Por Urda Alice Klueger.
(Texto escrito no passado, em momento que acontecia no sul do Brasil um movimento separatista, e que creio que é extremamente atual diante dos ataques que se está a fazer ao povo nordestino.)
Maio de 1988, e desembarquei a primeira vez em Salvador/BA, às vésperas do centenário da Abolição. Ia para o que imaginava que seria a maior festa comemorativa do evento, já que lá existia a maior concentração de população negra do país, e ia atrás dos personagens e histórias de Jorge Amado, que lia com paixão desde os doze anos de idade. Para resumir, Salvador foi a única cidade brasileira que não comemorou o centenário da Abolição – fez foi protestos e mais protestos sobre a abolição que ainda não chegou – e descobri que a Bahia era igualzinha aos livros de Jorge Amado.
Mas aprendi lições inesquecíveis naquela viagem. Ainda não amaciada pela suavidade baiana, dura filha de um Sul consumista e carente de boas relações humanas, quase morro de medo de ser assaltada ao me deparar, pela primeira vez, com a gentileza baiana. Vou contar:
Fazia uns dois ou três dias que estava em Salvador, e tomei um ônibus para ir a algum lugar. Não sabia onde deveria desembarcar, e pedi informação para o moço que se sentava ao meu lado. Solícito, ele me disse:
– Ah! Lugar tal? Vou até lá com você!
E agora? Se o rapaz saltasse do ônibus comigo, eu tinha a certeza de que iria me assaltar. Apressei-me a dispensá-lo:
– Não, não precisa! Você só me diz onde devo desembarcar!
– Ora, eu vou com você!
– Não, não precisa!
Entre o “eu vou junto” e o “não precisa”, gastamos minutos inteiros, e eu estava cada vez mais apavorada, pois tinha a certeza que só um assaltante poderia ter aquele comportamento de querer seguir a turista loira para fazer seu serviço com calma, fora do recinto do ônibus.
Chegou o tal ponto, e descemos. Havia uns dois quarteirões para andar, e eu nem ouvia o que o rapaz falava, de tão tensa que estava, esperando o momento do assalto. Só que chegamos aonde eu ia, e o moço baiano me deixou na porta, despedindo-se com gentileza, sem sequer uma cantada, sem sequer querer trocar endereços, sem nenhuma cobrança, e então imaginei que ele me trouxera até ali porque morava por perto. Indaguei a respeito. Não, ele não morava por ali. Ia, agora, voltar à avenida principal, e pegar outro ônibus para ir até seu destino.
O meu queixo tinha caído totalmente enquanto observava-o afastar-se. Para a minha dura sensibilidade do duro Sul, aquela gratuita, espontânea e doce gentileza que, depois descobri, é inata no povo baiano, estava além da minha compreensão. Acho que a expressão certa para dizer o que senti é que fiquei besta de espanto. Talvez essa tenha sido uma das principais lições aprendidas naquela viagem, a de que não é necessário conhecer-se uma pessoa, para se ser gentil com ela. E põe gentileza nisso!
Agora pergunto aos leitores : algum de vocês, filhos do duro Sul, faria com um desconhecido o que aquele anônimo rapaz baiano fez comigo? Não faria, claro! Duvido com todas as letras que alguém aqui do Sul se daria ao trabalho de saltar de um ônibus, desviar-se do seu caminho, para depois voltar e pegar outro ônibus, só para ser gentil com um turista, sem nenhuma cobrança, sem nenhuma segunda intenção. Se houver alguém capaz de tal despreendida gentileza, que se manifeste – eu acho que tal pessoa não existe, que é como procurar um justo em Sodoma e Gomorra – por mais que fosse procurado, não havia nenhum.
Temos muito, mas muito a aprender com o povo baiano. Diante deles, somos tapados, duros, mal-educados e incultos. E o pior é que nos achamos o máximo. Parecemos ter o rei na barriga, a ponto de falarmos mal de um Nordeste que não conhecemos, de pormos a culpa dos nossos problemas em um Nordeste que nem imaginamos como é, a ponto de querermos fazer um país separado, para nos livrarmos dos nordestinos. Belo país teríamos! Seria uma porqueira de país, tapado, duro e inculto. A minha esperança é que, algum dia o sulista será um povo verdadeiramente culto, e então poderá olhar para trás e se envergonhar dessas bobagens separatistas de agora.
Blumenau, 19 de Setembro de 1997.