Na tarde do dia 10 de julho, o júri do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado apresentou aos povos e comunidades tradicionais cerradeiros presentes à audiência final do TPP do Cerrado um resumo do veredito relacionado à acusação contra governos, empresas e instituições de cometerem os crimes de ecocídio do Cerrado e genocídio cultural de seus povos.
O anúncio do veredito aconteceu no terceiro e último dia do julgamento, quase um ano depois do lançamento do TPP do Cerrado no Brasil, em 10 de setembro de 2021, e após a realização de três audiências temáticas: Audiência das Águas, Audiência sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade e Audiência sobre Terra e Território, realizada juntamente com a Audiência Final entre os dias 8 e 10 de julho de 2022 em Goiânia (GO).
O júri presente em Goiânia, composto pela subprocuradora-geral da República aposentada Deborah Duprat, pela escritora e jornalista Eliane Brum, pela professora venezuelana da Universidade Federal do Pará (UFPA) Rosa Acevedo, pelo professor espanhol da Universidade Rovira i Virgili de Tarragona Antoni Pigrau e pelo jurista francês e presidente do TPP, Philippe Texier, apresentou, de forma contundente e explícita, sua condenação, lida na ocasião por Eliane Brum.
“O Tribunal dos Povos condena o Estado brasileiro pela sua contribuição decisiva, por ação e omissão, para o crime de ecocídio do Cerrado que envolve, inevitavelmente, o processo de genocídio dos povos do Cerrado”
“O Tribunal dos Povos condena o Estado brasileiro pela sua contribuição decisiva, por ação e omissão, para o crime de ecocídio do Cerrado que envolve, inevitavelmente, o processo de genocídio dos povos do Cerrado. Por elaborar e implementar políticas e programas de desenvolvimento, nos últimos 50 anos, que concorreram para o grave dano, a destruição e a perda do ecossistema do Cerrado como um todo, cujo impacto provoca perda de benefícios ambientais e sociais para as populações da região e do país, que produz a expulsão ou força o deslocamento das comunidades, produz ameaça de extermínio dos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais e comunidades camponesas, que têm no acesso às condições metabólicas da região ecológica, na capacidade reprodutiva das terras e dos bens naturais sua condição de existência como povos de identidade diferenciada. O Tribunal Permanente dos Povos condena o Estado brasileiro, o atual governo executivo federal, as unidades da federação, instituições públicas federais e estaduais, estados estrangeiros, organizações internacionais, empresas nacionais e transnacionais, de forma objetiva e compartilhada, por sua contribuição à comissão de crimes econômicos, ecológicos, qualificados como crimes de sistema, que têm gerado graves violações a direitos humanos fundamentais e ao meio ambiente, de forma a obstaculizar o acesso a direitos básicos, como à alimentação, água, medicamentos, moradia, trabalho, entre outros.”
Estados estrangeiros, como Japão, China e países que integram a União Europeia, também foram condenados por sua compra massiva de commodities que estão na base da monoculturação do Cerrado. Entre as instituições internacionais, foram condenados o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), e em particular Banco Mundial, pela promoção e legitimação de reformas neoliberais que aprofundam o ecocídio-genocídio cultural no Cerrado
Entre os agentes privados, foram condenadas empresas transnacionais e fundos de investimento/pensão, cujas atividades econômicas estão vinculadas à violação de direitos fundamentais que causam e se beneficiam do ecocídio-genocídio cultural no Cerrado, como Amaggi & Louis Dreyfus Commodities, Bayer-Monsanto, Bunge, Cargill, ChemChina/Syngenta, China Communications Construction Company, China Molybdenum Company, Condomínio Cachoeira Estrondo, Horita Empreendimentos Agrícolas, Mitsui & Co, Mosaic Fertilizantes, SLC Agrícola, Sul Americana de Metais S.A., Suzano Papel e Celulose, TUP Porto São Luís, Vale S.A., e os fundos de investimento TIAA-CREF, Harvard e Valiance Capital.
Após o anúncio do veredito, os jurados apresentaram as recomendações prioritárias às instituições estatais brasileiras.
“O Tribunal Permanente dos Povos condena o Estado brasileiro, o atual governo executivo federal, as unidades da federação, instituições públicas federais e estaduais”
As sentenças proferidas pelo júri do TPP não têm aplicação dentro do sistema jurídico formal do país em que é realizado. Um governante ou dirigente de uma empresa que sejam considerados culpados por um crime pelo júri do Tribunal não poderá ser preso, por exemplo.
Ainda assim, as sentenças proferidas pelo TPP são de extrema importância para os sistemas de justiça nacionais e internacionais, e para a opinião pública de uma forma geral, uma vez que expõem os vazios e limites do sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos e, assim, pressiona para sua evolução.
“Cada sessão do TPP é produto de uma demanda por justiça, e o TPP, em si, não é um ponto final, mas o início de um novo momento de luta dos povos que o Tribunal, por meio do veredito, pretende legitimar”, afirmou Simona Fraudatario, secretária geral do TPP.
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Sensibilidade, presença e conhecimento
O terceiro e último dia da Audiência Final do TPP teve início com a apresentação do defensor público estadual no Tocantins Pedro Alexandre Gonçalves, que falou sobre os desafios para a efetivação dos direitos dos povos do Cerrado no âmbito do sistema de justiça brasileiro.
“Sensibilidade às causas dos povos tradicionais só se dá com presença. Não se dá à distância nem de modo virtual. O juiz, promotor, defensor, deve conhecer a realidade das partes. Os membros das nossas instituições não visitam as comunidades. Essa falta de presença do judiciário, do Ministério Público e da própria Defensoria Pública tem trazido insensibilidade. Temos um sistema de justiça que foi pensado tão somente para proteger a propriedade privada. Isso se dá pela perspectiva meramente civilista, e não há uma evolução para a Constituição como centro do sistema jurídico”, afirmou o defensor.
“Sensibilidade às causas dos povos tradicionais só se dá com presença. Não se dá à distância nem de modo virtual”
Para ele, a falta de sensibilidade, de presença e de conhecimento, geram decisões injustas e violências que não se coadunam com o melhor direito. “Não se enganem com a virtualização dos processos, principalmente em relação aos conflitos fundiários, isso vai prejudicar ainda mais as comunidades. Pegar relatos via vídeo é muito diferente de visitar as comunidades. Peço desculpas aos povos pela insuficiência do sistema de justiça. Preciso reconhecer que podemos avançar mais.”
A escritora e jornalista Eliane Brum destacou que a ausência de outros representantes do sistema de justiça durante todo o processo do TPP do Cerrado “é uma presença eloquente e muito representativa dos temas que estão sendo tratados aqui”.
Em seguida, o advogado Marcelo Chalréo, conselheiro do CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), também fez uma fala manifestando a empatia do órgão às lutas dos povos e comunidades tradicionais cerradeiros. “O CNDH está aqui para reafirmar seu compromisso com os povos do Cerrado para que avancemos na construção de uma sociedade digna para que não haja, no médio prazo, explorados e exploradores”.
“Não se enganem com a virtualização dos processos, principalmente em relação aos conflitos fundiários, isso vai prejudicar ainda mais as comunidades”
Três dias históricos
Os dois primeiros dias da Audiência sobre Terra e Território e da Audiência Final do TPP do Cerrado foram marcados pela emoção e indignação dos representantes dos 15 casos apreciados pelo júri do tribunal. Foram dezenas de testemunhos vivos do poder de destruição de governos e de empresas do agro e da mineração que, por meio da grilagem e outros crimes, destituem os povos de suas vidas em todas as dimensões: material, mental e espiritual.
Os processos de grilagem envolvem não apenas a falsificação de documentos, mas também o desmatamento – em geral com o uso do correntão – que “consolida” a grilagem. Também envolvem violências e perseguições dos povos com o uso de milícias privadas e mesmo com o uso de forças policiais do estado, que atuam para proteger e garantir as vontades dos grileiros. A grilagem envolve também a destruição de casas, de plantios, envenenamento com agrotóxicos, paralisação de processos de regularização fundiária – por meio de interferência dos grileiros junto a órgãos como o Incra -, pistolagem, atentados e assassinatos.
“Os processos de grilagem envolvem não apenas a falsificação de documentos, mas também o desmatamento – em geral com o uso do correntão – que “consolida” a grilagem”
Outra estratégia comum de empresas do agronegócio que se apropriam de territórios tradicionais é a contratação de algumas poucas pessoas dos territórios invadidos como funcionários das fazendas. Com isso, geram divisões internas nas comunidades, colhem informações estratégicas e corrompem relações familiares por alguns trocados. Dividem as comunidades por dentro, e assim fica mais “fácil” a expropriação.
A naturalização das violações dos empreendimentos como condição necessária para sua implementação gera um cenário de sofrimento permanente aos povos e seus territórios, e a construção de um futuro – não tão distante – inviável para todo tipo de vida.
Apesar da dor contida nas denúncias feitas pelos representantes dos casos ao júri nos dois primeiros dias da Audiência Final, havia também muita esperança de que a escuta e o veredito do júri do TPP possam provocar uma mudança positiva nos casos, no sentido de que se encaminhem para uma resolução.
“Que esse júri olhe por nós e faça um encaminhamento para o STF contra o marco temporal, porque nós precisamos da nossa terra para viver”
“Que o mundo ouça nosso grito de apelo. Nossa luta não é só por terra, mas pelo direito de viver nela”, disse dona Miraci Silva, do Assentamento Roseli Nunes, em Mirassol D’Oeste, no Mato Grosso.
“Que esse júri olhe por nós e faça um encaminhamento para o STF contra o marco temporal, porque nós precisamos da nossa terra para viver. Senão nosso cacique vai morrer, e não vamos ter nem a terra pra enterrar ele”, finalizou Davi Krahô, vice-cacique da aldeia Takaywrá, no Tocantins.