Por Bruna de Lara.
O despacho, publicado no Diário Oficial da União em 16 de setembro, afirma que a vontade da mulher pode caracterizar um “abuso de direito” em relação ao feto. E, nesses casos, os médicos devem tomar providências “perante as autoridades competentes” para garantir que o procedimento recusado será imposto. No dia seguinte, o CFM publicou uma nota em defesa da resolução. “O Conselho Federal de Medicina, ao aprová-la, cumpre, mais uma vez, o seu compromisso com o respeito à dignidade da pessoa humana”, afirmou o relator Mauro Ribeiro. O compromisso claramente não abrange as mulheres.
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Na prática, procedimentos altamente dolorosos e invasivos, como a episiotomia (corte feito abaixo da vagina na hora do parto, muitas vezes sem anestesia), poderão ser feitos mesmo que as mulheres afirmem expressamente que não os autorizam. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde, a OMS, afirmou que “não há nenhuma evidência que prove a necessidade da episiotomia em qualquer situação” e que o corte nunca pode ser feito sem autorização. No entanto, o corte acontece em mais de metade dos partos naturais no Brasil – às vezes, sem autorização ou aviso.
Outra das formas mais cruéis de violência obstétrica que a medida pode permitir é a “manobra de Kristeller”, em que profissionais de saúde apertam ou chegam a se sentar sobre a barriga mulher durante as contrações para acelerar o parto. Apesar de a ciência já ter mostrado que as duas práticas violentas não se convertem em benefícios para a saúde, as mulheres, a partir de agora, não poderão mais recusá-las se o médico julgar que elas são importantes para o feto.
A obstetra Melania Amorim, pós-doutora em Saúde Reprodutiva pela OMS e representante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, me disse que a resolução abre um “precedente perigoso” para que a medicina tutele os corpos das mulheres “em nome de uma suposta preocupação” com o feto. “Isso não pode ser admitido”, argumentou, ressaltando que a resolução se equivale ao Estatuto do Nascituro – projeto de lei que pretende garantir ao embrião e ao feto os mesmos direitos dos nascidos, acabando com o direito ao aborto em qualquer circunstância.
Bendito seja o fruto
A leitura da decisão logo traz à mente a série The Handmaid’s Tale, baseada no livro homônimo de Margaret Atwood. O drama retrata uma sociedade teocrática, dividida em castas, na qual as mulheres só são valorizadas como incubadoras e mães. Aquelas consideradas transgressoras vivem como escravas sexuais para procriação. Já as da classe dominante – belas, recatadas e do lar, mas incapazes de engravidar – devem ter como único objetivo ser mães das crianças geradas pelo estupro de suas aias.
O passo dado pelo CFM, guardadas as devidas proporções, é claro, lembra o início da caminhada que transformou o que costumavam ser os Estados Unidos no terrível governo de Gilead (se você ainda não assistiu à série: 1- assista; 2- agora é tarde para reclamar de spoilers). Traz à memória, ainda, uma das cenas mais chocantes da série: a de uma aia grávida acorrentada a uma cama, isolada de todo convívio social, vigiada por seguranças fortemente armados. É assim que são tratadas as gestantes do país fictício criado por Atwood que não agem de acordo com o que se julga ser o melhor para a gravidez – ou que praticam um “abuso de direito” sobre os fetos. É a resolução do CFM levada ao extremo.
Fotos: Divulgação/George Kraychyk/Hulu
Como na série, a mulher de que fala o artigo 5º da resolução é tratada meramente como incubadora – ou, no máximo, como mãe obrigada a abdicar de tudo, inclusive sua autonomia e bem-estar corporal, em nome do bendito fruto de seu ventre. É significativo que o parágrafo não use em nenhum momento a palavra “mulher” ou sequer “paciente”. A pessoa a que se refere é apenas “gestante” e “mãe”. Mas o CFM vai além de reduzir a mulher a esses dois papéis.
O Conselho passa a mensagem de que o feto está em condição superior à da mulher, que não tem capacidade de escolher o que autoriza ou não que seja feito a seu corpo. E de que a gravidez é, agora, uma condição infantilizadora, capaz de transformar uma adulta lúcida em criança, adolescente ou pessoa desprovida do “pleno uso de suas faculdades mentais” – os únicos grupos que, até o início desta semana, não tinham direito à recusa terapêutica.
Esses dois recados, passados pela autoridade responsável por garantir a ética médica no Brasil, não devem ser considerados algo menor diante da atual cruzada contra nossos direitos. Vale lembrar que não são poucas as propostas de lei que pretendem retirar das mulheres estupradas ou em risco de vida o direito ao aborto, nem os que intencionam endurecer o castigo dado àquelas que arriscam suas vidas tentando interromper gestações indesejadas. Mas a resolução do CFM é mais do que um símbolo dos tempos que vivemos. É uma decisão que tirou ainda mais poder de defesa das mulheres grávidas no país em que uma a cada quatro delas já sofria violência obstétrica.
Não é de agora que o CFM mostra seu desdém pela violência de médicos contra mulheres gestantes e em trabalho de parto. Para Melania Amorim, o posicionamento “vem ao encontro de diversas posturas do CFM” que ameaçam os direitos reprodutivos das mulheres, como a omissão do debate sobre a descriminalização do aborto, realizado em audiências públicas no Supremo Tribunal Federal em agosto de 2018. Em outubro daquele ano, o órgão publicou ainda um parecer afirmando que o termo violência obstétrica é “uma agressão contra a especialidade médica de ginecologia e obstetrícia” e, portanto, “contra a mulher”. “Desde 2013 o elitismo da classe médica como um todo tem se exacerbado com apoio maciço ao projeto conservador”, argumenta Amorim.
Se o documento assinado pelo relator Ademar Carlos Augusto em 2018 pretendia calar as vozes que se levantam contra a violência obstétrica, o despacho desta semana, assinado pelo presidente Carlos Vital Tavares Corrêa Lima e pelo secretário-geral Henrique Batista e Silva, acaba de torná-la prática oficial – e de nos aproximar um pouco mais da distopia de Margaret Atwood.