Por Márcio Cruz.
Aos Delirantes
Nessa primavera de 2023, o céu chora em cântaros na região Sul e a seca assola a região Norte do Brasil, inundando a desperança e torrando no sol a pino, os sonhos de quem pretende cultivar a terra.
Na Europa, a guerra entre a poderosa Rússia e a resistente Ucrânia segue sem novidades. O assombro do mundo está no fio desencapado em 1948, após a segunda grande guerra mundial. Eu me refiro à criação do Estado de Israel e à questão palestina. Nesse décimo oitavo dia de outubro, as tragédias ambientais que assolam o Sul e o Norte do Brasil não se comparam com a tragédia das guerras.
Assisti atônito imagens de uma Palestina tomada pelo terror de Estado de Israel. Eu sei, não se pode esquecer o terror promovido pelo Hamas, movimento islamista palestino, de orientação sunita, grupo armado que usa métodos terroristas contra civis desarmados. Mas, considerar o povo palestino como sendo Hamas, é o mesmo que considerar o povo brasileiro como sendo resultado do discurso de ódio do bolsonarismo.
Nenhuma guerra é justificável. Todo ódio carrega em si o desejo pelo terror. Toda guerra é hedionda. Por isso, o terrorismo de Estado é o mais hediondo de todas as formas de guerra. Por usar canhões, tanques, navios, mísseis, aviões e exércitos contra crianças e idosos, jovens, pais e mães que, desarmados, nada podem fazer a não ser fugir, e mesmo na fuga, são assassinados.
Por que foram assassinados mais de 500 palestinos em um hospital bombardeado? Que sérias ameaças para o Estado de Israel se revelavam os 26 hospitais e 23 ambulâncias que foram atacadas com bombardeios em pleno ato de socorro? Quem desejaria assassinar doentes, feridos, médicos e enfermeiros? Quem desejaria aniquilar a fé na humanidade?
Meses atrás, a Europa inteira cobrava punição do governo russo por bombardear um prédio onde moravam civis na Ucrânia. Os bombardeiros contra o território palestino destruíram mais de 9 mil casas, e a Europa silencia sobre seus crimes de guerra.
Ao ler as notícias que chegam do Oriente Médio o belo perde a beleza, a memória apaga todo o sorriso e a face enruga a testa, recolho o queixo até o peito num suspiro: Nada posso!
A sala de reunião ainda estava vazia quando leio as notícias. Atarefados, participantes do evento chegam conversando amenidades de um país onde o ódio e a baixeza foram derrotados. Em minha direção, mãos oferecem um livro. Um sopro de afeto. Um livro simples e verdadeiro, que guardei para lê-lo em momento oportuno.
No vigésimo dia de outubro, já em casa, sento-me na velha poltrona com braços de madeira e tecido xadrez, a mesma que expõe as entranhas de espumas denunciando a presença de Opa, nossa gata. Acendo a luz fria do pedestal, com claridade suficiente para ajustar a vista. Penso comigo, preciso sair dessa dor, necessito emergir da tristeza que se apoderou de meus olhos e respirar.
Incrédulo em meu intento, toco com a ponta dos dedos lentamente no canto superior das primeiras folhas de papel, sinto sua textura entre os dedos. Folheio as páginas do livro que ganhei de presente numa manhã ensolarada em Alexânia, no estado de Goiás. O livro de contos se chama “Os modernismos de Gonçalina”[1].
Obra escrita por muitas mãos, desvela um tempo de disruptura cultural no Brasil. A Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922. No livro estão desenhadas histórias fictícias envolvendo os principais artista da época: Ernani Braga, Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Guiomar Novaes, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos, Menotti Del Picchia, Manuel Bandeira e Cândido Portinari. São contos que narram acontecimentos. Cartas e memórias do ano 1922 e das décadas seguintes, relacionando os personagens principais da Semana de Arte Moderna com a personagem principal, Gonçalina.
Quando dei por mim, desfrutava da leitura como se desfrutasse de um vinho raro, registrando cada sensação, cada imagem, cada sentido que entra na boca e toma o corpo que bebe, numa experiência única.
Tudo que foi escrito, alinhavando diferentes papéis sociais de Gonçalina como avó, tia, mãe, professora e amiga que nasceu no dia da Semana de Arte Moderna, foi desenhando emoções e lugares de afetos em minha leitura. Senti como se a maldade do mundo estivesse temporariamente lacrada numa bolha de sabão flanando a esmo, suspensa no ar, inofensiva. Desejei nunca mais deitar o livro sobre a mesinha no canto da sala. Enquanto alimento afetos pelas histórias envolvendo Gonçalina, o mundo estará a salvo, pensei!
A intimidade que encontrei junto dos personagens do livro exorcizou a dúvida sobre a beleza do humano e ressuscitou em mim a fé na humanidade. A leitura sobre Gonçalina, ou, dedicadas a ela, fez o alaranjado céu de Alexânia ressuscitar em minha memória como algo belo, digno de um sorriso.
Narrativas primorosas, cenas desabotoadas de certos realismos e falas concisas que Gonçalina, nascida em 18 de fevereiro de 1922, agora com 101 anos, reserva aos lábios finos, largos e lúcidos, como a que disse ao bisneto quando sentado em seu colo no dia da festa pelo seu centenário “… às vezes o coração da gente faz uma bagunça. Alegria, tristeza, saudade, tudo de uma vez só, misturado, e a gente fica assim…”
Percebi que estava íntimo de Gonçalina, como se eu mesmo tivesse escrito todas as cartas e depoimentos que lhe foram dedicadas em seu centenário, e publicadas nesse livro. Também tenho dúvidas sobre o que esperar da vida depois dos 100 anos, quando me dou conta que para um palestino chegar aos 100 anos de idade, parece algo impossível. Voltei à leitura. É preciso manter a maldade do mundo na frágil bolha de sabão por mais tempo.
Sei, parece delírio de minha parte. Pode ser que o real seja aquilo que existe entre o antes e depois de tudo que acontece. Assim como o silêncio no intervalo entre notas musicais de uma melodia, sabe? Talvez o silêncio seja a realidade da música e não a melodia. Talvez, o real seja o momento em que leio esse livro, e tudo o mais seja a melodia da vida, ora trágica e cômica, ora repetitiva e célere. Queria pensar que a maldade no mundo não é real, sei, parece delírio.
Fica a cumplicidade. Pensei em escrever uma carta à Gonçalina, ainda lúcida, mas decidi enviar este depoimento aos Delirantes, coletivo de escritoras e escritores de Fortaleza capital do Ceará, como um sentimento de dever e obrigação em retribuir este presente, sabe aquele muito obrigado!
Não tem o mesmo primor na técnica e estética de escrita, começa com o realismo da guerra e não com o texto ficcional muitas vezes desejado. Mas é um depoimento sincero e espraiado de afetos.
[1] Os modernismos de Golçalina. Coletivo Delirantes. 1º Ed. São Paulo, SP: Santillana Educação, 2023 – (Veredas).
Márcio Cruz é educador Popular, sociólogo, poeta, pai, avô, companheiro de jornada.
A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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