Gaza está mudando todos nós. Por susan abulhawa.

As imagens de Gaza vão além do tolerável. Foto: Hadi Daoud- APA images

Por susan abulhawa.

Consulto diariamente as notícias, fotografias e vídeos.

Logo pela manhã, consulto o Whatsapp para ver as mensagens dos amigos em Gaza e envio algumas para perguntar como estão.

Eles toleram a minha pergunta estúpida. Não estou perguntando de verdade porque sei que eles não estão bem.

Só quero certificar-me de que estão vivos.

Para lhes enviar amor. Para lhes dizer que estou pensando neles.

Pergunto-me se é por eles ou por mim. Amo-os e tenho saudades deles e gostaria de nunca ter saído de Gaza, porque agora não posso voltar porque Israel controla a fronteira egípcia.

Também verifico diariamente os canais da resistência no Telegram para ver se publicaram novos vídeos. A sua bravura épica renova o meu otimismo e o meu sentido de determinação revolucionária.

A maior parte das cenas são dolorosas para além do suportável. As atrocidades transmitidas ao vivo que consumo durante o dia são processadas nos meus sonhos à noite.

Gaza não me abandona.

Não estou sozinha. Quase todos os meus amigos dizem o mesmo e vejo diversas pessoas nas redes sociais perdendo o juízo com o que estão testemunhando.

A maior parte deles são cidadãos comuns que nunca se interessaram por política. A sua iniciação na ordem geopolítica é o genocídio: bebés e crianças palestinas sem cabeça, sem membros e sem rosto, com soldados e civis israelenses aplaudindo tudo.

Todos os dias.

Hoje vi um soldado britânico gritando para o mundo nas redes sociais, incapaz de conter a sua dor e incredulidade perante a crueldade inimaginável.

O filme

Durante quanto tempo?

Gaza está mudando todos e todas nós.

Quanto tempo é que isto vai durar?

Nenhum protesto, nenhuma demissão, nenhuma queixa ao Tribunal Internacional de Justiça, nenhuma pressão parece conseguir parar a insaciável sede de sangue e a criminosa máquina de guerra de Israel.

Agora os israelenses querem bombardear o Líbano, ameaçando transformar Beirute em Gaza.

Se Israel fosse uma pessoa, estaria encarcerado numa prisão de segurança máxima para os piores criminosos do mundo.

A criação desta colônia de assentamento foi o maior erro geopolítico da história moderna e ameaça arrastar o mundo inteiro para um inferno. Os palestinos já estão lá, nos fossos da depravação de Israel, ardendo, morrendo e gritando por socorro.

Na minha última viagem a Gaza, levei mais de 60 quilos de comida para uma família.

A mãe de uma amiga conhecia uma mulher que conhecia outra mulher que tinha três filhos com fenilcetonúria, uma doença hereditária que torna as crianças incapazes de metabolizar a fenilalanina, um aminoácido que se encontra na maioria dos alimentos. Sem uma dieta especial pobre em fenilalanina, a PKU conduz a deficiências mentais, perturbações convulsivas e outras doenças neurológicas.

O bloqueio alimentar imposto por Israel na Faixa de Gaza impossibilitou a mãe de encontrar os alimentos que necessitava, e dar pão normal aos seus filhos foi como envenená-los lentamente. Os meus amigos no Egito não conseguiam encontrar a massa e a farinha especiais, por isso encomendei-as a uma empresa nos Estados Unidos e transportei-as numa mala com excesso de peso, atravessando o mundo e depois a fronteira para Gaza.

Aí entreguei a mercadoria através de um amigo que estava viajando para Nuseirat, a zona no centro de Gaza onde a família se encontrava na época. Mais tarde, nesse dia, a mãe enviou fotografias e vídeos dos seus filhos comendo massa, sorridentes, gratos e alegres.

Também lhes tinha feito biscoitos com uma massa especial.

Penso neles com frequência, porque o estoque que trouxe já deve ter acabado.

Pergunto-me também se terão sobrevivido ao massacre de Nuseirat, em 8 de junho, ou se estarão entre as 270 vidas sacrificadas para libertar quatro prisioneiros israelenses.

Pergunto-me quantas outras pessoas com PKU terão sido forçadas diariamente a escolher entre a fome e o veneno neurológico.

Penso na pequena Zeina, uma jovem amiga que fiz.

Apaixonei-me por ela e pela sua família: um irmão e pais amorosos. Todos eles simpáticos, inteligentes e unidos.

Mas quando chegou a hora de partir, Zeina levou-me docilmente para um lado sem que ninguém reparasse. Eu estava tremendo ligeiramente.

“Posso ir com você quando for embora?”, suplicou ela.

Não acredito em mentir às crianças, embora a verdade fosse difícil de dizer. O melhor que podia fazer era prometer que voltaria e assegurar-lhe que este horror acabaria.

Finalmente acabará.

Não sei quanto tempo ela esperou pela oportunidade certa para me chamar à parte, ou se tinha praticado a forma como me iria perguntar. Acho que ela acreditava que havia uma hipótese e sei que sentiu que estava traindo a família, porque depois me implorou para não contar à mãe.

Há centenas de milhares de crianças como Zeina, traumatizadas de uma forma que nenhum de nós consegue realmente compreender. Os seus cérebros estão sendo religados e a sua infância já não se assemelha à infância.

Só os deliberadamente ignorantes e os moralmente vazios, que podem muito bem ser a mesma coisa, não são afetados por este holocausto em tempo real.

O resto de nós está acordado, enfurecido e mobilizado.

Gaza alterou o nosso ADN coletivo. Estamos unidos no nosso amor e na nossa dor e determinados a resistir e a intensificar a luta até que a Palestina seja libertada e estes sionistas genocidas sejam responsabilizados da mesma forma que os nazis o foram.

Susan Abulhawa é escritora e ativista. O seu romance mais recente é Against the World Without Love.

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