Por André Antunes.
Brasília, dia 15 de junho: cerca de 2,5 mil manifestantes tomam o rumo do Estádio Mané Garrincha aos gritos de ‘Da Copa eu abro mão, quero mais dinheiro para saúde e educação’. Ao atingir o cordão de isolamento da Polícia Militar nos arredores do estádio, a maioria é dispersada por bombas de gás, balas de borracha e jatos de spray de pimenta disparados pelos policiais. Do lado de dentro, a seleção brasileira jogava com o Japão, na estreia do Brasil na Copa das Confederações. Quatro dias depois, foi a vez de Fortaleza testemunhar cenas parecidas, só que dessa vez foram cerca de 15 mil manifestantes que se reuniram para protestar contra a Copa do Mundo, também esbarrando no cordão de isolamento da PM e sendo dispersados por bombas de efeito moral e balas de borracha. A três quilômetros dali, no estádio do Castelão, o Brasil jogava contra o México pela primeira fase da Copa das Confederações. No dia 26 de junho, uma manifestação reunindo 50 mil pessoas terminou em confronto com a PM nos arredores do estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, onde a seleção brasileira jogaria contra o Uruguai pela semifinal da competição. E finalmente, no dia 30, no Rio de Janeiro, cerca de 5 mil manifestantes, alguns empunhando cartazes com frases como ‘Queremos escolas e hospitais no padrão FIFA’, rumaram em direção ao Maracanã para protestar, mas seu trajeto foi desviado pelo cordão de isolamento realizado pelos 6 mil policiais militares que patrulhavam os arredores do estádio. Houve confronto entre policiais e manifestantes em áreas próximas ao Maracanã. Lá dentro, o Brasil disputava a final da Copa das Confederações contra a Espanha.
A seleção brasileira acabou vencendo os espanhóis e conquistou pela quarta vez o título da Copa das Confederações, torneio preparatório para a Copa do Mundo no ano que vem. Mas só viu quem pôde comprar um ingresso (entre R$ 100 e R$ 418): a PM fez um cordão isolando uma área de três quilômetros ao redor do Maracanã. Só passava quem tinha ingresso, e mesmo os moradores tiveram que provar que residiam ali para poderem circular livremente.
De alguma forma essa conquista ficou em segundo plano diante das manifestações que foram acontecendo antes, durante e após cada uma das partidas da seleção no torneio, e não apenas nas cidades onde o Brasil jogava. É claro que a Copa do Mundo sozinha não explica o que aconteceu, mas essa vinculação fica clara quando vemos, no meio da centena de mensagens estampadas nos cartazes empunhados pelos manifestantes, frases como: “Tem dinheiro para a Copa, mas não tem para a educação?”, ou ainda “Cartão vermelho para a Copa que viola os direitos humanos”. Por um lado, há uma crítica à alocação de recursos públicos nas obras da Copa em contraste com as políticas sociais cronicamente deficitárias, e, por outro, a revolta com a própria maneira como vem sendo conduzido o processo de preparação das cidades-sede para o evento, marcado por denúncias de violações de direitos. Os gastos públicos com a reforma e a construção de estádios, as irregularidades apontadas na Lei Geral da Copa e nas demais leis que estão sendo criadas especificamente para o evento e as remoções de populações vulneráveis para as obras da Copa são algumas das principais críticas, que levantam a questão: qual será, de fato, o legado da Copa do Mundo de 2014 para o Brasil?
O incômodo das manifestações
O presidente da Fifa Joseph Blatter já havia dito, em julho, duas semanas após o término da Copa das Confederações, que caso esse contexto marcado por manifestações se mantivesse em 2014, a Fifa deveria reconhecer que o Brasil não era o local adequado para a disputa da Copa do Mundo. Em agosto, a divulgação dos resultados da pesquisa ‘Da Copa das Confederações à Copa do Mundo’, realizada pela consultora Nielsen Sports, indicou que o receio de Blatter não era infundado e colocou uma sombra de dúvida sobre os lucros das empresas que firmaram contratos com a Fifa para patrocinar o evento, como a Coca-Cola, o McDonald’s e a Adidas. Segundo a pesquisa, que ouviu 1.420 pessoas nas seis cidades-sede da Copa das Confederações, o apoio da população à Copa do Mundo caiu de 71% para 45% entre setembro de 2012 e julho de 2013. No mesmo período, o apoio às marcas patrocinadoras do evento caiu de 67% dos entrevistados para 32%, e a disposição para comprar produtos dessas marcas caiu de 58% para 31%. Ainda segundo a pesquisa, enquanto em setembro do ano passado 33% dos entrevistados pela Nielsen Sports acreditavam que os custos com a Copa do Mundo seriam maiores que seus benefícios, esse índice subiu para 61% após a Copa das Confederações. Em nota, a assessoria de comunicação da Nielsen Sports concluiu: “Cabe às marcas saber trabalhar este momento para transmitir à população, feita por consumidores, uma mensagem de apoio e de preocupação com outros temas que têm tirado o sono do brasileiro. Que comece uma nova corrida rumo à boa imagem na Copa do Mundo”.
Mas tudo indica que essa será uma “corrida” com obstáculos, e o principal deles tem o tamanho de uma montanha de dinheiro: R$ 28 bilhões, que é o que vai custar, pelos dados oficiais, a Copa do Mundo de 2014. A Matriz de Responsabilidades – que define o papel de cada ente federativo na preparação para o Mundial – em sua versão mais atual, de abril deste ano, fala em R$ 25,5 bilhões, mas o governo federal anunciou em junho que o valor deverá sofrer um acréscimo de 10%, totalizando R$ 28 bilhões. Nesse valor estão inclusos gastos com reforma e construção de estádios (R$ 7,5 bilhões), obras de mobilidade urbana (R$ 8,9 bilhões), ampliação de aeroportos (R$ 8,4 bilhões) e portos (R$ 675 milhões), além de gastos com segurança (R$ 1,9 bilhão), telecomunicações (R$ 371 milhões) e infraestrutura de turismo (R$ 212 milhões) nas 12 cidades-sede. E ainda que o governo federal não tenha divulgado os dados pormenorizados já com o reajuste de 10%, os números da Matriz de Responsabilidades de abril mostram que os cofres públicos vão arcar com a maior parte dos custos, mais de 80%, somando recursos federais, estaduais e municipais – patamar bem acima do que prometera Ricardo Teixeira, então presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que, em 2007, afirmou que as obras necessárias para a Copa seriam integralmente custeadas pela iniciativa privada. Seis anos depois, a única rubrica que conta com previsão de investimento significativo da iniciativa privada são as obras para ampliação de aeroportos, que estão sendo privatizados.
Três bancos federais, a Caixa Econômica Federal, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco Nordeste do Brasil (BNB) financiam – a juros subsidiados –pouco mais de um terço do total das obras: R$ 8,7 bilhões. Boa parte dos empréstimos foi tomada por governos estaduais, sozinhos ou em parcerias com o setor privado, por meio de parcerias público-privadas (PPPs). Outros R$ 6,5 bilhões virão do orçamento federal. Os governos estaduais e municipais entrarão com R$ 7,3 bilhões.
Prioridades
Muitas dessas obras são contestadas, como a construção de estádios novos em cidades sem times de grande torcida, como é o caso de Brasília, Cuiabá e Manaus, que, somados, consumirão quase R$ 3 bilhões em recursos públicos. E, como muitos dos cartazes mostraram de maneira irônica durante as manifestações, as cifras bilionárias envolvidas na preparação para a Copa contrastam com a falta de recursos destinados para políticas sociais como a saúde e a educação. Segundo informações do site da Auditoria Cidadã da Dívida, os R$ 28 bilhões que serão gastos com a Copa – evento que vai durar um mês – representam em torno de metade do valor destinado para a Educação no Orçamento Geral da União para todo o ano de 2012, que foi de R$ 57 bilhões, e cerca de 40% do destinado para a Saúde, de R$ 71 bilhões. Nas manifestações, cartazes perguntavam: “Tem dinheiro para a Copa mas não tem para a educação?”. Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ) e membro do Comitê Popular Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, explica: “Os gastos suntuosos feitos com equipamentos absolutamente inúteis, quando a nossa educação é uma das piores da América Latina e nossa universidade recebe menos jovens do que a Bolívia, são um tapa na cara do povo. E tapa na cara provoca insurreição”.
O governo federal argumenta que os recursos públicos custearão obras que seriam feitas de qualquer maneira, e ficarão como legados para a população. E tem usado o estudo ‘Brasil sustentável: impactos socioeconômicos da Copa do Mundo 2014’ , da consultora Ernst&Young em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), para embasar seu argumento. “O impacto direto da Copa do Mundo no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro é estimado em R$ 64,5 bilhões para o período 2010-2014”, diz a publicação, que aponta que o evento “deverá injetar, adicionalmente, R$ 112,79 bilhões na economia brasileira, com a produção em cadeia de efeitos indiretos e induzidos. No total, o País movimentará R$ 142,39 bilhões adicionais no período 2010-2014”. O estudo aponta ainda que a Copa deve gerar 3,63 milhões de vagas temporárias de emprego, com duração de um ano, e R$ 63,48 bilhões de renda para a população “o que vai impactar, inevitavelmente, o mercado de consumo interno”. Entre os maiores beneficiados, estão os setores de construção civil, que segundo as estimativas da Ernst&Young deverá gerar R$ 8,4 bilhões a mais entre 2010 e 2014, o setor de serviços prestados a empresas, com um adicional de R$ 6,5 bilhões, e o de serviços imobiliários de aluguel, com um adicional de R$ 4,4 bilhões no período.
Mas a experiência sul-africana na organização da Copa do Mundo de 2010 coloca em dúvida esses argumentos, como aponta o sindicalista sul-africano Eddie Cottle, que acompanhou a preparação de seu país para sediar a Copa do Mundo de 2010 e este ano lançou um livro sobre a experiência, intitulado South Africa’s World Cup: A Legacy For Whom? (em português, Copa do Mundo da África do Sul: legado para quem?). Em uma avaliação preliminar dos efeitos da Copa na economia de seu país, publicada em setembro de 2010, Cottle aponta que as estimativas iniciais diziam que os custos envolvidos na preparação para a Copa seriam pequenos e os benefícios diretos significativos. “O resultado na verdade foi o oposto”, critica, dizendo que, enquanto o total de despesas do governo sul-africano com a Copa girou em torno do equivalente a R$ 9,5 bilhões pela cotação da época, os impostos gerados com o evento somaram R$ 4,6 bilhões, um prejuízo de R$ 4,9 bilhões para o governo sul-africano. Cottle aponta que os prometidos efeitos em cadeia na economia do país foram inflacionados para legitimar a “espoliação e os lucros da Fifa, seus parceiros comerciais e monopólios capitalistas locais”. Enquanto isso, a Fifa comemorava os lucros obtidos com o evento. Jerome Valcke, secretário geral da entidade, afirmou, à época, que a Copa da África do Sul foi um sucesso comercial, rendendo à Fifa 50% a mais do que a edição anterior do evento, realizada na Alemanha em 2006. De fato, segundo Cottle, a Copa de 2010 foi a mais lucrativa da história, rendendo aos cofres da Fifa uma receita de US$ 3,4 bilhões, livres de impostos.
Adriana Penna, professora do Instituto de Educação Física da Universidade Federal Fluminense (UFF), aponta ainda outros problemas enfrentados pelos sul-africanos após a Copa de 2010. “O desemprego aumentou em quase 5% depois da Copa, porque são empregos temporários, dentro dessa lógica flexível de trabalho atual. De fato, as pessoas têm empregos durante a construção dessas estruturas, mas são precários, com data para acabar”, diz. Além disso, segundo ela, atualmente o país discute a demolição de alguns dos estádios construídos para a Copa. “Sobretudo na cidade do Cabo já está em conversação um plano para que o estádio seja demolido, e a alegação é de que o custo para o Estado será muito menor demolindo do que mantendo o estádio”, conta. Segundo Adriana, o filósofo húngaro István Mészaros formulou o conceito de “produção destrutiva” para explicar essa dinâmica. “Demolir aquilo que está pronto é uma maneira de fazer essa capital entrar em circulação novamente. O capital precisa desse circuito constante para se valorizar: desmonta aqui e vai para outro país. São sempre as mesmas megacorporações que estão envolvidas, mudando de território em busca de capitais”, analisa. No artigo ‘Guerra ou Paz: o esporte como produção destrutiva’, ela cita o exemplo dos Jogos Pan-americanos, disputados em 2007 no Rio de Janeiro. “Embora as arenas construí-das para as competições não tenham sido literalmente demolidas até o momento, transformaram-se em estruturas obsoletas. Quando muito, são entregues pelo poder público à iniciativa privada – sob contratos de longa duração, a preços insignificantes, se avaliado o custo que essas mesmas instalações representaram ao orçamento público brasileiro”, escreve. No caso brasileiro atual, Adriana cita os estádios construídos para a Copa em Recife, Natal e Cuiabá como exemplos de aparelhos com data de validade. Ela questiona a opção pela construção do estádio Cidade da Copa, em São Lourenço da Mata, a 40 quilômetros de Recife. “Este parece ser o caso mais evidente no Brasil de construção com data para destruição. Isto porque Recife possui três grandes clubes (Sport, Náutico e Santa Cruz), todos com estádio de porte médio. Por que o poder público, junto com a iniciativa privada, constrói um estádio fora da cidade?”, indaga, e completa: “Natal e Cuiabá são as outras cidades que terão que construir novos estádios para a Copa de 2014 no Brasil. Após o evento, os estádios ficarão à míngua de público e sustentabilidade financeira para se manterem, porque não há clubes desses estados (RN e MT) nem na segunda divisão do campeonato brasileiro”.
A Poli solicitou uma entrevista com Luis Fernandes, secretário-executivo do Ministério dos Esportes para falar sobre o assunto, mas foi informada de que não seria possível realizar a entrevista por falta de tempo na agenda do secretário.
Quanto custa?
As estimativas oficiais de gastos com a Copa são contestadas pelos movimentos sociais que estão acompanhando o processo e também por vozes do Legislativo, como é o caso do ex-jogador de futebol e atual deputado federal Romário, que chegou a afirmar que a Copa custaria mais do que o triplo do que dizem os dados oficiais: R$ 100 bilhões. “Qualquer orçamento de obra que se inicie hoje no país triplica de valor até o final da construção”, aposta. Romário foi um dos 186 deputados e 28 senadores a assinar um requerimento protocolado pelo deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF) para instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso para investigar possíveis irregularidades no uso de recursos públicos nas obras da Copa do Mundo, em julho. No entanto, o pedido foi arquivado no final de agosto, depois que quatro senadores retiraram suas assinaturas, fazendo com que o requerimento não atingisse o mínimo de 27 senadores. “Bem conduzida, ela poderia ter trazido à tona escandalosos casos de desvio de dinheiro público, favorecimento de empreiteiras e superfaturamento de preços”, acusa Romário.
Carlos Vainer também defende que as estimativas oficiais não apresentam a conta toda. “Alguém acredita que vai custar o que eles dizem? O Tony Blair, que era o Primeiro Ministro quando foram organizados os Jogos Olímpicos de Londres, foi contratado pelo governo do Rio para ser consultor e declarou que ninguém sabe quanto um megaevento desse custa e que é normal que custe mais do que se imagina”, alerta, e exemplifica: “Os Jogos Pan-americanos de 2007 iriam custar R$ 400 milhões e quando terminou tinham custado R$ 4,5 bilhões. Os custos da Copa certamente não vão ficar em R$ 28 bilhões”. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU), responsável pela fiscalização dos gastos públicos, chegou a afirmar em um relatório do ano passado que esse valor só será conhecido após o evento.
Na publicação ‘Na sombra dos megaeventos: exceção e apropriação privada’ , lançada em 2012, o Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) e a Justiça Global argumentam que a estimativa oficial não contabiliza, por exemplo, os valores dos impostos que o país deixará de arrecadar com as isenções fiscais, que chamam de “fonte oculta” de financiamento para a Copa do Mundo. Segundo o relatório, não existe um cálculo que englobe a renúncia fiscal agregada de municípios, estados e União.
Ministério Público Federal questiona isenções
Essa questão veio à baila novamente em agosto deste ano, depois que Roberto Gurgel, em seu último ato como procurador-geral da República, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando as isenções fiscais concedidas à Fifa pela lei federal 12.350/2010 , seus parceiros comerciais domiciliados no exterior, prestadoras de serviços nacionais e estrangeiras, emissora contratada pela Fifa para a transmissão das partidas, confederações Fifa (como por exemplo, a Confederación Sudamericana de Fútbol, a Conmebol) e associações nacionais de futebol. A lei estipula que, nas transações comerciais relativas à organização da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, essas empresas e entidades estão isentas de tributos como, por exemplo, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e PIS/Pasep (ambas contribuições que financiam políticas sociais), além do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre a Renda Retido na Fonte (IRRF), Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguros ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF) e também impostos referentes à importação. “Com base nessa lei, a possibilidade de arrecadação de tributos referentes à movimentação econômica produzida no país graças à preparação e organização da Copa das Confederações Fifa 2013 e da Copa do Mundo Fifa 2014, se torna praticamente nula”, afirma o relatório do PACS.
Essas isenções foram estimadas pelo TCU em mais de R$ 1 bilhão. Para Roberto Gurgel, elas não têm respaldo legal. “A isenção daqueles que podem pagar somente se dá ante interesses constitucionais relevantes”, aponta no texto da Ação, complementando: “No caso, não é possível vislumbrar nenhuma razão que justifique o tratamento diferenciado da Fifa e de seus relacionados. A única alegação possível, de que a medida tem um interesse logístico na facilitação da organização da Copa do Mundo, não é motivo constitucionalmente relevante para legitimar a isenção concedida”. Mais adiante, o ex-procurador-geral da República aponta ainda que a concessão das isenções fiscais foram “mero ato de liberalidade” do governo para conceder “privilégios indevidos” a entidades que, por sua vez, não oferecem nenhuma contrapartida “em favor do interesse público”. Por tudo isso, Gurgel pediu a suspensão de seis artigos da lei 12.350, concluindo que as violações à Constituição que ela comete são “de natureza grave”, com potencial para trazer consequências “nefastas” ao patrimônio público. Até o fechamento desta edição, A ADI aguardava julgamento no STF.
Essa não foi a única lei promulgada no contexto de preparação para a Copa a ser contestada pelo Ministério Público Federal (MPF). Em junho, o próprio Gurgel entrou com ação questionando a constitucionalidade de artigos da lei 12.663, a Lei Geral da Copa , promulgada em 2012. Gurgel questionou a constitucionalidade, entre outros, do artigo 23 dessa lei, que transfere à União a responsabilidade civil por “todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos eventos”. “O Estado brasileiro tornou-se de repente, não mais que de repente, o fiador da Fifa em seus negócios particulares”, diz o documento ‘Na sombra dos megaeventos’, produzido pelo PACS e pela Justiça Global, alertando que com isso, corre-se o risco de os custos com a Copa aumentarem por conta do comprometimento de recursos públicos com eventuais indenizações e reparações que a União seja porventura condenada a pagar.
Jogo de interesses
Carlos Vainer aponta que os megaeventos como a Copa do Mundo converteram-se em uma grande indústria global capitanea-da pela Fifa. “A Fifa é uma plataforma de articulação de grandes cartéis internacionais, que envolvem a indústria de implementos esportivos, a de telecomunicações e um conjunto de empresas de engenharia, consultoria, arquitetura e segurança e também um conjunto de empresas que se associam à marca Copa do Mundo”, diz ele. No Brasil, onde os preparativos para a Copa injetaram bilhões de reais na construção de estádios e obras de infraestrutura, os interessados mais óbvios na realização do evento são as empreiteiras. Por aqui, como afirma a professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) Nelma Gusmão, em sua tese de doutorado, defendida no Ippur/UFRJ, “a presença recorrente de algumas construtoras, articuladas em diferentes combinações de consórcios, em várias das principais obras relacionadas à produção dos megaeventos esportivos tem sido evidente”. Segundo ela, no Brasil, “a influência das grandes empreiteiras na definição de políticas públicas é componente estrutural na formação histórica do setor”.
Para João Roberto Lopes Pinto, coordenador do Instituto Mais Democracia e professor do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), a chave para essa influência está nas doações dessas empresas para campanhas de políticos em época de eleição. Ele cita o estudo The Spoils of Victory: Campaign Donations and Government Contracts in Brazil (em português, ‘Os espólios da vitória: doações de campanha e contratos de governo no Brasil), realizado por pesquisadores das universidades de Boston, Berkeley e MIT, nos EUA. Publicado em junho deste ano, o artigo aponta que, para cada real doado para campanhas de candidatos à Câmara dos Deputados em 2006, as empreiteiras receberam R$ 8,5 na forma de contratos de obras públicas. Já um levantamento do Instituto Mais Democracia apontou que cinco empreiteiras estão no topo do ranking dos maiores doadores de campanha entre 2002 e 2013: a Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, OAS e JBS. A Camargo Correa, que no período doou R$ 143 milhões, recebeu R$ 920 milhões em financiamentos do BNDES e mais de R$ 350 milhões em licitações ganhas do governo federal; a OAS, que doou R$ 12,7 milhões, recebeu R$ 1,05 bilhão em financiamentos do BNDES e mais de R$ 159 milhões em pagamentos do governo federal; já a Queiroz Galvão doou R$ 101 milhões e recebeu R$ 1,18 bilhão do governo federal. Essas empresas estão à frente de grande parte das obras de estádios para a Copa do Mundo de 2014: a Andrade Gutierrez está presente nas obras de quatro dos 12 estádios, no Rio de Janeiro, Manaus, Brasília e Porto Alegre; e a OAS participa de duas obras, em Salvador e Natal. A Odebrecht é outra que participa das obras em quatro estádios, ainda que não figure no levantamento elaborado pelo Mais Democracia: a empresa atua na construção dos estádios do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador. “Essas empresas também se consorciam, como uma forma de ampliar sua capacidade de investimentos. O gigantismo desse processo faz com que elas tenham um poder de barganha enorme. Por conta desse controle de mercado elas podem combinar regras para disputar leilões públicos para poderem se dar bem”, afirma João Roberto. Ele destaca ainda que o fato de que o dinheiro do BNDES investido na construção dos estádios seja financiamento, e não doação, não quer dizer que as empresas envolvidas não estejam sendo beneficiadas. “É um financiamento subsidiado, porque o BNDES trabalha com uma taxa de juros de longo prazo e tem um percentual de juros abaixo do mercado e um período longo de carência para começar a pagar. Além disso, é dinheiro público oferecido sem que sejam estabelecidas condicionalidades, ou melhor, as condicionalidades são muito frágeis. Do ponto de vista social e ambiental, os condicionantes são apenas formalidades, não há ação mais efetiva em termos de contrapartidas que os empreendimentos devem observar. Não é a toa que o Eike [Batista] falou que o BNDES era uma mãe”, diz.
As facilidades oferecidas pelo Estado não terminam nas condições de financiamento. As empreiteiras também foram beneficiadas pela flexibilização da Lei de Licitações para as obras da Copa por meio do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), instituído pela lei 12.462/2010. “Na prática”, afirma o documento ‘Na sombra dos megaeventos’, “essa inovação legal permite ao governo não divulgar os valores das licitações, além de liberar obras sem projetos-básicos”, tornando mais difícil o controle dos gastos. Além disso, por meio do Regime Especial de Tributação para Construção, Ampliação, Reforma ou Modernização de Estádios de Futebol (Recopa), instituído pela lei 12.350/2010, as empreiteiras ficaram isentas de pagar impostos como PIS/Pasep, Cofins e IPI, entre outros, incidentes sobre materiais de construção e equipamentos adquiridos para as obras dos estádios que receberão jogos da Copa. “O problema é que a maior parte dos contratos para destruição e construção para a Copa são de antes de 2010, e a Lei de Licitações diz claramente que qualquer mudança de imposto para mais ou para menos, após a assinatura do contrato, tem que ser repassada integralmente para o contrato. E o que vimos de lá para cá foi o contrário, só aumentos”, critica Francisco Carneiro, do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas de Brasília.
As falas de João Roberto e de Francisco Carneiro vêm ao encontro da análise de Carlos Vainer, para quem os megaeventos têm servido de pretexto para a aceleração de um processo em marcha de reordenamento das cidades de modo a torná-las objeto de valorização do capital. “Por isso falo em cidade de exceção, que é aquela onde as regras desapareceram e onde tudo é negociado caso a caso. A cidade de exceção tem um aspecto que chamo de democracia direta do capital, porque é tudo negociado entre setores capitalistas privados e o Estado, e não mais nas câmaras municipais. A cidade de exceção e a democracia direta do capital constroem um novo regime urbano”, avalia.
Maracanã: uma pechincha
O caso do Maracanã, que vai receber a final da Copa do Mundo em julho de 2014, é emblemático: o orçamento final da reforma do estádio superou em quase 70% a previsão inicial, passando de R$ 705 milhões em setembro de 2010 para R$ 1,2 bilhão em julho deste ano. As obras foram tocadas por um consórcio entre a Odebrecht, Andrade Gutierrez e Delta, que abandonou as obras em meio a um escândalo de corrupção. Somados os gastos com a reforma do estádio e do ginásio do Maracanãzinho para os Jogos Pan-americanos de 2007, foram gastos R$ 1,5 bilhão em recursos públicos no Maracanã. Ainda assim, o governo estadual optou por entregar a administração do Complexo do Maracanã (que além do estádio e do Maracanãzinho, conta ainda com o Parque Aquático Julio de Lamare e do Estádio de Atletismo Célio de Barros) para a iniciativa privada, gerando questionamentos do Ministério Público do Rio de Janeiro, que tentou, sem sucesso, impedir a licitação para a concessão do estádio, vencida pelo Consórcio Maracanã S.A, integrado pela Odebrecht, IMX, de Eike Batista, e AEG, que vai administrar o complexo pelos próximos 35 anos. Na ação civil pública , o MP estadual questionou os valores envolvidos na concessão, alegando que ela seria lesiva para os cofres públicos. A ação tomou como base os números de um estudo de viabilidade realizado pela IMX, que serviu de referência para a elaboração do contrato de concessão, que previa que o vencedor da licitação deveria pagar 33 parcelas de R$ 4,5 milhões ao governo do estado pelo direito de explorar comercialmente o Maracanã. Segundo a ação, além de o valor total de pouco menos de R$ 150 milhões a ser pago pelo concessionário estar bem abaixo do total investido pelo governo estadual na reforma do estádio desde 2007, ele representava uma parcela ínfima das receitas que, pelo estudo de viabilidade, o concessionário deveria auferir com a exploração do complexo: R$ 157,25 milhões ao ano, totalizando um lucro líquido de R$ 1,43 bilhão até o final da concessão. A proposta vencedora do Consórcio Maracanã acabou ficando acima da previsão inicial: 33 parcelas de R$ 5,5 milhões ao ano, totalizando R$ 181 milhões, valor ainda bem abaixo dos R$ 1,5 bilhão gastos com as reformas.
A ação também questionou o modelo de concessão de Parceria Público-Privada (PPP), que prevê o pagamento de uma contraprestação pública pelo governo do estado de modo a viabilizar que as intervenções que haviam sido previstas no entorno do Maracanã (a demolição do Julio de Lamare, do Célio de Barros, da Escola Friedenreich e do Presídio Evaristo de Moraes.) fossem custeadas com recursos privados. Ou seja, além de pagar pelas obras de reforma do estádio, o governo do estado precisa pagar um valor anual ao concessionário para garantir a “viabilidade econômica” do empreendimento. O estudo de viabilidade da IMX calculou em R$ 12,15 milhões essa contraprestação, valor bem acima dos R$ 5,5 milhões a serem pagos pelo concessionário. Na prática, de acordo com o contrato, o governo teria que pagar quase R$ 7 milhões anuais para o consórcio explorar o Maracanã. Segundo o MP, a contraprestação pública é desnecessária, uma vez que “as receitas decorrentes da exploração do Maracanã e do Maracanãzinho gerariam rentabilidade mais do que suficiente para tornar o projeto financeiramente autossustentável”. A adoção de um regime de concessão simples, sem a previsão da contrapartida pública, afirma a ação do MP-RJ, poderia aumentar o valor a ser pago pelo concessionário ao estado para até R$ 30 milhões, sem prejudicar sua rentabilidade.
Por fim, a ação também questionou a própria previsão de demolição, pelo concessionário, do Parque Aquático Julio de Lamare, do Estádio de Atletismo Célio de Barros, da Escola Municipal Friedenreich e do Presídio Evaristo de Moraes, nos arredores do Maracanã, para dar lugar a um museu do futebol e a edifícios-garagem. “Além de as intervenções atribuídas ao concessionário não contribuírem em nada para a viabilização dos megaeventos previstos para 2014 e 2016, ainda por cima serão prejudiciais à realização dos Jogos Olímpicos”, diz o texto da ação. O questionamento do Ministério Público fez eco a diversas manifestações no Rio de Janeiro que protestaram contra a demolição dos equipamentos públicos. Pressionado pelas manifestações, o governador do Rio, Sergio Cabral, desistiu das demolições e deu um prazo para que o Consórcio optasse por cancelar a concessão. Segundo sua assessoria de imprensa, o governo carioca recebeu na última semana de agosto uma proposta do Consórcio Maracanã para manter a concessão. Até o fechamento desta edição, a proposta estava sendo avaliada.
A reportagem da Poli também enviou à assessoria de imprensa do governo do estado do Rio perguntas questionando os valores envolvidos e a escolha do modelo de PPP para a concessão do Maracanã. A assessoria respondeu que, como o Maracanã está, neste momento, concessionado, as perguntas estariam “defasadas no tempo”. Isso, no entanto, não confere: embora a liminar que pedia a suspensão do processo licitatório de concessão do estádio tenha sido derrubada na Justiça, a ação civil pública ainda aguarda julgamento. A Poli também tentou ouvir o Consórcio Maracanã sobre o assunto, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
O Maracanã, palco da final da Copa em julho de 2014, não foi o único estádio cujas obras foram questionadas pelo Ministério Público. O MP paulista, em 2011, também entrou com ação contra as isenções de impostos para a construção do Itaquerão, onde será disputado o jogo de abertura da Copa. Dos R$ 820 milhões previstos para a construção do estádio, a cargo da Odebrecht, R$ 420 milhões serão custeados indiretamente por incentivos fiscais concedidos ao Corinthians pela prefeitura, o restante vindo do BNDES. De acordo com a ação, para viabilizar a isenção, a prefeitura usou como justificativa uma lei municipal já existente, que previa a concessão de incentivos fiscais para o desenvolvimento da zona leste de São Paulo, onde está localizado o novo estádio. O problema é que a lei prevê a concessão de isenções apenas a empresas comerciais, industriais e prestadoras de serviços. “O clube que está recebendo os benefícios da nova lei nada mais é que uma associação civil […] que não exerce atividades comerciais, industriais ou presta serviços, fugindo, desta forma, do objetivo que é o fomento da atividade econômica da região”, aponta o texto da ação, entendendo que o poder público municipal “violou completamente não só os objetivos propostos pelo plano de incentivo, bem como está praticando uma verdadeira transferência de capital público para entidades privadas”.
Repressão ao comércio informal
O artigo 23 da Lei Geral da Copa – objeto de uma ação do MPF – não foi o único a gerar controvérsia. Em seu artigo 11, a lei cria áreas de restrição comercial ao redor dos estádios onde serão disputados os jogos da Copa, assegurando à Fifa e às pessoas por ela indicadas a exclusividade sobre o comércio nos locais durante os jogos. Ainda que garanta a permissão dos estabelecimentos comerciais regulares de continuarem funcionando, desde que não façam associação com a Copa, a lei coloca obstáculos para vendedores ambulantes que, tradicionalmente, trabalham no entorno de estádios de futebol no Brasil em dias de jogos. Na publicação ‘Copa do Mundo para Todos: o retrato dos vendedores ambulantes nas cidades-sede da Copa do Mundo 2014’ , a StreetNet Internacional, organização que reúne associações de vendedores informais de diversos países, alerta: “A proximidade dos projetos de reordenamento urbano com a preparação das cidades para o megaevento impacta diretamente a fonte de renda dos vendedores informais. Muitos dos que vendiam nas proximidades dos estádios tiveram que mudar de local de venda, ao redor ou a caminho do estádio”.
Francisco Carneiro, do Comitê Popular da Copa de Brasília, afirma que presenciou cenas de ambulantes sendo expulsos dos arredores do estádio de Brasília. “Nós vimos ambulantes tendo seus produtos confiscados. Antigamente, eles vendiam uma garrafa de água mineral a R$ 4 próximo ao estádio de Brasília e hoje você só acha dentro do estádio, mas custa R$ 8”, revela. A repressão aos ambulantes está ocorrendo segundo ele em várias cidades-sede da Copa. “Uma briga grande que tivemos na Bahia foi para garantir que as vendedoras de acarajé pudessem vender durante a Copa e conseguimos. Em Belo Horizonte não conseguimos, todos os ambulantes que vendiam o famoso ‘tropeirão’ no Mineirão não podem mais trabalhar ali”, critica Francisco. Por isso, a publicação da StreetNet conclui: “Os principais impactos negativos relacionados à Copa estão ligados à omissão do Estado em relação ao direito ao trabalho desses comerciantes e à total indisposição em incluir no evento vendedores informais para que possam tomar proveito da oportunidade de negócios que a Copa representa”.
“Isso representa a falência para muitos ambulantes, pessoas com pouca formação que precisam trabalhar para viver e não têm opção, e que há décadas trabalhavam nas ruas”, aponta Ângela Rissi, presidente da Associação Expositores da Feirarte e Outros (AEFO), entidade que reúne vendedores ambulantes no Rio de Janeiro. Sob a justificativa da necessidade de “revitalizar” a cidade para sediar a Copa do Mundo e regularizar o trabalho dos ambulantes, diz ela, o governo municipal realizou em 2009 um cadastramento de comerciantes informais. “Só que o cadastramento foi feito para retirar as pessoas das ruas. O Rio tinha em torno de 40 mil ambulantes, mas só 7 mil foram licenciados” diz Angela. Segundo ela, isso se deu por causa de um sistema de pontuação criado para o cadastramento pelo qual cada região da cidade exigia um número de pontos diferente no processo de seleção para que o ambulante pudesse se instalar regularmente. O processo, por sua vez, deveria levar em conta critérios como o tempo em que o candidato estava desempregado, número de dependentes, etc. “Tinha que tirar acima de 100 para receber a licença mas deram 80 para todo mundo e nunca nos explicaram por que”, afirma Angela, que hoje se encontra sem trabalho e com dificuldades financeiras. “Formei minha filha trabalhando na rua. Hoje não consigo trabalhar e dependo dos meus irmãos e do meu pai”, revela.
Remoções
A preparação para a Copa do Mundo também tem significado remoções de populações que moram nas áreas destinadas a receber obras para o evento. Segundo estimativas da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa e Olimpíadas, cerca de 250 mil pessoas se encontram ameaçadas de remoção por conta da Copa. Samuel Queiroz, morador da comunidade Lauro Vieira Chaves, em Fortaleza, e membro do Comitê Popular da Copa da capital cearense, sentiu isso na pele. Sua comunidade, que fica no bairro do Montese, é uma das 22 localizadas no caminho do futuro Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), ligando o estádio do Castelão ao aeroporto e à orla de Fortaleza. Segundo ele, a proposta inicial do governo do estado para reassentar as 200 famílias que teriam que sair do local foi bastante criticada. “Como muitas pessoas não tinham o direito de posse, apesar de algumas viverem ali há mais de 60 anos, o governo queria pagar de R$ 18 mil a R$ 22 mil pela edificação e pagar um aluguel social de R$ 200. Com esse valor, você não aluga nem barraco pegando fogo em Fortaleza. Não aceitamos e fomos à luta”, diz ele. Segundo Samuel, outra proposta foi a construção de um conjunto habitacional no bairro Prefeito José Walter, localizado a 12 quilômetros da comunidade Lauro Vieira Chaves, o que contraria a Lei Orgânica do Município. “A lei diz que se uma comunidade tiver que ser removida, ela tem que ser realocada a no máximo dois quilômetros de distância do seu local original. Queriam reassentar pessoas que viviam da pesca para um local a 12 quilômetros do mar. Essas pessoas vão viver do quê?”, questiona, e completa: “Em nenhum momento dissemos que não queríamos o VLT, pelo contrário. Mas eu quero usufruir dele e se for para o [bairro] José Walter, eu não vou poder. O progresso está chegando mas eu estou sendo excluído dele”, reclama.
Segundo Samuel, à medida que a comunidade, em conjunto com a Defensoria Pública, passou a se informar melhor sobre o problema, começaram a descobrir arbitrariedades. “Em alguns trechos em que o traçado do VLT deveria passar entre duas concessionárias de veículos, é feito um elevado para passar por cima delas. Para favorecer alguns imóveis que são comerciais, de grande porte, é feito elevado, passa e volta para o solo de novo. Por que não no nosso caso?”, questiona.
E os questionamentos deram resultado, pelo menos para os moradores da comunidade Lauro Vieira Chaves. Segundo Samuel, em vez de 203 famílias, como queria a proposta inicial, serão removidas 53. “Junto com o trabalho de uma aluna da UFC [Universidade Federal do Ceará], nós descobrimos que havia um terreno público a 400 metros da comunidade. Levamos a proposta desse terreno para o governo do estado como alternativa para a realocação e fomos atendidos. O governo vai construir unidades habitacionais e as pessoas que terão que ser realocadas vão para esse local”, aponta. O valor das indenizações também aumentou, chegando a R$ 40 mil. “Eu falei para as pessoas da comunidade: isso não foi vontade do governo, foi nossa luta e nosso empenho”, ressalta.
A experiência da ex-vendedora ambulante Angela Rissi e de Samuel Queiroz reforça um outro aspecto da cidade de exceção teorizada por Carlos Vainer. “Os megaeventos aparecem como pretexto para a realização de uma série de anseios econômicos, políticos e ideológicos de uma direita conservadora que pretende submeter a sociedade à lógica do grande capital. Para isso é necessário limpar a cidade, retirando os pobres das áreas destinadas a receber investimentos públicos mais expressivos para que os ganhos fundiários resultantes desses investimentos com a valorização imobiliária sejam destinados a quem interessa”, define. Para Vainer, as obras de mobilidade urbana incluídas na Matriz de Responsabilidades da Copa refletem isso. “Na maioria das cidades, os investimentos de mobilidade não têm atendido as demandas das camadas populares com transporte público de massa”, opina, exemplificando em seguida: “No Rio de Janeiro, onde 80% da demanda de transporte público de massa está nos subúrbios, na Baixada Fluminense e na grande Niterói, os investimentos estão sendo feitos para áreas em grande parte vazias da Barra da Tijuca e Recreio, onde temos menos de 5% da população da região metropolitana do RJ. Esses investimentos, na verdade, estão é valorizando os grandes latifúndios vazios da Barra da Tijuca e Recreio”, avalia o pesquisador. Regiões nobres da cidade do Rio, e ainda com espaço para construção civil, esses bairros são alvo de investimento imobiliários de muitas empresas do ramo. A Multiplan, por exemplo, apresenta em seu portfólio um shopping center inaugurado em 2012 e um edifício residencial concluído em 2009 localizados na Barra da Tijuca. Nas duas últimas eleições, essa empresa doou R$ 500 mil para a campanha do atual prefeito da cidade do Rio, Eduardo Paes, em 2012, e R$ 750 mil para a campanha do atual governador do estado, Sergio Cabral.
André Antunes, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV
Foto: A Pública, Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
EcoDebate, 13/09/2013