Se o estado de São Paulo adotasse o mesmo critério de emergência da França para monitorar a poluição do ar, teriam sido registrados 480 alertas de má qualidade atmosférica durante o ano de 2015. Porém, como o critério em vigor no estado mais rico do Brasil é bem menos rigoroso, foram zero dias de emergência, segundo informa a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb – órgão do governo paulista responsável pelo controle e monitoramento da poluição).
“O nível crítico de emergência adotado por Paris, Londres e Estados Unidos é menor que os padrões de qualidade do ar determinados pelo estado de São Paulo e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). E o nível crítico de emergência paulista e nacional é tão alto que não é alcançado”, afirma estudo do Instituto Saúde e Sustentabilidade publicado em agosto, uma releitura do “Relatório de Qualidade do Ar 2015” da Cetesb.
O padrão estabelecido para monitorar a qualidade do ar no Brasil, diz o relatório, está 11 anos defasado em relação ao sugerido, em 2006, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar dos estudos e avanços científicos ocorridos no mundo nas últimas décadas, os parâmetros em vigor no país ainda são os estabelecidos por uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), em 1990.
No estado de São Paulo, detentor da melhor e mais precisa rede da América Latina de monitoramento da poluição do ar, os padrões foram alterados em 2013. Uma modificação que foi pequena e pouco esclarece em relação à real qualidade do ar, segundo a médica patologista e especialista em gestão de sustentabilidade, Evangelina Vormittag, diretora do Instituto Saúde e Sustentabilidade.
No documento da OMS, intitulado “Air Quality Guidelines, an Update 2005”, o padrão de material particulado inalável (MP10) sugerido como aceitável é de 50 microgramas por metro cúbico (?g/m³) por um período de 24 horas. Pela resolução do Conama de 27 anos atrás, o padrão do Brasil é de 150 ?g/m³ por 24 horas e, de acordo com o estabelecido em São Paulo, 120 ?g/m³ por igual período.
Na prática, isso significa que o monitoramento e as informações oferecidas à população em São Paulo não condizem com o padrão estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os chamados material particulado inalável (MP10) e particulado inalável fino (MP2,5), são resíduos oriundos da queima de combustíveis fósseis, e são de extrema toxicidade.
“A redução em São Paulo foi muito pequena. Essa redução até confere para a Cetesb a possibilidade de dizer que, basicamente, todas as estações estão dentro do decreto paulista”, afirma Evangelina.
Ao analisar o relatório do governo paulista aplicando os padrões da OMS, o estudo do Instituto Saúde e Sustentabilidade revela que a verdadeira condição da poluição na cidade e no estado de São Paulo é muito mais grave do que a população é informada.
“Sobre o monitoramento da concentração das médias diárias do particulado inalável MP10 (ao se considerar todas as estações automáticas do estado de São Paulo e os 365 dias do ano), observa-se 2.214 ultrapassagens em relação ao padrão da OMS, em contraposição a 128 ultrapassagens em relação ao padrão paulista – ou seja, a CETESB apresenta 6% das ultrapassagens, segundo os critérios de segurança em saúde; e 55 ultrapassagens em relação ao padrão nacional (CONAMA) – apenas 2,5% das ultrapassagens em relação aos critérios da OMS”, revela a releitura do Instituto Saúde e Sustentabilidade.
O estado de São Paulo tem 57 estações fixas de monitoramento, sendo 28 nas cidades da região metropolitana da capital.
“O padrão anual de qualidade do ar paulista foi ultrapassado por medidas de cinco estações automáticas (9,6%), enquanto ao se utilizar o padrão de qualidade do ar da OMS, observa-se a ultrapassagem por 48 estações automáticas (92%)”, afirma outro trecho do estudo realizado por Evangelina.
Em relação aos materiais particulados, a comparação com Paris dá dimensão à realidade da cidade de São Paulo. Enquanto a capital francesa adota como padrão para acionar o alerta e os procedimentos de emergência para o material particulado o índice de 80 ?g/m³ por um período de 24 horas, São Paulo define como 500 ?g/m³.
Evangelina explica que entre 80% a 90% do relatório anual divulgado pela Cetesb é baseado no padrão de 120 ?g/m³, mas isso não é informado de modo claro à população. Para ela, o órgão do governo do estado comandado por Geraldo Alckmin (PSDB), tem consciência do erro.
“A Cetesb não informa adequadamente. Quem quiser ver o relatório, não vai entender isso. A população fica totalmente desamparada. A Cetesb sabe disso e dá a informação errada. Quem é responsável por isso é o governo de São Paulo. Acredito que a Cetesb não informa corretamente porque o governo não quer”, afirma a diretora.
Reconhecimento
Gerente da Divisão de Qualidade do Ar da Cetesb, Maria Lúcia Guardani concorda que os padrões adotados em São Paulo são altos e “não são a régua da OMS”. Ela explica que a OMS indica esses parâmetros, mas cabe a cada cidade determinar quais são as suas metas até se alcançar os valores sugeridos pelo organismo internacional.
“O melhor ar que se respira é aquele que tem como indicação de alguns poluentes os valores da OMS”, reconhece Maria Lúcia, mas questiona: “Como se fará para reduzir toda a emissão da indústria e dos veículos para 50 microgramas de MP10?”.
Ela explica que em São Paulo, quando se ultrapassam os padrões estaduais, são tomadas atitudes com programas de controles de emissão de poluentes dos veículos e da indústria. Segundo Maria Lúcia, a Cetesb tem programas de redução de fontes fixas de emissão de poluentes e há um trabalho junto à indústria para melhorar o sistema de controle em locais que estão acima de 120 microgramas de material particulado.
O mesmo com a emissão de automóveis, por meio do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), instituído em 1986, e o Programa de Controle da Poluição do Ar por Motociclos e Veículos Similares (Promot), criado em 2003.
“É preciso ter um padrão de corte para agir, controlar, fiscalizar e fazer programas para se conseguir reduzir a quantidade de poluentes na atmosfera”, afirma a gerente da Cetesb, que também defende a mudança da matriz energética do transporte público e dos veículos para reduzir as emissões de poluentes.
Sinais coloridos
Quem mora ou visita a cidade de São Paulo, se acostuma a ver a indicação da qualidade do ar mostrada nos relógios espalhados por ruas e avenidas da capital. Usando um sistema de cores para informar a população, o verde indica ar “bom”, o amarelo “moderado”. Laranja é “ruim”, vermelho é “muito ruim” e o roxo, “péssimo”. Apesar de aparentemente didático, o sistema é duramente criticado pela diretora do Instituto Saúde e Sustentabilidade.
Evangelina explica que o código de cores é, na verdade, o Índice de Qualidade do Ar (IQAr), um índice qualitativo que o governo paulista copia da agência ambiental dos Estados Unidos, por sua vez baseado nas recomendações da OMS. Porém, o objetivo desse índice é ajudar a população a entender o que a qualidade do ar local significa para a saúde.
O problema, analisa Evangelina, é que o cidadão vê no relógio a cor amarela, mas não sabe sobre qual poluente se refere, sendo que cada poluente tem um efeito diferente para a saúde. Assim a população não é informada do que representa o código de cores e nem as ações que deveriam adotar para se proteger. Segundo ela, quando o cidadão busca saber o que significa para a saúde da cor vermelha (muito ruim), por exemplo, a informação “é maquiada”.
“A Cetesb dá o resultado do índice de qualidade do ar, mas não fala o que isso significa para a saúde. No nível ‘ruim’, já tem mortes. Nos Estados Unidos, eles falam que uma parte da população, como os idosos, está correndo risco de morte. A Cetesb não fala. Então se um idoso olha, ele não entende qual a gravidade”, diz a especialista.
Ela ainda destaca que nos Estados Unidos há um site (www.airnow.gov) que monitora a qualidade do ar de 300 cidades; as pessoas podem receber por e-mail se as condições de qualidade do ar são preocupantes na sua área e há aplicativos em tablets e celulares com o mesmo objetivo; além de ferramentas que orientam profissionais de saúde ou pais a auxiliarem pacientes e crianças sobre como se prevenir dos efeitos da poluição do ar.
A diretora do Saúde e Sustentabilidade também critica o modo como o governo do estado informa os sintomas cardiovasculares e respiratórios causados pela poluição, definindo, por exemplo, como “tosse seca”, “cansaço” e “ardor nos olhos”. “São sintomas superficiais para explicar o que vai causar e o agravamento para uma pessoa que tem asma”, afirma a médica.
Outro problema apontado por ela é a diferença de nomenclatura adotada no estado de São Paulo em comparação com o órgão americano. Enquanto nos Estados Unidos a cor laranja significa “insalubre” (não faz bem à saúde para determinados grupos de risco), em São Paulo a mesma cor é informada como “ruim”. Tal diferença, diz Evangelina, torna a informação menos impactante do ponto de vista da saúde.
Desinformação
Segundo Evangelina, ao produzir um relatório oficial baseado no padrão paulista e não no padrão da OMS, sem deixar isso claro, e misturar com dados do Índice de Qualidade do Ar, a Cetesb faz uma “coisa dupla”, uma “maquiagem” misturando duas informações.
“É verdade que quando ela fala do Índice de Qualidade do Ar, a Cetesb está falando do padrão da OMS, mas o relatório, aquilo que ela informa, não tem a base desse padrão. Então temos uma informação dupla, uma baseada no padrão de 120 (microgramas de material particulado) e a outra, na fórmula que é uma cor”, afirma.
Maria Lucia Guardani, da Cetesb, rebate. “São coisas bem distintas. Quando eu falo para a saúde da população, é o que a população está vendo para tomar algumas atitudes, como, por exemplo, não praticar esportes quando a concentração está muito alta… E quando ultrapassa o padrão, temos que melhorar o sistema de controle”, diz ela.
A gerente da Cetesb reconhece que padrão de qualidade e índice de qualidade “são coisas conjuntas”, mas afirma ser preciso entender a diferença entre os programas de controle e fiscalização e a informação de saúde passada à população. “Dizer que a Cetesb está informando de maneira errada ou fora dos padrões da OMS, é uma confusão, não se pode dizer isso.”
Tal explicação, entretanto, não convence a patologista Evangelina, que afirma não ser possível misturar duas medidas diferentes. “Não tem como justificar, não existe isso, nenhum relatório do mundo vai usar duas réguas.”
Futuro
Evangelina sustenta que o grande problema de São Paulo (e do Brasil) é não haver prazo para as mudanças ocorrerem. Ela reconhece que a mudança do padrão, por si só, não vai mudar a situação da emissão de poluentes, mas pode fazer o poder público desenvolver políticas de redução da poluição, além de alertar a população que o ar não está bom para a segurança da saúde e precisa ser mudado.
“O padrão vem para se fazer uma gestão que faça a redução, obrigue, pressione. Enquanto não houver isso, não há pressão. As pessoas estão morrendo e adoecendo com esse nível de poluição”, diz ela. Como exemplo, afirma haver estudos mostrando que, se o prazo para atingir o padrão da OMS fosse de 15 anos, haveria 150 mil mortes e um milhão de internações durante o período.
“Se o estado mostrasse a real situação do ar, seria péssimo para ele. Pior do que isso, o governo não faz nada porque ninguém sabe disso e nem reivindica”, avalia Evangelina, lembrando que nos Estados Unidos e na Europa, o órgão ambiental responsável pelo monitoramento da poluição do ar é independente do governo, o que não ocorre no Brasil.
Por fim, ela lembra que em Paris, quando o ar da cidade atinge o nível de emergência – o mesmo que segundo a Cetesb não ocorreu nenhuma vez em São Paulo em 2015–, a Prefeitura proíbe o tráfego de veículos no centro da cidade, concede gratuidade nas passagens de metrô, determina suspensão das aulas, além de ampla comunicação na mídia para orientar a população a adotar medidas protetivas.
“Devido aos padrões de qualidade do ar defasados e, por conseguinte, a comunicação equivocada à população e gestores, a população brasileira segue desinformada, sem medidas protetoras do governo, sem defesa do judiciário, sem a opção de lutar e alcançar seus direitos”, diz um trecho do estudo do Instituto Saúde e Sustentabilidade.
“Se um médico quiser pegar o relatório anual para saber qual a situação do local onde uma criança mora, ele não conseguirá, porque verá que está dentro do normal. Esse médico não tem obrigação de saber que o padrão que está ali não é o adequado. Mas o órgão ambiental sabe, ele sabe que aquilo não tem o significado que deveria para quem tem preocupação com saúde. O que a Cetesb faz é muito grave”, sentencia a médica.
Fonte: Rede Brasil Atual.