Por Bianca Santana.
A base da pirâmide social. Salários mais baixos, pouco acesso à universidade, menor acesso à justiça, mais exposição à violência, e até menos tempo no consultório médico. O Dossiê Mulheres Negras, publicado pelo Ipea em 2013, escancarou na forma de dados o que, infelizmente, sentimos no cotidiano.
Há mudanças positivas nos últimos anos, é evidente. Se em 2008, 22 a cada cem trabalhadoras negras eram empregadas domésticas; em 1998, eram 48. Embora não passe pela temática racial, Que horas ela volta, de Anna Muylaert, apresentou nas telas do cinema uma ilustração potente da filha da doméstica que não vai ser doméstica. Eu mesma, negra e professora universitária, neta e filha de doméstica, cresci ouvindo que a vida da minha mãe mudou quando ela acessou o ensino superior e deixou de trabalhar “na casa dos outros”. A vida dela. E, consequentemente, a minha.
Deixamos de ser pobres. Mas, diferentemente do que se pode pensar, a mudança de classe social não apagou o racismo ou a opressão de gênero do nosso cotidiano. Para ficar em poucos exemplos mais evidentes, sempre me perguntam se estou na fila correta do banco quando vou para a “especial”, checam meu nome e minha foto diversas vezes quando chego a um evento como palestrante. Porque no Brasil as mulheres negras ocupam posições subalternas, e só. Mas isso é pouco perto de tantas outras violências. Como muitas mulheres negras, não tive a oportunidade de conviver por muito tempo com os homens da minha família: eles morreram cedo ou foram para a cadeia.
As mulheres negras vivem em condição mais vulnerável que as mulheres brancas e, em alguns aspectos, que os homens negros. A intersecção de gênero e raça se manifesta de forma específica nas nossas vidas. No meu caso, em uma situação de maior privilégio que das mulheres negras pobres, que interseccionam as opressões de gênero, raça e classe.
Os estudos do feminismo negro têm, desde a década de 1970, se dedicado a compreender as especificidades das mulheres negras como sujeito. Além de analisar os papéis que ocupamos nas relações sociais, de maneira crítica, travam lutas com o objetivo de disseminar nossas vozes, historicamente silenciadas.
Ao optarmos pela luta, nosso primeiro desafio: nos percebermos e afirmarmos negras. Como escreveu Lélia Gonzalez, em 1988, parafraseando Simone de Beauvoir:
“(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher negra é uma conquista”.
Conquista que muitas vezes passa por deixarmos de alisar nossos cabelos, assumindo o crespo, considerado ruim; por nos conectarmos à nossa ancestralidade religiosa; pelos processos educativos que respeitam a Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira.
Nos percebermos é uma vitória, porque quase tudo à nossa volta nos invisibiliza. Jurema Werneck chegou a escrever que não existimos:
“As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos”.
Isso significa que as demandas históricas, políticas e culturais do que vivemos — e perpetuamos em nossas ações e escolhas cotidianas — invisibiliza as mulheres negras e perpetua o racismo.
Diversas autoras partem do “tornar-se negra” para construírem análises consistentes das dinâmicas sociais. Pesquisadoras como Patricia Hill Collins, Angela Davis, Bell Hooks, Audre Lorde, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro nos ajudam, a partir do olhar para a base da pirâmide, a ampliar a forma como vemos toda a sociedade.
Retomando a citação do início, proponho uma reflexão: como raça, classe e gênero criaram o fundo institucional e simbólico para sua biografia individual?
Fonte: CEERT