Em 30 de abril, foi comemorado o 50º aniversário da vitória dos vietnamitas sobre os Estados Unidos, fato que assinalou o fim da Guerra do Vietnã e a reunificação do país. Nesta data, em 1975, as forças norte-vietnamitas tomaram Saigon, consolidando a vitória do Vietnã do Norte sobre o Vietnã do Sul e seus aliados norte-americanos. Por essa vitória épica, fora de todos os padrões da guerra, o povo vietnamita pagou um altíssimo preço: 1,1 milhão de mortes de militares do PAVN/VC (Exército Popular do Vietnã/Viet Cong) e 2 milhões de civis mortos, no período 1955 a 1975.
O governo vietnamita estabelece 1955 como marco da contagem, porque esse ano é considerado como o de início das hostilidades armadas e da escalada dos conflitos internos e externos. É um ano decisivo em que a reunificação pacífica entre os dois lados da guerra se tornou inviável e a luta armada passou a ser o caminho principal. Mas o Vietnã, ao longo da história, foi invadido por chineses, mongóis, franceses e japoneses, tendo expulsado a todos, à custa de muito sangue, suor e lágrimas, além de uma obstinada resiliência.
A Guerra do Vietnã se desenvolveu em pleno período da Guerra Fria, tendo sido um dos seus principais palcos. Havia uma visão do imperialismo norte-americano de que ocorreria no Sudeste Asiático o “efeito dominó”, segundo o qual, a queda de um país ao comunismo levaria vizinhos pelo mesmo caminho. Em 1955, ano em que a guerra começou oficialmente, fazia apenas 6 anos da Revolução Chinesa, e os EUA estavam dispostos a qualquer coisa, para evitar o alastramento do “comunismo” no mundo e na região. Por isso, os EUA apoiaram fartamente o Vietnã do Sul, com dinheiro, tropas, armamentos e propaganda. Para o Vietnã do Norte, que contou com o apoio da União Soviética e da China, a guerra era vista como uma luta de libertação contra o imperialismo e um passo decisivo para a autodeterminação nacional.
A Guerra do Vietnã mostrou, de forma definitiva, que um país pequeno, com população inferior a 40 milhões de habitantes, em 1965, pobre e rural, conseguiu derrotar a maior potência econômica e militar da época, os Estados Unidos. O conflito colocou frente a frente o país que dispunha das melhores condições possíveis, em infraestrutura, armas, tecnologia e recursos, com um país que formou suas forças de resistência entre os camponeses e operários, muitas vezes utilizando armas artesanais, feitas de bambu. Os EUA dispunham de bombardeiros modernos, helicópteros, apoio logístico global e armamento sofisticado. Todo esse aparato era usado contra a população civil, como uma espécie de vingança e chantagem, já que apoiava a guerrilha. Os vietnamitas dependiam de material bélico soviético e chinês, de menor qualidade e em menor quantidade, e recrutavam suas forças entre camponeses e operários, frequentemente improvisando equipamentos e suprimentos básicos.
Há milhares de episódios históricos que revelam o nível de determinação do povo vietnamita na expulsão do invasor. Um dos mais impressionantes foi a construção de túneis, com vários níveis, que contou com milhares de pessoas na escavação, manutenção e uso prático para a resistência e ofensiva militar. O sistema de túneis foi desenvolvido com técnicas engenhosas, de baixo orçamento, mas extremamente eficazes. Eram escavados à mão, utilizando pás, picaretas e cestos para remover a terra. Os túneis eram uma prova de determinação, mas também de engenhosidade. Possuíam sistemas de ventilação e drenagem e muitas galerias tinham salas multifuncionais, como hospitais improvisados, armazéns de armamento, cozinhas, dormitórios e postos de comando.
Os túneis visavam inúmeros objetivos estratégicos, como mobilidade e ocultação, abrigo e proteção, suporte logístico e sustentação da guerrilha. Em inúmeras batalhas, os túneis desempenharam papel fundamental, permitindo a resistência dos guerrilheiros, mesmo sob intensos bombardeios e operações de infiltração, para tentar surpreender o inimigo e destruir as estruturas. As tropas dos EUA fizeram várias tentativas para infiltrar e destruir os túneis, mas sem sucesso. Eles foram fundamentais para a vitória do Vietnã e tornaram-se um símbolo de engenhosidade e resistência extrema de um povo contra o invasor. Os túneis foram um componente fundamental, dentre outros, para compensar a imensa desvantagem material e tecnológica que o Vietnã do Norte e a Frente Nacional de Libertação do Vietnã (Viet Cong) enfrentaram na guerra contra os norte-americanos.
O uso dos túneis se combinava com ataques rápidos, emboscadas e sabotagens. Os combatentes, além de conhecer profundamente o terreno, contavam com o apoio massivo da população. Os invasores, que cometerem o erro elementar de subestimar o inimigo, simplesmente não podiam compreender a determinação do povo vietnamita. Toda essa determinação e vontade de vencer eram impulsionadas por uma profunda motivação da população, em lutar pela independência e reunificação nacional, fator que pode explicar um tão elevado nível de coragem e força espiritual. Enquanto os soldados norte-americanos iam para a guerra à força praticamente (calculasse que cerca de 500 mil homens tenham fugido ou burlado o alistamento durante o período da guerra), para o povo vietnamita, tratava-se literalmente de “matar ou morrer”.
Apesar da propaganda anticomunista dentro dos EUA, quando as imagens dos massacres cometidos pelos soldados norte-americanos no Vietnã começaram a circular, assim como o retorno de milhares de sacos pretos com soldados americanos, a opinião pública dos EUA começou a se mobilizar pelo fim da guerra. Artistas, intelectuais e população em geral começaram a se manifestar e pressionar pelo final da guerra, levando às recorrentes crises nos governos Johnson e Nixon. Com enorme pressão interna e internacional, inclusive pelo uso de armamento proibido, como armas químicas que arrancavam a pele das pessoas, o governo dos EUA retirou suas tropas em 1973.
Um dos casos mais emblemáticos da sinuca de bico em que os EUA tinham entrado com a guerra, foi o de Muhammad Ali (nascido Cassius Clay), que se negou a prestar serviço militar obrigatório no país, durante a Guerra do Vietnã. Após conquistar o título mundial dos pesos-pesados de box, em 1964, o lutador se converteu ao islamismo e adotou o nome Muhammad Ali. Em 1966, no auge do envolvimento dos EUA na Guerra, e com o país polarizado em torno do conflito, Ali se recusou a servir o Exército e servir no Vietnã, alegando motivos religiosos e políticos.
Os argumentos de Ali eram um tiro de canhão: “Por que me pedem para vestir um uniforme e me deslocar 10.000 milhas para lançar bombas e balas no povo marrom do Vietnã, enquanto os negros de Louisville são tratados como cachorros, sendo-lhes negados os mais elementares direitos humanos? Não, não vou viajar 10.000 milhas para ajudar a assassinar e queimar outra nação pobre para que simplesmente continue a dominação dos senhores brancos sobre os povos de cor mais escura mundo afora. É hora de tais males chegarem ao fim.” A decisão corajosa de Muhammad Ali, que dividiu ainda mais o país, foi um marco decisivo da opinião publica norte-americana em torno da Guerra do Vietnã. O lutador, condenado a cinco anos de prisão e multado em 10.000 dólares, só teve anulada a sua condenação pela Suprema Corte, em 1971.
A vitória do Vietnã, sacramentada em 1975, foi um marco decisivo na história universal dos conflitos militares. Seu desfecho confirmou as teses defendidas pelo mais importante general vietnamita, Võ Nguyên Giap. O general, principal estrategista militar, foi fundamental na luta pela independência e reunificação do Vietnã. É considerado herói nacional e sua filosofia de combate é referência em estudos de táticas de guerra de guerrilha. O general Giap, que tinha sido fundamental na luta pela independência e reunificação do Vietnã, e protagonista na derrota imposta aos franceses, liderou militarmente as ações contra o império americano na guerra.
Giap foi mestre da guerra de guerrilha combinada com operações militares convencionais. Desenvolveu a tática de “guerra do povo prolongada”, que significa envolver toda a população no apoio logístico e moral à luta armada. É justamente o apoio popular que explica como um exército, no qual boa parte dos soldados andava descalço e usava armas feitas de bambu, venceu o exército mais rico e tido como o mais poderoso da Terra. O pensamento do general resultava de uma concepção de vida, e de enfrentamento da guerra, que permeava toda a liderança vietnamita. Nessa concepção, materializada em declarações históricas, faz-se presente a visão estratégica, a extrema humildade, o senso coletivo e o patriotismo. Uma de suas frases que ficaram conhecidas, resume bem um dos “segredos” da vitória do povo vietnamita: “Cada dia que vivo é para o meu país.”
José Álvaro Cardoso é economista do DIEESE e colunista do Portal Desacato.
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