Por Júlia Dolce.
Entre as maiores vítimas do golpe militar brasileiro, que completa 54 anos neste domingo, 1º de abril, está o campesinato. O fato, no entanto, ainda é pouco discutido na sociedade brasileira. O Estado reconhece apenas 29 dos 1196 camponeses assassinados pela ditadura, estatística obtida em um levantamento de 2012 da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e reiterada no relatório final da Comissão Camponesa da Verdade em 2014.
Para Humberto Santos Palmeira, integrante da Direção Nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e militante do movimento desde 2003, há um grande desconhecimento sobre o processo de repressão dos camponeses no pré e pós golpe de 1964, inclusive entre setores da esquerda. “Há um desconhecimento da realidade agrícola e camponesa brasileira, e como nossa própria formação de esquerda é centrada no urbano, há um desconhecimento sobre o processo de repressão camponesa”, afirmou.
De acordo com Palmeira, a relação do governo militar com o agronegócio brasileiro foi muito próxima e contribuiu para forjar as bases latifundiárias da produção brasileira que, após o golpe de 2016, voltou a se fortalecer. “O que hoje dita o agronegócio tem na sua gênese as políticas aplicadas pela ditadura no campo: de aumentar o nível de repressão com os camponeses e dar incentivo estatal para a grande propriedade”, afirmou.
O MPA realizou, ao longo da última semana, a sua Quarta Escola da Memória, que tem como objetivo formar os jovens militantes do movimento sobre a história da resistência e repressão dos camponeses a partir do golpe militar de 1964.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato – Como você encara os impactos do golpe de 1964 para o campesinato?
Humberto Santos Palmeira – As Ligas Camponesas, desde os anos 1960, apontavam que a conjuntura levaria a um golpe de Estado e por isso os camponeses precisavam se organizar para resistir. Então as Ligas passaram por um processo de organização e formação, mas houve pouco tempo de organização dessas frentes. Com o golpe, a repressão às lideranças camponesas e camponeses foi tremenda. Teve caso em Pernambuco de prisão de 5 mil pessoas com triagem de quem era da Liga, e pelo simples fato de ser da Liga você era preso. A própria violência do Estado foi horrorosa, um exemplo disso é o caso do camponês Gregório Bezerra, que foi amarrado no fundo de um jipe e arrastado nas ruas de Recife. O Estado brasileiro reconhece poucas mortes de camponeses, e por isso foi criada a Comissão Camponesa da Verdade. Conseguimos fazer um resgate, o registro, mas não conseguimos fazer com que o Estado reconhecesse o crime contra essas populações. A Comissão Camponesa da Verdade chegou aos dados de que foram 1.196 mortos na ditadura, mas o Estado reconheceu apenas 29.
O que foi a Comissão Camponesa da Verdade?
Quando começou o debate com a Comissão Nacional da Verdade, a gente viu que ela não teria pernas suficientes para ir para o campo. Então a Via Campesina, com o movimento sindical, propôs uma comissão específica para o campo. A Comissão Camponesa da Verdade não pega só o período a partir de 1964, ela pensa a partir de 1945, porque na reflexão dos movimentos populares e pesquisadores que compuseram a comissão, 1964 era parte de uma violência que já vinha acontecendo. Então, nesse período, grandes lutas camponesas foram destruídas, como a Guerrilha de Porecatu, no Paraná, a Guerra do Capim aqui em São Paulo, tudo antes do golpe.
O AI5 faz 50 anos neste ano. A partir de seu decreto, qual foi a consequência para os movimentos camponeses?
Em tempos organizativos, as Ligas Camponeses foram destruídas até 1965. As outras organizações que tinham um maior nível de tensionamento foram extintas, suas lideranças foram mortas, presas, torturadas. Na mesma medida que a repressão aumentou na cidade com o AI5, no campo foi maior, porque na cidade você ainda tinha um sistema de comunicação mais efetivo. No campo, nos anos 1960, era muito difícil essa comunicação interna e com a cidade. Há muitos registros de violência pós AI5 registradas no processo de abertura em 1985, ou apenas em 2012 com a Comissão Camponesa da Verdade.
De que forma o golpe de 1964 incentivou o agronegócio? Podemos fazer um paralelo com o golpe de 2016?
Tem um conceito que o professor Guilherme Delgado usa e que os movimentos do campo adotaram para caracterizar o período da ditadura militar, que é o de modernização conservadora. A entrada da Revolução Verde foi na época da ditadura, então você “moderniza” a produção e a propriedade agrícola, mas conserva seus traços originais da grande propriedade. O que hoje dita o agronegócio tem na gênese as políticas aplicadas pela Ditadura no campo: de aumentar o nível de repressão com os camponeses, e dar incentivo estatal para a grande propriedade. Então você moderniza a partir de insumos, máquinas, agrotóxicos, mas conserva a estrutura fundiária, e não faz reforma agrária.
A relação do Estado com o agronegócio na ditadura era tão forte, que várias lideranças urbanas inclusive, não só camponesas, eram pegas na cidade e levadas para o campo para serem incineradas nas usinas de uma fazenda de cana no Rio de Janeiro, como o militante David Capristano. Sempre teve essa relação mútua e umbilical entre o Estado e o agronegócio, para manter o status-quo do poder político.
Se formos fazer um paralelo com o golpe de 2016, esses mesmos atores do agronegócio e capital financeiro foram partes constituintes do golpe. Com as primeiras mensagens golpistas nas eleições de 2014, formou-se um bloco conservador do agronegócio para derrubar Dilma Rousseff com o golpe parlamentar, teoricamente via instâncias democráticas, mas financiada pela Bancada Ruralista, que votou completamente para derrubar a ex-presidenta. Nesta última Caravana do Lula vimos esses ataques do agronegócio também. Então esse agronegócio hoje é fruto da modernização conservadora da ditadura.
Acha que existe uma falta de reconhecimento por setores da própria esquerda sobre o impacto do golpe no campo?
É um déficit que temos na esquerda brasileira, um desconhecimento da realidade agrícola e camponesa. E como nossa própria formação da esquerda é centrada no urbano, as experiências organizativas no campo foram muitas vezes abandonadas pela própria esquerda. Então há um desconhecimento sobre o próprio processo de repressão. Tem muita pesquisa e pouca divulgação sobre esse período dos camponeses. Uma das questões principais que a Elizabeth Teixeira e o Clodomir Santos de Moraes, das Ligas Camponesas, ressaltam, é o quanto é difícil dar visibilidade para os conflitos do campo dentro da própria esquerda.