Por Maurício Brum.
“Na América Latina, os estádios de futebol exercem duas funções: nos tempos de paz são palcos de partidas; em tempos de crise, transformam-se em campos de concentração”. (Ryszard Kapuscinski, ‘A guerra do futebol’)
Logo após o golpe de 11 de setembro, os regimentos de Santiago se viram diante de um problema logístico: com a perseguição varrendo a capital com tamanho ímpeto, onde manter os presos políticos que aguardavam para ser interrogados? Os quartéis e cadeias comuns já estavam cheios, restando os recintos esportivos como alternativa. Solução provisória antes que novos campos de concentração fossem inaugurados no deserto, o Estádio Nacional converteu-se na maior prisão do país antes do fim do mês.
La cancha infame:
Parte I: Os Inícios (extras)
Às portas da cancha, os militares encarregados de cadastrar os prisioneiros – nome, idade, endereço, profissão, número da identidade e nome dos pais – não respeitavam ordens de chegada. Atendiam primeiro quem era trazido por oficiais de patente mais elevada. Aqueles detidos que estavam sob custódia de um subalterno podiam esperar horas até o fim da triagem e o encontro com sua cela – geralmente um vestiário, já superlotado em sua nova função, com mais de 120 pessoas espremidas dentro.
Enquanto aguardavam, os presos podiam ver que nenhum veículo saía dali mais leve do que havia chegado. Caminhão, jipe ou ônibus, qualquer motorizado capaz de levar detidos para a cancha também exercia uma segunda função no caminho de volta: carregar os corpos dos executados no estádio para a desova em algum canto de Santiago. Muitas vezes, os cadáveres apareciam nas poblaciones, as favelas dos arrabaldes, como um alerta ameaçador e fácil de interpretar.
Apesar dos indícios sombrios, todos desejavam ser recebidos logo. Os fardados, compreensivelmente, para ir embora de uma vez e encerrar o dia de serviço. Os detidos, para tentar se explicar e recuperar a liberdade o mais cedo possível. Nos primeiros dias depois do golpe, as informações sobre o que realmente acontecia no país ainda eram escassas, a comunicação com velhos amigos podia ser perigosa, os jornais estavam sob censura e, para a maioria da população, era impossível saber o tamanho da repressão.
Poucos desconfiavam que naquele mesmo momento havia outros cativos sendo atirados ao mar ou transportados para o deserto e executados com a desculpa de que tentaram fugir. Menos ainda eram os que podiam cogitar que até mesmo padres estavam sendo mortos pelas patrulhas nas periferias, por tentar proteger fiéis ligados aos partidos aliados de Salvador Allende.
Mesmo dentro do Estádio Nacional era impossível de mensurar o terror imposto pelo Estado em todo o Chile. Para abafar os tiros das sessões de fuzilamento, os soldados recebiam a orientação de ligar os ventiladores dentro dos vestiários, mesmo em dias frios. Algumas execuções eram falsas – o batalhão atirava para o céu no último instante –, compondo o sádico terrorismo psicológico da prisão, mas se acredita em pelo menos 400 mortes jamais contabilizadas em qualquer lista de vítimas do estádio. Oficialmente, o número gira em torno de quarenta executados na cancha.
Na primeira semana, o gramado do principal campo de futebol do país foi regado com sangue humano. Quando essa matança desenfreada deu lugar a outra mais calculada, rapidamente os jardineiros foram convocados de volta ao trabalho: como numa aterradora realidade paralela, percorriam o campo com seus cortadores de grama buscando deixá-lo permanentemente em condições de jogo – dentro de dois meses, o Chile teria de disputar a repescagem para a Copa do Mundo, ironicamente contra a União Soviética.
A alienação obrigada dos jardineiros podia parecer uma barbaridade para alguns dos prisioneiros, mas muitos desses trabalhadores anônimos foram responsáveis por levar notícias aos parentes dos detidos, que aguardavam em vigília no exterior do estádio. Desde o início da manhã até o fim da tarde, o período de respiro em que não havia toque de recolher na capital, centenas de pessoas perambulavam nas cercanias da cancha em busca de notícias sobre seus conhecidos.
* * *
A ignorância podia ser uma bênção para quem ainda não tinha visto nem ouvido – e nem sentido na própria pele – as atrocidades que inevitavelmente esperavam a todos. Quase sempre, os levados ao Estádio Nacional só compreendiam uma parte da história que se escrevia diante de seus olhos. Sabiam que estavam ali por supostas (ou verdadeiras) ligações com partidos de esquerda, mas não entendiam qual risco representavam ao regime recém-instaurado.
Lá fora, o Exército vendia que uma violenta resistência de “marxistas fortemente armados” era articulada no país inteiro, buscando assim justificar a perseguição indiscriminada de “vermelhos” e simpatizantes. No entanto, a imensa maioria dos homens e mulheres presos jamais havia agarrado um fuzil – e não tinha qualquer histórico de relação com grupos extremistas.
Na neurastenia que o pinochetismo inculcou em seus asseclas, a lista de prisioneiros incluía desde filiados ao Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), este sim um grupo que pregava a luta armada (e não tinha ligação direta com o governo Allende), até pessoas flagradas com livros sobre o cubismo – obras ensinando a “doutrina cubana”, na interpretação de alguns uniformizados.
Soldado passa cigarros a prisioneiros nas arquibancadas do estádio. Muitos dos recrutas cumpriam o serviço militar obrigatório e, sem concordar com o golpe, viram-se obrigados a vigiar os prisioneiros políticos. (foto do Museu da Memória e dos Direitos Humanos do Chile)
Havia um ciclo ajustado para os episódios de cada indivíduo no Estádio Nacional e, no início, persistia uma esperança ingênua de que contigo poderia ser diferente. Mas os presos não tardavam a perceber que a chance de se explicar raramente vinha durante a triagem, ou nos dias seguintes em que seguiam trancafiados no esqueleto da cancha. Os militares não queriam respostas. Sabiam que elas não existiam: as guerrilhas jamais se formaram, as armas eram irrelevantes e só existiam nas mãos de uns poucos miristas – e os generais tinham plena consciência disso.
Sim, a história registra execuções de personagens simbólicos para a esquerda e seus partidos, mas a maior parte das mortes foi quase aleatória: não se tratava da vítima, mas da lição que ficaria para os sobreviventes. Se antes do 11 de setembro muitos chilenos pressionados pela crise do país sonhavam com uma substituição do governo – acreditando numa intervenção militar curta e novas eleições – até o fim do mês se viu que o novo regime seria longo e sofrido demais.
Na prisão política, os arrestados observavam e esperavam, privados de mais notícias. Percebendo que não seriam ouvidos até o interrogatório, sofriam com um fenômeno brutal: passavam a desejar o momento da tortura. Notavam que apenas respondendo ao questionário inócuo dos fardados poderiam mostrar que não sabiam de trama guerrilheira nenhuma. O mais difícil era aguentar vivos a angustiante expectativa, em meio ao frio, à fome e à depressão. Antes e depois da tortura, houve armadilhas: a sedução do suicídio, o coração parando durante um choque elétrico, a hemorragia pelo excesso de pancadas recebidas.
Quem tinha a sorte azarada de ser chamado para se explicar numa sessão de socos e pontapés devia se dirigir ao “disco negro”, atrás de um dos gols do estádio. Em tempos de paz, ali eram realizadas as provas atléticas de arremesso de peso e martelo. Nos dias de repressão, tornou-se a antessala da tortura. Uma vez no disco, eram escoltados até outro prédio do complexo, o Velódromo, onde seriam bombardeados pelas interrogações. Partiam com a certeza do sofrimento iminente e uma mórbida ansiedade para que aquele fosse o último suplício.
* * *
Nem todos foram liberados após o primeiro inquérito. E nem todos os executados encontraram a morte por aquilo que haviam dito ou deixado de dizer enquanto eram violentados. Às vezes, sofriam denúncias – fundadas ou não – de outros prisioneiros, desesperados demais com sua própria sorte para manter o silêncio. Cada interrogado com jeito “inocente” não escapava de perguntas que saíam pela tangente – “quem é o mais extremista do teu vestiário?” –, mas as informações mais letais eram obtidas mesmo com um sujeito sem rosto.
Em poucos dias o Estádio Nacional ficou carregado por mitos, e o personagem mais temido dessa nova história era um homem encapuzado. Com um cobertor furado nos olhos a esconder-lhe a cabeça, ele percorria todo o círculo da cancha, fortemente escoltado por soldados. As versões são contraditórias – parte delas diz que era carregado com desprezo, como um animal; outros garantem que era protegido e respeitado pelos recrutas. Coincidem quando contam que caminhava resfolegante e sustentava um olhar perturbador. Na versão colhida por Eduardo Galeano, o algoz teria sido visto guiado por uma espécie de coleira. Escreveu:
– Esse encapuzado parece um cachorro – diziam os presos.
– Mas não é – diziam os cachorros.
Frazadas del Estadio Nacional (2003), livro de Jorge Montealegre Iturra.
Não havia condenação mais certa à morte do que o dedo indicador do misterioso encapuzado. Os mais experientes no estádio buscavam fugir de seus olhos, perscrutando distraidamente um tijolo no chão ou um azulejo na parede, quem sabe se escondendo nos fétidos e alagados banheiros do camarim. Faziam-se de bobos para não correr riscos, pois às vezes até a tranquilidade pela saída do carrasco poderia ser um alívio curto. Era comum o encapuzado regressar ao mesmo vestiário com um intervalo de poucas horas, como para ter certeza de que não havia deixado escapar alguém.
Nunca se soube ao certo quem ele era, e nem se se tratava de apenas uma pessoa ou várias – um socialista arrependido delatando seus antigos companheiros, um militar disfarçado, um torturador em busca da forra contra aquela vítima particularmente difícil de fazer falar. O poeta Jorge Montealegre, que esteve preso e escreveu o livro de memóriasFrazadas del Estadio Nacional, nunca comprou a versão do carrasco único:
Creio que o encapuzado pode ter sido mais de uma pessoa. No entanto, o monstro teve nome e sobrenome. Houve um que assumiu por todos.
Em outubro de 1977, um homem chamado Juan Muñoz Alarcón confessou na Vicária da Solidariedade que ele havia sido o sinistro encapuzado. Tratava-se de um antigo militante socialista, que havia sido expulso do partido antes do golpe. Depois – confessa – “fui levado ao Estádio Nacional para reconhecer gente. Fiz isso voluntariamente nessa época, porque em mim havia um espírito de revanche contra os que haviam sido meus antigos companheiros, pela perseguição da qual me fizeram objeto. Eu sou o encapuzado do Estádio Nacional”. Mais tarde recebeu treinamento na Colonia Dignidad e foi colaborador da DINA. Deixou uma larga confissão e a certeza de que morreria logo: “Eu estou morto por um dos dois lados”. Era a tragédia de um traidor que voltava a trair. Em 24 de outubro de 1977 apareceu assassinado em um potreiro, com várias punhaladas e um tiro.
Extras: Poema uno, de Rafael Eugenio Salas, escrito no Estádio Nacional.
Fonte: http://impedimento.org/la-cancha-infame-ii-o-encapuzado/