por Raquel Wandelli, Jornalista.
No ano de 1971, atuava na prisão do Dops, em São Paulo, um sargento violonista que se unia clandestinamente aos presos nos momentos de liturgia musical. Num domingo, levou o violão escondido na lata de lixo e arriscou-se a acompanhar ao violão Carmenzita, presa política de voz extraordinária, no seu ritual de homenagem à hora do Ângelus. Os presos estavam todos em volta, como de costume, quando se ouviu o badalar do sino das seis horas no mesmo instante em que Carmenzita entoava Ave Maria no Morro, sob os acordes do violão militar. Todos os sonhos de democracia haviam sido cassados pelo AI 5. O horror e a tortura silenciavam os artistas e intelectuais nos cárceres da Ditadura Militar. Mas esse conjunto de circunstâncias coincidentes provocou uma emoção coletiva efêmera, porém intensa, uma epifania, em que a música foi capaz de suspender as trincheiras entre inimigos de posições ideológicas opostas.
Esse e outros relatos inéditos que mostram o papel da música nas prisões das ditaduras na América Latina e no Brasil foram narrados hoje (27), na manhã do segundo dia da 62ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira do Progresso da Ciência (SBPC), no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, pela pesquisadora Lúcia Maria Sálvia Coelho, da Universidade de Santa Marcelina (USM), de São Paulo. Como no episódio da Ave Maria, a própria conferência oportunizou momentos de epifania, quando uma platéia lotada, principalmente por jovens estudantes, sentados, ao chão ou de pé, encostados nas paredes, entoou os hinos de resistência gerados nos festivais de música da década de 70 e projetados pela palestrante. A emoção calma e a admiração pela herança político-cultural cumpriram o objetivo da pesquisadora de permitir que as novas gerações conheçam, através das artes, esses momentos de supressão das liberdades para que não se repitam.
Acompanhando as gravações o público cantarolou “Pra não dizer que não falei das flores”, “Porta Estandarde” e “Disparada”, de Vandré, “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, “Domingo no parque”, de Gil, “Ponteio”, de Edu Lobo e outras canções menos conhecidas de Chico Buarque que, segundo a autora, foi o compositor mais cantado nas prisões. À medida que esclarecia o contexto político no qual essas melodias foram produzidas dentro e fora das prisões, e as circunstâncias que ela própria vivenciou, o significado das letras foi se desvelando no seu plural. “Pra que ninguém mais pense que Apesar de você fala de uma briga de namorados”, diz Lúcia. Entoar esse samba de Chico era, segundo ela, reação de praxe aos abusos do poder e às atitudes de desrespeito aos direitos humanos no cárcere.
A pesquisadora integra há mais de 20 anos a Sociedade Científica de Estudos da Arte (CESA), fundada há 20 anos por um grupo de estudiosos agrupados em torno de Ruy Galvão de Andrada Coelho, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Na conferência Música nas prisões da Ditadura, valeu-se de sua experiência como presa política, torturada e exilada, ao lado do marido Ruy Galvão, para fazer de suas memórias do cárcere uma oportunidade de reflexão sobre o que pode a música representar para seres humanos em situação de limite e opressão política.
Ainda está longe de ser dito e ouvido tudo sobre a importância da música na superação do período da Ditadura Militar. Mais do que qualquer outra arte, a chamada canção de protesto representou para a sobrevivência dos presos políticos o que simbolicamente as narrativas de As Mil e uma Noites significaram para Sherazade. Depois do AI 5, quando em nenhum outro lugar era possível se reunir, agir protestar, porque qualquer pessoa andando pela rua poderia ser sequestrada e encapuzada, encarcerada e torturada, ter sua casa invadida e seus filhos recolhidos para adoção, quando toda voz já havia sido calada, nos cárceres do regime de exceção os jovens ainda se arriscavam a cantar. E cantando perfaziam no cotidiano das grades um ritual de celebração à luta política, à solidariedade na dor, à comunhão de almas, à alegria também e à carnavalização das diferenças, como no exemplo da Ave Maria.
“Já estávamos presos mesmo”, sorri Lúcia Coelho, que consegue com humor e afeto histórico rememorar a tragédia pessoal que viveu em três meses de prisão pelo circuito Dops, Operação Bandeirante (Oban) ou prisão da Tiradentes, além de um ano de cárcere domiciliar e mais dois anos de exílio na França. Doutora em Psicologia Médica e Prova de Rorschach e membro do Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos, Lúcia conta em seu trabalho com a contribuição do filho Sérgio Coelho, professor universitário e estudioso de Teatro.
A solidariedade estabelecida pelos prisioneiros, que cantam juntos nas celas do Dops, constituía uma das mais importantes funções da música nesse período, explica Lúcia. Iniciava no fim do dia, seguindo um repertório escolhido ao acaso, mas sempre se encerrava com a canção “Boa Noite”, composta na prisão por Marily Bezerra, membro da Polop, torturada e morta nos porões da ditadura: Boa Noite/Diga apenas Boa Noite/Saia ao menos à janela/Para ouvir o meu cantar/Companheiros/Confiança no Futuro/Que um dia nós faremos/Uma manhã cheia de sol.
Na sequência, os presos entoavam a Internacional Comunista e concluíam com uma corrente de boas noites, que iniciava na cela feminina nº 3. “Cada noite, uma de nós ficava encarregada de gritar: Boa noite cela 6! E os prisioneiros da cela 6 respondiam: Boa noite!, e assim por diante, até chegar ao fundão”. O fundão era a cela de isolamento, ao final do corredor, onde não entrava luz. Havia espaço apenas para um colchão e uma privada, bem aos pés do leito. Esse rito musical raramente era reprimido pelos carcereiros do Dops, à exceção dos ligados ao delegado Fleury. Mas a maioria não apenas permitia como às vezes participava do canto.
A pesquisa aponta ainda que as músicas populares quando cantadas também serviam como forma de evasão e ponte para lembranças dos momentos de liberdade. Um dos relatos mais emblemáticos trazidos por Lúcia é o vivenciado por Iara Seixas, presa política, hoje professora universitária, que conseguiu espiar através de uma janela da Oban a sala de uma casa vizinha onde os moradores estavam à mesa comendo e conversando. A imagem espiada de uma família de classe alta jantando faceira ao lado de uma prisão, alheia aos gritos de dor que emanavam da câmera de tortura, misturada à memória de sua própria vida em família, arrebatou-a. No mesmo instante evocou a música de Caetano Veloso e Gilberto Gil “Panis et circensis”, cantada pelos Mutantes. Eu quis cantar/Minha canção iluminada de sol /Soltei os panos sobre os mastros no ar /Soltei os tigres e os leões nos quintais /Mas as pessoas na sala de jantar/ São as pessoas da sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer /Mandei fazer /De puro aço luminoso um punhal /Para matar o meu amor e matei /Às cinco horas na avenida central/ (…) Mandei plantar /Folhas de sonho no jardim do solar /As folhas sabem procurar pelo sol /E as raízes procurar, procurar/ Mas as pessoas da sala de jantar (…)
Pelas asas desse poemúsica, uma das criações mais sublimes da MPB, Iara tomou consciência do peso de seu desamparo e solidão. E também sentiu a crueza da alienação social, tão ironizada pelas letras de Chico Buarque, de “Acorda amor”, e, segundo a pesquisadora, muito semelhante ao fenômeno de cumplicidade dos cidadãos alemães com o nazismo. Mas na rotina da dor e do cárcere também havia lugar para festa e alegria, como por exemplo, no Carnaval. Na prisão Tiradentes, onde havia maior espaço para o convívio, as prisioneiras cantavam e dançavam as marchas carnavalescas usando fantasias ou adornos improvisados. “A alegria voltava para as celas graças à música e à força da imaginação das jovens”, diz a doutora.
Notícias da morte de um companheiro eram recebidas com uma onda de tristeza e desânimo. Mas não eram capazes de levar à desistência. A manutenção da coragem e da convicção da necessidade de continuar a luta contra a ditadura era alimentada por hinos revolucionários, mas também pela marcha carnavalesca “Zum-zum”: Oi! Zum, zum, zum,/ Zum, zum, zum! /Está faltando um! (bis) /Bateu asas, foi embora, /Não apareceu. /Nós vamos sair sem ele, /Foi a ordem que ele deu. (…) Com a marchinha, acompanhada por uma flauta doce, as prisioneiras da Tiradentes lamentaram a morte de Lamarca, mas também anunciaram que o bloco prosseguiria a luta, cumprindo a vontade do guerrilheiro. E “Suíte do Pescador”, de Dorival Caymmi, aparentemente uma doce canção do mar, composta na prisão, funcionava como um hino de celebração à vida em homenagem aos companheiros que saiam do cárcere e podiam vislumbrar novas perspectivas preservando o vínculo com os que ficaram. Minha jangada vai sair pro mar/ Vou trabalhar, meu bem querer /Se Deus quiser quando eu voltar do mar/Um peixe bom eu vou trazer/ Meus companheiros também vão voltar/ E a Deus do céu vamos agradecer/ Adeus, adeus/ Pescador não se esqueça de mim/Vou rezar pra ter bom tempo, meu bem/ Pra não ter tempo ruim/ Vou fazer sua caminha macia/ Perfumada com alecrim.
Desse modo imaginativo, a música na prisão cumpre funções que vão além da comunicação de uma aspiração ideológica, conclui Lúcia. Ao modo brasileiro, as canções rompiam o padrão de medo e barbárie do universo carcerário, embalavam e acalentavam os companheiros após as sessões de tortura, que eram recebidos com o afago das doces melodias tropicais. Esse sopro de vida ajudou a introduzir na rotina dos porões da guerra política a solidariedade, a alegria e o conforto para a dor, humanizando o horror da opressão.