Por Laura Capriglione, da Ponte.org
O antropólogo Fábio Mallart, mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e membro do Núcleo de Etnografias Urbanas do Cebrap, viveu a rotina de internação de jovens infratores nas unidades da Fundação Casa (antiga Febem) entre 2004 e 2009. Durante esses anos, Mallart ministrou oficinas de fotografia aos adolescentes dos complexos do Brás, Franco da Rocha, Tatuapé, Vila Maria e Raposo Tavares, em São Paulo. Foi a forma que encontrou para se aproximar dos jovens, conhecer-lhes a rotina de vida, suas formas de organização e de resistência.
O que Mallart pode constatar é que a “internação em estabelecimento educacional”, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que deveria ter caráter pedagógico ao mesmo tempo em que favoreceria a ressocialização do jovem, na prática, transformou-se em cadeia. Funciona com a mesma lógica punitiva e carcerária dos estabelecimentos voltados para adultos.
O paralelismo é total. Até a superlotação típica dos presídios agora acontece nas unidades da Fundação Casa, segundo denúncia protocolada na última quarta-feira (6 de agosto) pelo Ministério Público Estadual. “A situação, de séria gravidade, configura flagrante desrespeito aos direitos humanos dos adolescentes”, diz o texto da ação.
Na entrevista a seguir, Mallart mostra como o Estado “alinhou” a Fundação Casa com os métodos usados nas prisões. E mostra também como os jovens “alinharam-se” com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital.
Ponte – Em seu livro, “Cadeias Dominadas –A Fundação Casa, suas Dinâmicas e as Trajetórias de Jovens Internos” (264 pp, Editora Terceiro Nome, R$ 45), você defende a ideia de que o sistema socioeducativo de internação progressivamente se alinhou à lógica do sistema penitenciário. Como isso aconteceu? Quais os sintomas desse deslocamento?
Fábio Mallart – Esse alinhamento pode ser flagrado de maneira mais clara a partir de meados da década de 2000, com a nomeação, pelo governador Geraldo Alckmin, da procuradora do Estado Berenice Maria Giannella como presidente da Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), depois rebatizada Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa). Berenice foi corregedora-geral do Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo e ocupava a função de secretária-adjunta da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária). Essa nomeação marca o ingresso de vários funcionários do sistema carcerário na Febem, assumindo a direção de algumas unidades de internação. Além disso, nesse mesmo período da década de 2000, você tem uma série de transferências de adolescentes da Febem para presídios localizados no interior de São Paulo. Transferências que foram, diga-se, autorizadas pelo governador Geraldo Alckmin.
Ponte – Isso aconteceu antes dos ataques do PCC?
Fábio Mallart – Sim, antes. É quando começam as transferências de adolescentes infratores para presídios. No meio de 2006, quando eu trabalhei no complexo da Vila Maria, uma das unidades operava de forma muito semelhante ao “Regime Disciplinar Diferenciado”, o RDD, vigente em algumas unidades do sistema adulto. Era assim que os adolescentes chegavam a ficar 23, às vezes 24 horas, trancados no quarto, sem atividades, como parte de uma lógica evidentemente punitiva e carcerária. Em algumas unidades da Fundação Casa, você tem também, em meados da década de 2000, a introdução do GIR (Grupo de Intervenções Rápidas), que vem da SAP, e começa a ser deslocado para algumas unidades para controlar a dinâmica de funcionamento desses espaços.
Ponte – E os internos, diante dessa mudança?
Fábio Mallart – Como nos presídios paulistas, você tem posições políticas entre os adolescentes, que se dividem em estruturas hierárquicas conhecidas nas prisões de adultos. Foi assim que apareceram nas unidades de internação figuras como o piloto, o faxineiro… esses setores todos. Os adolescentes das unidades de internação dominadas procuram seguir as orientações que são transmitidas pelos integrantes do Primeiro Comando da Capital, e aí são orientações que, em geral, vem tanto de penitenciárias quanto de regiões periféricas. Então, o quadro atual da Fundação Casa deve ser visto nesse entrecruzamento. Você tem uma política oficial marcada pela lógica carcerária e tem também os adolescentes orientando suas ações de acordo com as orientações do Primeiro Comando da Capital.
Ponte – O que veio primeiro, a lógica do PCC entrando nas cadeias ou veio primeiro a lógica institucional das penitenciárias entrando na Fundação Casa?
Fábio Mallart – É difícil saber o que veio primeiro. São duas coisas muito entrelaçadas. Reconstituindo algumas trajetórias de internos pude ver que muitos adolescentes já entram na Fundação Casa sabendo as normas de conduta do PCC. Então, se o adolescente trabalhava em um ponto de venda de drogas, ele já entra sabendo como opera dentro do Comando. Porque, naquela biqueira, ele já orientava suas ações de acordo com os preceitos do PCC. A lógica, portanto, vem de fora. Não se constitui dentro da Fundação Casa. Ao mesmo tempo, as políticas governamentais são uma espécie de espelho dessas políticas que estão no sistema prisional adulto. O que eu acho interessante notar é que, hoje em dia, mais do que nunca, a fronteira entre o “dentro” e o “fora” dessas instituições é porosa. Os muros são porosos. Não existe mais aquela prisão totalmente fechada, sem relações com o mundo exterior. Pelo contrário, o que se vê são os princípios do PCC atravessando esses muros institucionais, e esses adolescentes tentando sintonizar as ações deles, do cotidiano, com o cotidiano prisional e das periferias urbanas, também.
Ponte – E o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)? Como fica, diante da transformação das medidas socioeducativas em prisão?
Fábio Mallart – O ECA, que resultou do processo de transição democrática, decidiu pela separação entre adolescentes abandonados e adolescentes infratores. Para os adolescentes abandonados, a partir de então, se estabeleceu que eles deveriam receber medidas de proteção. Para os adolescentes infratores, se estabeleceu que eles deveriam receber medidas socioeducativas. Para mim, de certa forma, há um paradoxo. Pois, olhando em retrospecto, é claríssimo que, ao dividir abandonados e infratores, o ECA, em conjunto com outras dinâmicas, acionou o caráter punitivo e carcerário das chamadas “medidas socioeducativas”. Ao dizer que “esses abandonados merecem medidas de proteção, e os infratores merecem medidas socioeducativas”, o ECA acabou fazendo com que as medidas socioeducativas se aproximassem, cada vez mais, de uma lógica punitiva. Não é à toa que as unidades de internação são chamadas, tanto por adolescentes quanto por funcionários, de “cadeias”. Acho que é um termo que, por si só, evidencia duas coisas. Primeiro, há uma lógica punitiva carcerária operando nesses lugares. Segundo, você tem uma simetria entre as unidades de internação e as unidades do sistema prisional.
Ponte – Se você tem esses jovens sendo cooptados pelo crime tão cedo, nas biqueiras, começando precocemente a dominar esse repertório cultural do crime, não é meio natural, digamos assim, não é meio uma resposta lógica que o Estado responda com uma política de encarceramento que faz da Febem/Fundação Casa espelho das penitenciárias? Teria como ser diferente isso?
Fábio Mallart – O problema é que parece claro hoje em dia que o modelo prisional vigente está falido –tanto em relação aos adultos quanto aos jovens. Vários pesquisadores têm apontado que, quanto mais você encarcera, mais você fortalece a criminalidade, em vez de combatê-la. Hoje está claro que a expansão do PCC dentro e fora das prisões está estritamente relacionada a um encarceramento em massa que o Estado pôs em prática há alguns anos. Porque você vai jogando cada vez mais gente para dentro, para dentro, para dentro e isso só tem fortalecido a organização. De certa forma, eu acho que existe um reflexo dessa política de encarceramento em massa também na Fundação Casa. Há, inclusive, um texto da própria Berenice em que ela diz ter a sensação de que, se fossem construídas 50 novas unidades, essas 50 novas unidades estariam repletas em pouco tempo. Então é um reflexo da própria política governamental que vai jogando cada vez mais adolescentes para dentro do sistema, e isso não combate o crime, mas, pelo contrário, fortalece o crime.
Ponte – Desde a nomeação de Berenice Gianella, há um estado de relativa calmaria nas unidades da Fundação Casa. Um motim, aqui e ali, mas nada daquelas mega-rebeliões que aconteciam todo o tempo nas Febems… Como se conseguiu isso?
Fábio Mallart – Eu tive a oportunidade de estar dentro da Fundação Casa em vários momentos a partir de 2006. O que aconteceu dentro da fundação foi o mesmo que aconteceu nos presídios e, em alguma medida, nas periferias urbanas, que é a bandeira branca. Os adolescentes receberam indicações de que, a partir daquele momento, as agressões entre eles ou qualquer tipo de rebelião deveriam ser evitadas. Trata-se de um período de paz nas cadeias paulistas, que inclui a Fundação Casa. Do ponto de vista de quem está “tirando” uma cadeia, como dizem os próprios internos, o cenário é muito mais favorável, porque os funcionários não oprimem tanto. Também houve uma sensível redução dos índices de violência entre eles. Não é que hoje não existam mais espancamentos entre adolescentes e de funcionários contra adolescentes. Eles ainda existem. Só que a intensidade e a frequência são menores. E hoje se veem cenas que seriam inimagináveis na década de 80, como adolescentes impossibilitarem a entrada de funcionários no pátio. Entrevistei um ex-interno da Febem, que passou 15 anos dentro do sistema a partir do início dos anos 70, e que ficou espantado com o que viu na Fundação Casa ao voltar para fazer um trabalho social. “O que é isso? Os adolescentes agora fazem a gestão da cadeia, são eles que entregam alimentação, são eles que organizam as atividades esportivas, os campeonatos de futebol”, relatou-me…
Ponte – Os jornais costumam dizer que existe nas cadeias um acordo entre o PCC e a direção do sistema prisional em São Paulo. Você tem alguma pista de que isso tenha se desdobrado também na Fundação Casa?
Fábio Mallart – Dentro das unidades de internação isso ficou muito claro. Naquelas cadeias chamadas de “dominadas”, presentes nos grandes complexos da instituição (Raposo Tavares, Franco da Rocha, Vila Maria, e, na época, o Tatuapé também), quem faz a gestão do espaço institucional são os próprios adolescentes. São os chamados disciplinas, que são jovens reconhecidos como líderes tanto por funcionários quanto por adolescentes, que se dividem em uma série de posições: piloto, faxina, encarregado e setor. E os adolescentes que ocupam essas posições políticas são responsáveis por gerir o espaço institucional, desde a entrega da alimentação até a organização dos campeonatos de futebol, dos torneios de dominó, mas também de relações e negociações com o diretor da unidade. Que essas negociações e esses acordos são frequentes, não me resta nenhuma dúvida, isso não só na Fundação Casa, mas em alguma medida nos presídios, nas periferias.
Ponte – Em que medida tais acordos são respeitados?
Fábio Mallart – É interessante perceber que esses acordos são frágeis, instáveis. São acordos que podem terminar a qualquer momento, e aí acho que a gente consegue entender a eclosão de episódios de terrível violência, como naquela onda de mortes em 2012, quando houve uma matança geral. Policiais e facção criminosa em guerra. Na Fundação Casa, pude presenciar várias situações em que os pilotos saíam das unidades de internação e iam negociar aquilo que eles chamavam de “benefícios”, junto ao coordenador da unidade. Ou, por exemplo, saíam para fazer reclamação de que as visitas estavam sofrendo muito esculacho para entrar na cadeia.
Ponte – Quando você fala “saíam”, é sair mesmo?
Fábio Mallart – Saíam e iam para a sala do diretor. Depois, voltavam.
Ponte – Todas as cadeias são assim?
Fábio Mallart – Não. O que eu flagrei na pesquisa foi a existência de três tipos de cadeias. Primeiramente, existem as “cadeias dominadas”, que são essas em que os adolescentes são responsáveis pela gestão do espaço institucional. Depois, vem as cadeias na mão dos “funças”, unidades em que os funcionários detêm o controle, onde impera a lógica do “licença, senhor”, “licença, senhora”, cabeça baixa, mão para trás. Por fim, há as cadeias “meio-a-meio”, em que vigora um equilíbrio das forças, em que algumas tarefas são compartilhadas, onde tem uma tensão muito maior, porque o que está em disputa é justamente a unidade. É preciso não generalizar, nem achar que todas as cadeias da Fundação Casa são cadeias dominadas. Depende da conjuntura.
Ponte – Como comparar esses modelos de gestão em termos de índice de violência?
Fábio Mallart – Dentro de uma cadeia dominada, o grau de violência entre adolescentes e funcionários é reduzido, se comparado a uma cadeia da mão dos “funça”, onde a disciplina é aquela da “mão para trás, cabeça baixa”. Eu não estou me referindo só à agressão física, mas a violências como por exemplo, essas, que obrigam os internos a ficar o dia inteiro sentados no chão, a fazer fila para ir ao banheiro, a não poder ficar dois minutos embaixo do chuveiro tomando banho, a ser revistado várias vezes ao dia. Eu sempre tomo cuidado para não passar a impressão de que nas cadeias dominadas tudo é uma maravilha. Não, também existem violências e tensões ali dentro. Um exemplo: se um adolescente se masturba no dia de visita, em uma cadeia dominada…
Ponte – Morre?
Fábio Mallart – Não. Desde que se instaurou a bandeira branca, o que eles costumam fazer é colocar o adolescente para fora da unidade, mandar para o “seguro”. Antes da bandeira branca, era comum a “madeirada”, em que se aplicava um corretivo físico em quem porventura fizesse isso, porque sabia que não podia fazer… Masturbar-se em dia de visita, enfim, é orientação que não pode ser descumprida.
Ponte – Dá para dizer que os valentões cederam a liderança das cadeias aos negociadores?
Fábio Mallart – O que eu pude perceber é que isso é um deslocamento no universo do crime, mesmo. Se na década de 90, na época do Carandiru, os ladrões respeitados eram os caras que tinham disposição para matar, o que pude notar é que existe hoje em dia uma predisposição ao diálogo. A tentar resolver as fitas na ideia. Isso significa que não haja violência? Não, de maneira nenhuma. Os adolescentes que estão à frente das cadeias, as lideranças, em princípio, tem que ter disposição para dialogar e resolver as coisas na ideia. Porém, se em determinado momento ele tiver que matar, ele tem que executar isso da melhor maneira possível. É uma combinação entre a predisposição ao diálogo, mas, ao mesmo tempo, sem perder de vista que tem que ter disposição para agir se for necessário.
Ponte – Quais os outros requisitos para ser uma liderança?
Fábio Mallart – Existem alguns, entre os quais uma performática da inteligência. Na época em que eu frequentei mais as cadeias, os pilotos usavam óculos, como atributo de um cara inteligente. Não é só ter uma predisposição ao diálogo, mas é mostrar isso no corpo, também. Se possível, usar uns óculos, nunca falar num tom de voz alto, ou gritar no pátio, sempre andar com extrema discrição. São adolescentes que não são muito vistos. Que tem uma postura corporal mais introspectiva.
Ponte – Não pode rir?
Fábio Mallart – É interessante, porque como eu dava aula de fotografia, a gente tirava muitos retratos… Mas os alunos dessas oficinas não riam porque o riso estampado na imagem era uma prova de fraqueza perante os funcionários. Então, eles evitavam o sorriso e diziam: “Pô, senhor, se a gente ficar rindo, os funcionários vão achar que a gente tem fraqueza na cadeia”, entendeu?
Ponte – E como acontece a prática dos debates entre os internos?
Fábio Mallart – Tenho relatos, que inclusive coloquei no livro, sobre horas e horas de debates para apurar se “um cara fez alguma fita errada”; é um processo com ampla possibilidade de defesa pelo acusado, até que se chegue a um consenso de que aquilo realmente foi feito por ele ou não. Há uma predisposição a esse tipo de diálogo. Nas periferias o que a gente tem visto é a replicação dessa prática dos debates. O resultado é que não se mata mais como antigamente; é preciso uma autorização, entrar em um consenso com vários irmãos para ver se mata ou se não mata. Acho que essa predisposição ao diálogo é hoje uma coisa do universo do crime mesmo, não só da Fundação Casa.
Ponte – Isso contraria o senso comum, para o qual o crime e o governo são antagônicos. Não necessariamente, não é? Às vezes, parecem operar de forma complementar…
Fábio Mallart – É isso o que eu estou dizendo. Muitas vezes essas políticas do crime e as políticas governamentais operam de modo complementar. Não são necessariamente antagônicas. O encarceramento em massa, por exemplo. O governo do Estado coloca um monte de gente dentro das unidades prisionais, pensando que assim reduzirá os índices do crime aqui fora, mas, na verdade, está fortalecendo o PCC nas cadeias. Um preso pode ficar muitos anos lá dentro, sujeito à disciplina do PCC. Mas sairá em algum momento. Como sairá? Outro dado interessante é a queda das taxas de homicídio nos últimos anos… O governo não cansa de se vangloriar de que o Estado de São Paulo reduziu as taxas de homicídio. Mas isso em certa medida está relacionado à prática dos debates, também na periferia. Não poder mais matar como se matava anteriormente. É curioso, porque obviamente o governo não vai reconhecer e dizer “olha, a queda dos homicídios está relacionada a uma política do crime”. Mas, com certeza, a prática dos debates e de arbitrar sobre a vida e a morte nas periferias, com certeza é muito funcional para o Estado também. Porque caem os homicídios, e o Estado diz “olha só os resultados das nossas boas políticas de combate ao crime”. Tem vários casos que apontam para isso, como é funcional para os dois lados. Tanto para o lado do PCC, porque o encarceramento o fortalece, quanto para o lado do Estado, já que as políticas do Comando, sobretudo nas periferias, ajudam a reduzir a taxa dos homicídios, e aí o governo usa isso em prol de si mesmo.
Ponte – Na época daquelas rebeliões enormes que houve na Febem, diziam que a saída era criar pequenas unidades, com menos jovens, sobre as quais o Estado pudesse ter um controle maior. Concretamente, como é que isso aconteceu?
Fábio Mallart – Eu trabalhei nos grandes complexos e eles às vezes tinham 1.500, 1.600 adolescentes. E não eram 1.500, 1.600 adolescentes separados e divididos –sem comunicação. Eram 1.500, 1.600 adolescentes que se comunicavam através dos pilotos, das lideranças, que subiam pelos telhados e tinham toda uma relação. Sem dúvida nenhuma, unidades menores são unidades mais fáceis de serem controladas. No Complexo Raposo Tavares, houve uma época em que a unidade de internação 37 era uma unidade super-reconhecida pelos adolescentes, porque era a dos reincidentes graves. Pois bem, eles tinham total controle da unidade, estavam em sintonia com a periferia e com os presídios também. Era uma unidade que, do ponto de vista da instituição, dava uma série de problemas. Certa vez, quando visitava essa unidade, para dar um curso, vi que os adolescentes haviam construído uma piscina dentro de uma sala. Tinham arrancado a porta e construído uma piscina. E quando eu entrava lá, eles diziam: “Pô, senhor, aqui só não entra moto e carro porque não passa na gaiola. O resto… tem tudo aqui dentro”.
Ponte – E o Estado conseguiu retomar o controle desse unidade 37?
Fábio Mallart – Sim e não. No começo de 2008, a unidade resolveu pegar todos esses adolescentes e os enviou para outras unidades do estado. Reformaram a unidade e trouxeram uma população nova. Pois bem, depois de alguns meses foram chegando –pouco a pouco– adolescentes do Complexo Brás, para cumprirem a medida socioeducativa ali. Quando eles chegaram era um controle absurdo. Eram 10 adolescentes para mais de 15 funcionários, mão para trás, cabeça baixa. Era uma cadeia que naquele momento, depois da reforma, era classificada como uma cadeia na mão dos “funça”. Só que, com o passar do tempo, quando foram chegando mais adolescentes, mais adolescentes, mais adolescentes, eu fui percebendo que essa ordem disciplinar punitiva foi trincando. Então os adolescentes foram tentando, por meio das famílias, acessar defensores de direitos humanos, as organizações não governamentais começaram a reclamar do tratamento que era dado aos adolescentes, que vira e mexe tinham marcas de espancamento. Os adolescentes começaram a acessar os integrantes do PCC fora das unidades. Em algumas situações, quando eles sabiam que algum integrante da Veij (Vara Especial para Infância e Juventude) ia fazer uma inspeção na unidade, eles marcavam os próprios corpos, para que a Veij concluísse que eles estavam sendo espancados. Eu pude perceber uma serie de disputas para conseguir retomar o controle da cadeia. E num determinado momento, quando eu saí da unidade, ela já não era mais uma cadeia na mão dos “funça”, ela já estava sendo classificada como uma cadeia meio-a-meio. Os adolescentes falavam para mim: “Senhor, falta pouco. Logo mais a cadeia vai estar na nossa mão”. Acho que o exemplo dessa unidade mostra como essas figurações de poder (dominadas, na mão dos “funça” e meio-a-meio) não são estáticas. São figurações mutáveis, são produtos do próprio jogo que se trava dentro dos espaços institucionais.
Ponte – Num certo sentido, você não acha que o que a gente tem implantado nas cadeias já é uma antecipação de fato da maioridade penal?
Fábio Mallart – A discussão da redução da maioridade penal é uma discussão sempre feita de maneira muito grotesca. Em geral, em momentos de comoção popular, quando um adolescente mata alguém de classe média ou alta, aí a gente tem uma discussão sobre isso. Mas a verdade é que, aos poucos, fui me dando conta que, quando você tem unidades de internação que são chamadas de “cadeias”, tanto pelos agentes institucionais quanto pelos adolescentes; quando você tem uma série de funcionários do sistema prisional que assumem a direção dessas unidades; quando você tem uma unidade que opera a partir da imitação do RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), que é do sistema prisional; quando você tem transferências de adolescentes de unidades de internação para unidades prisionais do interior paulista, eu acho que todas essas medidas já vão apontando para uma coisa que é muito mais perversa, que é a redução informal da maioridade penal.
Ponte – Informal?
Fábio Mallart – Sim, e uma tal informalidade é extremamente perversa. Enquanto as pessoas estão discutindo se no plano legal vai ou não haver a redução da maioridade penal, na prática algumas das unidades de internação hoje em dia já operam a partir da lógica prisional.
Ponte – Qual é a posição dos juízes? Eu queria que você falasse sobre essa peculiaridade das varas especiais de infância e juventude… Como elas lidam com o jovem infrator?
Fábio Mallart – Na minha pesquisa, eu não trabalhei com as varas especiais da infância e juventude, mas conversando com adolescentes e com funcionários da instituição, e pesquisando na literatura, percebe-se claramente a presença da mentalidade encarceradora nessas varas especiais da infância e juventude. E acho que nem poderia ser diferente, já que, conforme conversamos, há uma simetria entre o sistema prisional e o sistema socioeducativo.
Ponte – Quem são esses internos da Fundação Casa? Que tipo de ato infracional eles cometeram?
Fábio Mallart – A quantidade de pequenos traficantes que são colocados dentro dos espaços de internação e dentro das prisões hoje em dia é um ponto a ser considerado. Eu me deparei com adolescentes que tinham sido presos por estarem com 15g de cocaína, com uma pequena quantidade de maconha; por estarem perto da biqueira; por terem alguma relação com quem trabalhava na biqueira. Esse cenário também diz muito sobre o modus operandi da polícia, do tipo de suspeito que já é julgado e condenado na hora da abordagem policial.
Ponte – Então estamos falando de pequenos usuários, pequenos ladrões… é tudo crime de pé-de-chinelo?
Fábio Mallart – Isso não significa que não possa haver adolescentes que sejam chefes de quadrilha, adolescentes de 16 anos que tenham 18 assaltos na ficha. Uma das trajetórias que reconstituí, o “Túlio”, tem esse perfil. Ao ser preso, ele tinha mais de 16 assaltos, chefiava quadrilha, saiu nos jornais da cidade dele. Então, não é que sejam apenas pequenos ladrões ou pequenos traficantes… Mas, certamente, na esmagadora maioria dos casos, os jovens infratores são pequenos traficantes, pessoas pegas com pequenas quantidades de droga, ou por furto, enfim, coisas desse tipo.
Ponte – E esses pés-de-chinelo vão aprender um monte de coisa com os “Túlios” da vida. Tem essa ideia da cadeia como escola do crime. Também funciona na Fundação Casa, não é?
Fábio Mallart – Eu sempre fico um pouco com o pé atrás com essas formulações, sabe, tipo “a cadeia é a escola do crime”. Acho que tudo que envolve o crime está cheio desses chavões que tentam explicar, geralmente numa perspectiva muito causal. Agora, o que eu pude perceber é que muitos adolescentes entravam nas unidades já sabendo o modo de operação do Primeiro Comando da Capital. Isso significa que os adolescentes são integrantes do PCC? Jornais falam há pelo menos uma década de uma “facção mirim”, de que o PCC está dentro das unidades, de que os adolescentes são integrantes do PCC. Eu responderia isso de duas formas. Depende do ponto de vista. Se você levar em consideração que, para ser integrante da facção, você precisa passar por um processo de batismo para se tornar “irmão”, não, a maioria deles não são integrantes do PCC. Agora, se você levar em consideração que esses adolescentes orientam as suas ações pelas palavras e fecham com o PCC, que correm lado a lado, aí sim, eles podem ser vistos como integrantes, mesmo sem serem irmãos.
Ponte – O que você acha da privatização das unidades da Fundação Casa?
Fábio Mallart – Fico preocupado, porque a gente está lidando com vidas. Até que ponto essas vidas serão afetadas por interesses comerciais, caso haja a privatização? Até que ponto uma ou outra atitude da empresa que estiver fazendo a gestão daquele espaço não estará sendo guiada por questões econômicas, de eficácia e de produtividade? A alimentação na maioria das cadeias já é terceirizada (e aliás o serviço era péssimo). Mas privatizar a gestão e, consequentemente, vidas humanas, eu acho que é algo que deve ser no mínimo pensado e repensado com bastante cautela.
Ponte – Mas é preciso fazer alguma coisa…
Fábio Mallart – Sempre na questão das políticas públicas tem um espaço de reflexão que é quase que pulado. “Vamos fazer algo”, “vamos fazer uma intervenção”, “vamos fazer uma mudança”, mas isso tem efeitos. É preciso pensar nesses efeitos. Por exemplo, em 2006, uma das coisas que a fundação fez foi pegar as lideranças de todos os grandes complexos e colocar na Vila Maria, nessa unidade que depois ficou sob o RDD. Pegou todas essas lideranças numa tentativa de anulá-las e pôs na Vila Maria. Só que, quando fez isso, o espaço da Vila Maria virou uma referência para todas as outras unidades do estado.
Ponte – Como?
Fábio Mallart – Lá havia o que os adolescentes chamavam de ladrões estruturados, que podiam dar uma opinião, tinham uma palavra, como eles diziam, mais forte, uma experiência, uma caminhada… Os adolescentes de outras unidades sempre tentavam ter uma relação com os adolescentes que estavam presos naquela unidade. Além disso, os adolescentes que foram para a Vila Maria podiam ficar ali por 30 dias. Então eles ficavam 30 dias e depois voltavam para suas unidades de origem. Entrevistei um rapaz, “Pedro”, que me disse exatamente isso: “Pô, senhor, eu voltei com uma visão maior, sabe? Voltei um cara mais estruturado”. Tinha convivido com um cara que tinha dez passagens. Ao voltar para sua unidade, voltou com muito mais status do que quando saiu.
Ponte – Em que as unidades atuais são diferentes das antigas?
Fábio Mallart – As “cadeias dominadas” possibilitam um outro jeito de estar no mundo, diferente daquele dos adolescentes que estavam naquela década de 70 e 80. Só que tem uma perversidade… e acho que a trajetória do “Pedro” mostra isso claramente. Quando o reencontrei pela última vez, ele me disse uma frase: “Senhor, eu sinto saudades daquela época”. E eu fiquei pensando: “Afinal de contas, por que ele sente saudade de uma época em que chegou a ser espancado, em que estava preso?” É evidente o porquê. Quando ele saiu da instituição, se deparou com os mesmos problemas familiares que tinha, o grupo de amigos dele, a maioria tinha sido morta, a outra parte tinha sido presa. Depois de muito tentar, ele conseguiu emprego como empacotador de soja, em uma empresa que só contratava egressos do sistema prisional adulto. Foi aí que ele conseguiu se encaixar. Ganhava um salário irrisório. Ele se deparou com uma situação muito diferente da que vivia quando estava internado na unidade de internação. O “Pedro” era piloto, tinha uma posição de prestígio e poder; ele negociava com diretor, ele era ouvido tanto por adolescentes quanto por funcionários. Ao sair, o que encontrou foi totalmente o avesso dessa posição. Daí, acho que vem a explicação de ele sentir falta da época da internação. No final das contas, o reconhecimento social que ele tinha dentro evaporou-se no ambiente externo à Fundação Casa. Tem uma perversidade nesse jogo também. “Pedro”, quando foi desinternado, foi carregado no colo por 150 adolescentes, que o chamavam de “cara firmeza”, todo mundo agradecendo os serviços prestados. Fora da “cadeia”, ele nunca teve reconhecimento nenhum.
Fonte: Brasil de Fato
Foto: Marlene Bergamo/Reprodução site Brasil de Fato