Por Mouzar Benedito.
Daqui a alguns dias começa a Copa do Mundo de 2018, na Rússia. Nos dias de jogo da nossa seleção, o Brasil para… Quer dizer, parava.
O interesse pela Copa do Mundo e pelo próprio futebol está baixando no Brasil. Segundo uma pesquisa publicada na Folha de São Paulo, 36% dos brasileiros não estão nem aí pra Copa, não têm nenhum interesse por ela. Só 23% têm grande interesse.
Um motivo, eu acredito, é que a seleção brasileira, há anos, não representa bem o Brasil. Quantos dos selecionados jogam em times brasileiros? Só três, e pelo que noticiam vão como reservas. Dos titulares, alguém já viu esses jogadores atuando?
Lembro-me de quando cheguei em São Paulo e vi no Pacaembu ou no Morumbi jogos com Pelé, Gilmar, Pepe, Coutinho, Ademir da Guia, Djalma Santos, o lendário Luizinho, atacante do Corinthians… Na mesma época e muitos anos depois, aqui mesmo ou no Rio de Janeiro e outras cidades, vi em campo o Garrincha, Didi, Nilton Santos, Tostão, Dirceu Lopes, Carlos Alberto, Clodoaldo, Casagrande, Sócrates, Vladimir e muitos outros craques.
Dava gosto ir ao estádio. O campeonato paulista e o carioca tinham um encanto enorme (e os ingressos custavam pouco). Depois, já num tempo em que passou a existir transmissão internacional de jogos, times mineiros e gaúchos começaram até a superar os paulistas e cariocas, e o campeonato brasileiro era transmitido para a Europa e visto lá como uma maravilha. Invejavam o futebol brasileiro.
Hoje, a gente é que vê os jogos de lá, com inveja.
E mesmo que tivéssemos times com jogadores geniais como antes, quem pode ir ao estádio hoje em dia? Os típicos torcedores dos times mais populares, como o Corinthians e o Flamengo, podem dizer que não têm mais o direito de ir aos estádios, porque são times do povão, e os preços dos ingressos são acessíveis só a quem ganha bem.
Nestes tempos em que a lotação dos estádios raramente ultrapassa 40 mil torcedores, parece lenda que o Maracanã já recebeu 190 mil torcedores, e que o Morumbi chegou a mais de 120 mil.
Certo, os estádios estão mais confortáveis, os assentos são espaçosos. Mas tornaram-se lugares para ricos ou para torcidas organizadas que vão ao estádio para brigar, não para ver jogos. Então, além de custar caro, é arriscado ver seu time jogar.
E tem outro motivo. Quase todos os brasileiros, antes, gostavam de jogar futebol, não só de assistir. Aliás, gostar de jogar ajuda a gostar de assistir também.
Mas quantos podem fazer isso? Segundo a pesquisa da Folha, só 20% dos brasileiros jogam futebol atualmente. E só 20%, também, frequentam estádios.
Volto aos tempos em que cheguei para morar em São Paulo. Nos domingos eu jogava de vez em quando em um dos oito campos em terrenos públicos da região do bairro de Pinheiros.
O que aconteceu com esses campos?
Três deles deram lugar a um conjunto do BNH em que eu moro. Dois deram lugar ao Fórum da Vila Madalena. E os outros três foram dados de mão beijada pelo então prefeito Reinaldo de Barros, preposto de Paulo Maluf, nomeado pela ditadura, para a construção do Shopping Eldorado. Justificaram a doação: aos domingos, no estacionamento do shopping, iria ter apresentações de orquestra, de graça para o público. Houve sim algumas apresentações, depois nunca mais.
Mas não é só na região de Pinheiros. Terrenos públicos de toda a cidade foram sendo ocupados por indústrias e shoppings.
Sim, favelas também. Falam da ocupação dos terrenos por pobres que não têm onde morar mas fecham os olhos para grandes empresas que fazem isso também, e tendo dinheiro para pagar pelos terrenos (quem disse que não pagam um pouco, como propina?). Mesmo quando o assunto é moradia, os ricos se apropriam de terrenos públicos numa boa. Por exemplo: ouvi de uma urbanista, que dava entrevista numa emissora de rádio, a informação de que parte do enorme e riquíssimo bairro de Alphaville, em Barueri (Grande São Paulo), cheio de mansões de bilionários, foi construído em terreno público.
Atualmente não sei qual a proporção de favelas que ocupam terrenos públicos, mas há muitos anos, quando já se criticava a ocupação deles por favelas, uma pesquisa mostrou que só 9% dos terrenos públicos ocupados irregularmente eram de favelas. Os outros 91% eram ocupados por empresas.
Mas este é outro assunto. O certo é que futebol agora é aprendido em escolinhas que poucos podem pagar. Pobre morador da região não tem mais onde jogar. E, como já disse, não é só em Pinheiros. Calcula-se São Paulo chegou a ter mil campos de futebol de várzea. Quantos tem hoje?
Então… Vale para quase toda a cidade de São Paulo: pobres, aqui, não têm mais como jogar futebol. E não deve ser só aqui. Não vejo quase em lugar nenhum, especialmente em cidades grandes, campos em que crianças e adultos tinham à disposição, pertinho de casa.
Isso tudo vai provocando um desinteresse pelo esporte que já não é mais tanto apaixonante no Brasil. Segundo outra pesquisa da Folha, 41% dos brasileiros não têm nenhum interesse pelo futebol. Só 26% têm grande interesse.
Não é de se estranhar, já que não há espaço para o futebol amador, e os times profissionais daqui são compostos quase que exclusivamente por jogadores que não conseguem ir para a Europa. Tanto que qualquer jogador que começa a se destacar já fica no ar uma pergunta: quando é que ele vai para a Europa?
E quem se arrisca a vestir a camisa do seu clube pode ser espancado ou até assassinado por quadrilhas de imbecis de times adversários.
Com esse quadro todo, os campeonatos estaduais vão piorando, sendo tratados com desprezo inclusive pela imprensa esportiva. O “Paulistão” já é chamado de “Paulistinha”, foi reduzido e é tratado como um estorvo. Os campeonatos estaduais duram uns poucos meses e os clubes não têm como se manter no restante do ano, os atletas ficam inativos. Se o futebol amador vai se extinguindo e os times profissionais menores não têm condições de sobreviver como é que podem querer que os grandes clubes tenham o êxito que já tiveram antes?
Os reflexos dessa dificuldade de equipes menores sobreviverem aparecem no número de times profissionais na ativa. São Paulo, com 645 municípios, tem 86 clubes ativos. Minas Gerais, com 853 municípios, só 33 clubes ativos. Nisso, o estado que está melhorzinho é o Rio de Janeiro que, com 92 municípios, tem 44 clubes ativos.
Enfim, a minoria muito interessada na Copa do Mundo pode se multiplicar durante a realização dos jogos, se o desempenho da seleção não for um vexame. Mesmo sabendo de tudo quanto é sacanagem, que “o futebol é o ópio do povo” (pode até ter sido, em parte – a frase original se referia à religião), e que o governo vai tirar proveito para desviar a atenção das nossas mazelas e querer se apropriar de conquistas da seleção: na hora H, se a seleção jogar bonito, a gente acaba gostando e torcendo.
Em 1970, em plena ditadura, algumas pessoas pregavam que se torcesse contra a seleção brasileira, porque a vitória seria manipulada pelos ditadores e viraria propaganda – e foi isso que aconteceu – mas com a seleção jogando muito bem, quase todo mundo torceu por ela e vibrou com seus jogos e sua conquista.
Apesar de tudo o que relatei, parece que a seleção atual está num bom momento e com um bom técnico. Nestes tempos vampirescos, acho que quase tanto quanto na ditadura, os brasileiros precisam de notícia boa, qualquer coisa que dê um pouco de autoafirmação, e a seleção, nos bons momentos, ajuda nisso.
Enfim, o quadro é esse: cartolas corruptos, governo oportunista, entidades futebolísticas mal dirigidas (além de corruptas também), clubes fracos e sem condições de manter bons jogadores aqui, torcidas organizadas agindo como quadrilhas, falta de oportunidade para os pobres que, segundo diziam “antigamente”, eram bons porque corriam para a bola como se estivessem correndo atrás de um prato de comida… Tem tudo isso contra o futebol no Brasil de hoje.
Mas que bicho vai dar? O sucesso na Copa pode resultar em um pouco de melhora da autoestima dos brasileiros. Se isso acontecer, certamente a gangue no poder e os eternos exploradores do povo podem aproveitar o otimismo para faturar em cima. Só que podem não conseguir. Mais um fracasso da seleção pode acelerar o enterro dessa autoestima… Tem quem acredite que isso resulte num posicionamento político e em atitudes contrários à geleia geral em que estamos. Não sei se isso aconteceria. Vamos ver.
De qualquer maneira está se tornando óbvio que o futebol é um esporte que vai mesmo deixando de ser alegria dos brasileiros. Uma pena.
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Para aprofundar a reflexão, recomendamos a leitura do livro Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, em especial do ensaio de antropologia do esporte escrito por José Sérgio Leite Lopes.
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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar(2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária(1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2017, e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.