Por Gabriela Couto.
A cena é chocante e foi registrada nas primeiras horas do último sábado (11), no alojamento da Frutini, em Vacaria, no Rio Grande do Sul. Um grupo de indígenas da etnia guarani-kaiowá, da Aldeia Paraguassu, de Paranhos, tenta desamarrar um jovem indígena que se enforcou com pedaços de pano em um cabo de madeira.
Já desfalecido, um facão aparece e corta o tecido que o prendia. O grupo pega o colega, coloca em uma das diversas camas de beliche que estão perfiladas em um galpão. Os homens sacodem o jovem, na torcida de que ele recobre os sentidos, que volta chorando.
O indígena que tentou a morte no último fim de semana já voltou para o pomar nesta segunda-feira (13). A situação surreal para eles é normal. Famílias de várias aldeias do Estado já não contabilizam mais o número de parentes que saem de casa para trabalhar na colheita de maçãs no Sul do País e retornam sem vida.
“A gente não sabe onde recorrer, para quem vai procurar ajuda, porque como você sabe né, esse mundo é movido a dinheiro né, tudo na vida é dinheiro. A gente vê nossos jovens morrendo, suicidando-se, entrando em depressão, porque a maioria cresce, mas quando buscam oportunidades não são apoiados. Esse ano mesmo a gente já perdeu dois jovens por suicídio”, relata indígena da aldeia de Dourados que, como todos, pede para não ter o nome divulgado por conta de ameaças.
A denúncia é feita pelo grupo “Comitê de Luta”, que reúne militantes da causa indígena. Há relatos de outros indígenas sobre a exportação de mão de obra fora do estado. “Vai morrer muito índio. Lá é oferenda para empresa crescer e ficar rico. Ouvi muito isso lá: ‘vai morrer muita indiada ainda nessa colheita’”, revela outra testemunha.
A insalubridade é revelada por outra fonte. “Índio está sendo escravizado, porque tem alguns ‘dos pessoal’ que dorme no chão, não tem condição nenhuma de se manter lá. A comida no alojamento é uma porcaria. Tem um monte de vídeo circulando por aí. Podia ‘juntar’ e mandar para as autoridades ver”, conta outra indígena.
No vídeo abaixo, é possível ver um indígena alcoolizando sendo arrastado para dentro do ônibus, que leva um grupo de indígenas para a colheita de maçã. Segundo a família, ele não queria embarcar, mas foi levado à base de socos, chutes e pisadas para dentro do veículo.
No vídeo, um homem grita: “Está fazendo vergonha para nossa comunidade”, diz um dos agressores, também indígena. Há ainda relatos de trabalhadores indígenas que se evadem dos alojamentos e voltam para casa fugindo de carona e até a pé.
Exploração – Sem perspectiva de vida e oportunidades de trabalho, a colheita de maçã se torna uma das raras oportunidades para os indígenas minimizarem a fome que passam. Como falso atrativo, as empresas oferecem um ‘vale’, antecipação do salário, cerca de 15 dias antes da viagem. O dinheiro que serve para comprar comida acaba sendo uma outra ferramenta de exploração.
“É um trabalho escravo sim, porque a gente tem visto aqui na aldeia, nós observamos, estamos colhendo informações que a exploração começa aqui, antes da saída deles, as cestas básicas que são vendidas a preços abusivos, além de outros produtos que são vendidos pelos ‘cabeçantes’, nas fazendas, nas usinas, é toda uma rede de exploração que obriga o trabalhador a se sujeitar já, antes de sair para trabalhar, ele já sai devendo. Imagina se ele bebe, se ele usa droga, ele vai, quando ele volta, simplesmente não tem nada para oferecer para família dele”, pontuou o grupo Comitê de Luta.
Em Paranhos, o Supermercado Moreira já foi intimado pela fiscalização a parar com a prática de cobrança ilegal nas compras dos indígenas que vão para a colheita de maçã. Por necessidade, eles atravessam a fronteira e vão na unidade que fica ao lado, no Paraguai.
“Fazem uma compra de R$ 800 a R$ 1,2 mil e quando voltam, o valor é superfaturado, com acréscimo de até R$ 400 do valor cobrado. Fica a palavra deles contra a nossa. Acaba que nos endividamos antes de ir”, lamenta outro indígena. A reportagem procurou o representante do mercado para questionar a denúncia, mas ninguém foi encontrado.
Percurso feito pelos indígenas do Estado até pomares de maçã em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Foto: Reprodução
Garimpeiros – Não foi à toa que a palavra garimpeiros está no título desta matéria. Assim como no território dos ianomâmis, os próprios indígenas são aliciados por grupos de interesses, dentro da aldeia.
A situação é acompanhada pelo Ministério Público do Trabalho, de Dourados. O procurador Jeferson Pereira explica que desde 2014 atua no processo de contratação e já identificou vários problemas, embora neste momento não há nenhuma denúncia feita a respeito de trabalho escravo.
“O sistema é perverso entre os próprio indígenas. Não conseguimos controlar. Na ponta, existem caciques, lideranças, capitães e cabeçantes que fazem a prática do adiantamento de valores. A prática de adiantamento de salário não ocorre em lugar nenhum no mundo. Mas existem acertos escusos, com donos de mercados e indígenas”, ressalta.
Extremamente vulneráveis, grupos indígenas fazem inclusive o ‘roubo de turma’. Segundo o procurador, indígenas não aceitam mais irem trabalhar sem o adiantamento. Acaba se tornando um atrativo para os trabalhadores.
“Você quer fazer o que é certo, mas lá na ponta não consegue. Já apuramos inclusive a denúncia de taxa comunitária. Valor que o trabalhador indígena tem que pagar para sair da aldeia. Todo esse sistema prejudica muito a mão de obra desses povos. Chega um ponto que ninguém mais consegue trabalhar”, ressaltou.
As empresas assinaram um termo de requisitos em dezembro do ano passado para concluir a contratação da safra de maçãs deste ano. “O que acordamos é liberar um vale após 15 dias trabalhados. Trabalhamos no intuito de melhorar a condição de vida deles, mas tem todas essas peculiaridades”, pontuou Jeferson.
Ele chegou a ir na aldeia e entrar em mercados. O procurador afirma que todos os preços no local eram comum ao praticado na cidade. “O dono disse que trabalhava há muito tempo na aldeia, e o cacique conhecia ele. É uma situação que eles criaram da comunidade. Tem cabeçantes e donos de mercados que descontam os gastos direto na folha da empresa, porque alegam não receber. Outros fazem o ônibus parar na estrada, no retorno, obrigando o pagamento da dívida antes de voltar para casa. Porque antes, muitos voltavam e alegavam não ter dinheiro para pagar. São vários esquemas ruins e perversos que acontecem que são criados pela própria comunidade indígena”.
Ele ressalta ainda que antigamente, eram os nordestinos que iam para o sul do país fazer a colheita, mas que hoje os indígenas atravessam dois estados porque sabem lidar com a terra. “As empresas elogiam eles por serem disciplinados e tomam mais cuidado na colheita das frutas. Por ano são cerca de 8 mil indígenas que trabalham nos pomares. Em 60 dias, conseguem de R$ 2,5 mil a R$ 4 mil, o que faz uma diferença na vida deles, por estarem em situação vulnerável. Aqui não tem emprego para eles. Antigamente eram contratados para cortar cana, reformar pastagem, fazer cerca e plantar mandioca”.
O procurador ressalta que pede ajuda dos grupos para evitar com que problemas como este se repitam, ano a ano. “Eles falam que não entendemos a realidade deles”, lamenta. Dentre outros pontos agravantes está a questão da região de fronteira, com facilidade para aquisição de drogas e ilicítos. “São esquecidos pelo poder público, sem educação, saneamento básico, uma série de agravantes que resulta nisso”.
Vários indígenas enfileirados durante a colheita de maçã no sul do país. Foto: Arquivo
Fato antigo – Não é de hoje que ônibus carregados de indígenas cruzam mais de mil quilômetros de estrada, rumo ao Sul, para conseguir oportunidade de emprego. Grupos de aldeias de Paranhos, Juti, Amambai e Dourados vão para empresas com sede em Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
De acordo com uma indígena que tem marido, irmão e cunhado trabalhando na colheita de maçãs Gala e Fuji, a preferência dos povos originários é conseguir uma vaga na empresa Bortolon, que fica em Vacaria (RS).
“Ela é a única que dá as condições dignas de trabalho. Quem não consegue emprego lá, tem que ir para as que sobram e que são muito precárias. Na Fischer, por exemplo, localizada em Fraiburgo (SC), acontece uma verdadeira chacina. Os crimes acontecem dentro de alojamentos. Acabam fazendo acerto de contas lá e muitos já morreram”, conta.
Alguns indígenas já chegaram a dormir embaixo de lonas, porque o alojamento, que deveria servir como abrigo, não estava pronto até o período da colheita. Além disso, a informação é que as empresas ficam sabendo da data em que vão passar pela vistoria e fiscalização das comissões que monitoram a mão de obra.
Por isso, na data em que passam por auditoria, o local recebe uma espécie de ‘maquiagem’, bem como a alimentação oferecida é diferente do que é ofertada no dia a dia, sem a presença dos fiscais.
“Não temos voz, não temos apoio. Se fizermos uma denúncia por conta própria, sabemos que vamos perder, porque eles têm dinheiro. Enquanto isso tentam nos intimidar, falam que somos vagabundos, não trabalhamos, mas estamos tentando correr atrás de nossos sonhos”, relata outra fonte. Nenhum personagem quis se identificar, por medo de represália dos próprios indígenas.
Respostas – A reportagem apurou que não há denúncias por escrito de casos de trabalho escravo nos estados mencionados. Nem mesmo na Delegacia de Polícia Civil de Vacaria (RS) houve registro de denúncia de trabalhadores em condições análogas à escravidão. Por isso, sequer houve investigação nos pomares de maçãs.
Os indígenas reclamaram das situações nas empresas Fischer (SC), Rasip (RS) e Frutini (RS). Todas as três foram procuradas. Em nota, a Frutini afirmou que estranhou o conteúdo da denúncia.