Futhi Ntshingila e a leitura crítica como um sentido

Por Francieli Borges, para Desacato.info

Protegidos das abelhas por uma espécie de aquário, quatro colegas bebem café queimado na lancheria mais cara do dentro da universidade – talvez estejam na venda chinfrim por oferecem xícaras de porcelana ao invés dos habituais copos de plástico, essa combinação de rituais e distanciamentos simbólicos.Os diálogos fervorosos são sobre as soluções para as mazelas do país, essa tônica, exclamados com o tom e a finalidade pouco sutis de serem percebidos pelos outros grupos. De repente o objeto que eu carregava gritou a cena: os únicos negros lá de dentro eram as pessoas que serviam as mesas.

Não posso precisar se esse dado seria melhor ou pior percebido se eu não estivesse lendo Sem gentileza, de Futhi Ntshingila (foto)*, porque são vastas as armadilhas da socialização e do racismo institucionalizado. O eco da orelha do livro, no entanto, apontava a frase que causou em mim profunda impressão, dizia que “Zola e Mvelo lutam para que suas vozes sejam ouvidas”. A obra é ambientada em guetos da África do Sul, em meio ao apartheid, com foco na trajetória de personagens mulheres, e apesar das passagens fortes de violência de toda ordem, não pude deixar de notar um certo fio condutor da ficção que alertava um tipo de otimismo – mesmo que provavelmente essa não seja a melhor palavra. Contudo, se há esforço para escrever, para representar, para fazer algo sair e significar para outra pessoa, é porque há um tipo de esperança. Passaram os dias, acabei de ler o texto, mas as palavras não estacaram ali, antes cresceram. É sempre chocante notar como os slogans progressistas tantas vezes não passam de papo-furado.

Por puro acaso de vizinhança soube que a autora que há poucas semanas havia dito tanto através da sua ficção concedia uma entrevista na cidade, na ocasião da Feira do Livro. Com o adiantado da hora quase perdi as palavras preciosas da escritora e mesmo constrangida consegui lugar na sala em que ela falava acerca das questões de gênero, de raça, sua biografia, seu trabalho,seu país. Sobre o meu país. Isso porque se a ficção de Futhi é dedicada à preservação da memória de mulheres com as vidas sistematicamente ignoradas, penso sobre qual a atenção voltada aos discursos que as envolvem em um sistema social mais amplo, mesmo na historiografia, por exemplo. Qual é o lugar de debate que as Humanidades reservam para os grupos tantas vezes reprimidos, suas temporalidades e descontinuidades? Avançamos quando repetimos verdadeiros contrassensos sobre conceitos mais ou menos nebulosos, tantas vezes feitos para não serem compreendidos, como “pós-moderno”, “relativista” de um lado; “panfletário” do outro? Essas estratégias de discussão, bastante cristalizadas, estabelecem certezas perigosamente tradicionais.

Em um mundo-fonte, inúmeras vezes as personalidades, dramas, margens, interesses são designados como menores porque entendidos como demasiadamente ficcionais, como fantasiosos, até como falsificados. Isso revela muito sobre o tipo de conhecimento que perpetuamos nas universidades, nas escolas, tantas vezes arredios e intencionalmente limitados. Quando se estabelecem convenções de importância, muitas são as palavras exaustivamente pensadas e arbitrariamente elencadasporque narrar é um ato poderoso, mas fazer avançar a leitura crítica sobre velhos consensos pode ser ainda mais potente. Isso, sobretudo, quando as imagens de séculos de apagamento são reprisadas exaustivamente. Não se trata de ignorar o lugar de fala, mas de ter uma postura ética a partir do lugar de fala.

A questão não é sobre o silêncio imposto a essas pessoas: vozes intensas alertam sobre os saberes louvados como legítimos, instruídos, distintos, que teimam em indicar seus opostos como subalternos. O que falta são ouvidos.

*Futhi Ntsingila publicou “Shameless” (2008) e “Sem gentileza” (2014). É jornalista e mestra em Resolução de Conflitos. Seu texto é vigoroso e representativo.

Imagem tomada de: Nonada

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