, arrendamentos de terras, exploração madeireira e minerária, construção de hidroelétricas, acesso e uso do conhecimento tradicional e recursos genéticos, dentre outros. Neste ponto, não custa lembrar do Projeto de Lei também proposto pelo Governo Dilma, que tramita em regime de urgência e tranca a pauta da Câmara Federal, e que propõe facilidades ao acesso e uso, por terceiros, dos conhecimentos tradicionais e recursos genéticos dos povos e terras indígenas no país.
A jogada do governo Dilma é macabra e maquiavélica. Com o INSI, ao mesmo tempo em que se livraria da responsabilidade da atenção à saúde indígena, retirando de seu colo inclusive escândalos de corrupção que virem a acontecer, o governo cria um instrumento perfeito para substituir a destinação orçamentária pública por investimentos privados. É o caminho para a definitiva substituição do direito dos povos à saúde pública por mitigações resultantes da exploração de suas terras. Tudo o que o capital anseia.
Seria este o motivo do governo ter escondido este projeto de lei a sete chaves? Divulgada pelo Cimi no início de agosto, a proposta do INSI foi apresentada pelo governo aos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) apenas por meio de imagens em Power Point. Em meio a denúncias de práticas de restrição ao debate, de ameaças e até tentativas de subornos, um belo exemplo de como não deve ser uma consulta de acordo com o preconizado pela Convenção 169 da OIT, ninguém teve acesso ao Projeto de Lei, muito embora ele estivesse pronto há bastante tempo. Além do escudeiro Antônio Alves, secretário Especial de Saúde Indígena, até mesmo o ministro da Saúde, Arthur Chioro, se prestou ao serviço de apresentar e defender a aprovação do INSI junto ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) há poucos dias, também sem disponibilizar aos Conselheiros a proposta do Projeto de Lei.
As tentativas de ludibriar membros do CNS, lideranças indígenas e entidades indigenistas continuaram nesta quinta-feira, 25. Por ocasião de oficina promovida pelo CNS para tratar do tema, o projeto de lei foi finalmente desentocado e apresentado. Novamente, porém, somente por meio de imagens. Convidados não tiveram acesso à versão impressa do referido projeto. Mais uma vez também se revelou a restrição e a aversão ao debate sobre o tema. Embora citado e atacado em várias ocasiões por posicionar-se contra a proposta, o Cimi não teve respeitado nem mesmo o direito a esclarecimentos.
Mais do que o aparelhamento do Estado e a privatização da atenção à saúde indígena, vai-se descobrindo que, com o INSI, o governo Dilma pretende destruir o cerne da resistência dos povos aos ataques que vem sofrendo e escancarar o processo de invasão e exploração de suas terras no Brasil.
Brasília, DF, 25 de setembro de 2014.
Foto: Reprodução/CIMI
Fonte: CIMI