“I cant’ breathe. Please, I can’t breathe”. Há exato 1 ano, em 25 de maio de 2020, o mundo assistia atônito as imagens que registraram as súplicas de George Floyd, brutalmente assassinado pelo policial Derek Chauvin na cidade de Minneapolis, no estado de Minnesota (EUA).
O homem negro de 46 anos, que em nenhum momento apresentou resistência durante a abordagem policial, afirmou mais de 20 vezes que não conseguia respirar durante os 9min e 26s em que o policial permaneceu ajoelhado sobre seu pescoço, o sufocando até a morte.
A divulgação das imagens nas redes sociais se tornou a faísca de um levante antirracista global contra a violência policial. Os massivos protestos que tomaram as ruas e incendiaram prédios em Minneapolis poucas horas depois do crime se espalharam por todos os continentes, em dezenas de países.
Mesmo em meio à pandemia da covid-19, foram cerca de dez dias consecutivos de massivas manifestações que reacenderam os gritos por justiça e de resistência, ecoados há anos pelo Movimento Black Lives Matter.
“O assassinato de George Floyd despertou uma nova onda na luta antirracista como nunca havíamos visto nos últimos 50 anos, desde as rebeliões massivas contra o racismo na década de 60 e 70”, afirma Nino Brown, ativista da coalizão Answer, siglas para Act Now to Stop War and End Racism (Agir agora para parar a guerra e acabar com racismo, em português).
“É realmente o início de um novo capítulo da liberdade para os negros e nos mostra, novamente, o papel de vanguarda que o povo negro tem na luta por Justiça nos Estados Unidos. Sem dúvida, é um movimento que entrou para a história”.
O levante pressionou por respostas imediatas da Justiça sobre o caso, o que ocasionou na detenção de Chauvin. Em 20 de abril deste ano, após três semanas de julgamento, o júri popular de Minneapolis considerou o policial culpado em todas as três acusações de homicídio contra o ex-segurança negro.
Como é usual nos Estados Unidos, o juiz publicará a sentença em dois meses a contar da data do decisão popular, e a pena pode chegar a 40 anos de prisão. Já os três outros policiais que participaram da abordagem e nada fizeram para impedir a morte de Floyd devem ser julgados juntos em agosto.
Tou Thao, Thomas Lane e J. Alexander Kueng são acusados de homicídio em segundo grau.
A condenação e manutenção da prisão de Chauvin foi mundialmente comemorada. Nino Brown ressalta que a decisão é de fato uma conquista histórica, mas, infelizmente, isolada, já que a população negra é, sistematicamente, alvo da violência policial nos Estados Unidos, e são raros os casos de policiais que foram condenados.
“Foi preciso 35 milhões de pessoas protestando em 60 países diferentes para mandar um policial para a prisão. Isso nos mostra a fraqueza do sistema criminal dos Estados Unidos e do chamado sistema democrático. Um vídeo que todos nós vimos… Todos nós vimos o que aconteceu, do início ao fim. Ainda assim foi necessário pressionar”, critica Nino.
“Derek Chauvin pegar 40 anos de prisão não é Justiça, é minimamente um acerto de contas porque George Floyd não voltará. A indenização para a família foi paga com dinheiro público, não veio do orçamento da polícia. Deveria ser a instituição policial a arcar com esses custos”, acrescenta.
Simone Nascimento, do Movimento Negro Unificado (MNU), relembra a força com que a mobilização antirracista chegou às ruas das principais capitais do Brasil. Não só em repúdio à morte de George Floyd, mas também vítimas da violência policial em território nacional.
“Me lembro de vermos o João Pedro morrer e depois de alguns dia ver o George Floyd nos Estados Unidos. Vimos os tantos elementos em comum entre o que eles vivem lá e entre o que vivemos aqui. É o que acontece no continente americano, no Norte ou no Sul”, diz Nascimento.
“Em uma situação de extrema vulnerabilidade social, a morte pela violência policial vem dizer: Aqui é América. A América racista, que tem a polícia e todo seu código penal orquestrado para manter e perpetuar o racismo. É isso que leva à indignação internacional. Esse levante antirracista se espalha em todo o mundo porque é uma indignação que nos une”, completa.
A projeção inédita das manifestações, de acordo com ela, se deve a um conjunto de fatores de desigualdade social que foram intensificados pela pandemia do novo coronavírus. Entre eles, altas taxas de desemprego, crescimento da fome e não acesso aos serviços de saúde.
Todos elementos de um terreno propício para um levante que uniu pessoas de diferentes raças e etnias.
“A morte de George Floyd gera uma comoção política e um sentimento antissistêmico que decidiu o rumo dos Estados Unidos e derrubou Trump”, afirma Nascimento.
Ela explica ainda que as forças policiais surgiram para cumprir um papel muito similar em toda diáspora africana no período pós abolição: tentar manter o controle sobre corpos negros e pobres, tratando-os como inimigos.
“A militarização da polícia nada mais é do que criar um contexto de guerra onde o povo brasileiro, os negros, são os que ameaçam a nação. Vivemos em territórios de morte. Jacarezinho é um território bélico. É ali que o Estado se vê na possibilidade de invadir e executar seres humanos sem que nada da Constituição seja levado em conta”, afirma, citando a 2ª maior chacina da história do Rio de Janeiro, quando pelo menos 29 pessoas foram executadas em 6 de maio deste ano.
Violência estrutural
Ainda que o levante antirracista tenha fomentado repúdio internacional, os Estados Unidos continuam registrando mortes de pessoas negras pelas forças policiais. Menos de um mês depois do assasinato de Floyd, por exemplo, o caso de Rayshard Brooks também ganhou repercussão.
O homem de 27 anos morreu após ser alvejado por um tiro no estacionamento de uma unidade do restaurante Wendy’s, em Atlanta. Poucas semanas depois, em agosto, uma nova onda de manifestações aconteceu em alguns estados, após Jacob Blake, um jovem negro de 29 anos, ter sido baleado na frente de seus três filhos enquanto tentava entrar em seu carro. Ele foi gravemente ferido e perdeu o movimento das pernas.
Para Nino Brown, tanto os assassinatos que aconteceram antes do caso George Floyd, e também fomentaram levantes contra a violência do Estado, como a Revolta de Fergunson, quanto casos recentes, mostram como o racismo está enraizado na sociedade americana e é fundante das forças policiais.
“Depois do assassinato de George Floyd, vimos muitos outros. Desde o primeiro dia de julgamento de Derek Chauvin, em 29 de março, ao menos 64 pessoas morreram na mão de policiais. A maioria eram negros e latinos, Há uma média de três mortes por dia. Enquanto temos esse julgamento sendo assistido por todo o mundo, a polícia ainda está matando. Realmente nos mostra o que é a supremacia branca. A sanção do Estado para matar”, reprova Brown.
De acordo com informações da plataforma Mapping Police Violence, 383 pessoas foram mortas pela polícia nos Estados Unidos desde o início do ano. Só houve seis dias em 2021, até o momento, em que a os agentes não mataram nenhum cidadão americano.
Dentre os 1126 óbitos registrados em 2020, 28% eram vítimas negras, apesar dessa população corresponder a apenas 13% do total de habitantes.
Reformas insuficientes
A morte de Floyd insuflou diretamente articulações por mudanças no funcionamento da segurança pública. Enquanto Minneapolis passa por processos de alterações na tentativa de implementar uma polícia comunitária, cidades como Boston, Nova York, Seatlle e Portland, entre outras, promoveram algumas reformas pontuais como uso de câmeras nos uniformes, proibição de ações policiais contra protestos e fornecimento de atendimento na área de saúde mental para os oficiais.
O republicano Donald Trump, enquanto ainda estava na Casa Branca, chegou a declarar que destinaria recursos, por meio do Ministério de Justiça, para treinamentos que “desinstalassem a violência” na corporação.
À época, Trump também ventilou alterações que incentivariam o uso de novas armas, não letais, para diminuir o número de vítimas fatais, e disse que a imobilização com o joelho, prática abusiva utilizada na abordagem policial que levou a morte de Floyd, estaria proibida.
Em paralelo, cresceu uma campanha pelo desfinanciamento das polícias, ou seja, uma realocação de recursos destinados às forças de segurança para outras áreas. Embora a campanha pelo corte de orçamento dos departamentos policiais seja importante e tenha apoio da classe média, Nino Brown faz a ressalva de que é uma medida insuficiente.
Isso porque, para ele, não basta retirar a verba das polícias sem questionar realmente a origem da violência protagonizada pelo Estado e a forma como ele atua. E, mesmo com um repasse menor, o ativista alerta que os policiais continuariam recebendo apoio político e financeiro de outras instituições da supremacia branca.
“Não vimos um corte ou um desencorajamento do poder da polícia. Eles ainda têm poder para nos matar. Eles vão e sairão livres disso. Eles acabaram de matar Andrew Brown, na Carolina do Norte, eles mataram Daunte Wright, eles mataram Ma’Khia Bryant. Mataram Adam Toledo, um jovem. Nenhum desfinanciamento irá fazer com que a policia não puxe esses gatilhos”, defende Brown, mencionando vítimas recentes da violência policial.
Futuro insurgente
Mesmo que ainda haja um grande caminho para percorrer na luta antirracista, é inegável que a mobilização global após o assassinato de Floyd promoveu um avanço de consciência e deu abertura para que novas ideias fossem tratadas.
Na opinião de Nino Brown, mesmo que a condenação de Chauvin seja um ponto fora da curva, e que instituições estadunidenses tentem tratar o caso como isolado, as milhares de famílias de vítimas da violência policial continuarão pressionando por justiça e demandando que os casos sejam julgados com o mesmo vigor.
A eclosão de uma nova onda antirracista é, para o ativista, um futuro inquestionável.
“Onde há opressão, haverá resistência. A opressão com a covid-19 cresceu, as pessoas estão ainda mais precarizadas, passando fome, com sede de justiça. A consciência dos trabalhadores mudou imensamente e não irá retroceder”, conclui Nino.
O fato das pessoas compreenderem que têm poder nas ruas, conforme Brown observa, traçará os novos camilnhos da luta contra a violência policial e o racismo.
“Não podemos prever quando e nem o que acenderá essa faísca, porque há muitos George Floyd. Acontece todos os dias. Não podemos dizer quando, mas está vindo”, aposta o ativista.
Edição: Isa Chedid