Ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann diz que Governo vai criar um novo modelo para estabelecer os limites das reservas
Por Eduardo Rodrigues.
Como se não bastasse o cenário de redução das concessões de terra aos povos indígenas (observado desde o governo de Fernando Henrique Cardoso), uma declaração da ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, feita no início de maio, tem reforçado ainda mais a angústia e a incerteza desses povos, que veem seu direito à terra sendo negligenciado. Gleise afirmou que órgãos do Governo Federal, como os ministérios da Agricultura, Desenvolvimento Agrário e Cidades, poderão influenciar nos processos de demarcação de terras indígenas – trabalho feito hoje exclusivamente pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Com isso, a fundação indigenista poderá perder parte de suas atribuições, o que diminuiria ainda mais o ritmo no processo de reconhecimento das terras.
Gleisi critica a Funai por causa das falhas no processo de demarcação das terras. A ministra afirma que a fundação “não está preparada, e não possui critérios claros para administrar conflitos [entre povos indígenas e produtores rurais].”
Procurada para comentar as possíveis mudanças, a Funai, por meio de assessoria de imprensa, diz que prefere não se pronunciar sobre a questão.
Mas para a Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que trata da situação de trabalhadores rurais e conflitos no campo, atitudes como a da ministra deixam claro o compromisso do Governo com interesses políticos e do agronegócio, além de ignorar os direitos dos povos indígenas, garantidos pela Constituição. Em nota, a CPT diz que “as manifestações indígenas ocorridas nos ultimamente, revelam a total discordância destes povos com projetos que afetam sua vida e seus territórios”.
Para o geógrafo e professor titular de Geografia Agrária da USP (Universidade de São Paulo), Ariovaldo Umbelino de Oliveira, “todos os descendentes de europeus que vivem no Brasil tem uma dívida com os índios. O território era deles e vem sendo tomado gradativamente”, diz. O geógrafo afirma que mudanças como as que foram anunciadas por Gleisi não demonstram nenhum compromisso por parte do Governo com os nativos, e desrespeitam os indígenas. “A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) que é ligada ao Ministério da Agricultura, deve conhecer muito bem a parte de agronomia do País. Mas o que entendem os agrônomos, e que formação eles têm para decidir se uma área é ou não território indígena?”, questiona Ariovaldo.
Para a geógrafa Neli Aparecida de Mello-Théry, que também é professora associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP) e pesquisadora no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, o conflito de interesses pode tornar os processos de demarcação ainda mais lentos. “O interesse da Embrapa está no solo. O objetivo dela é melhorar as pesquisas para aumentar a produtividade da terra, achar onde produzir. Por meio de uma macrozoneamento, que é feito todos os anos, ela sabe qual é o melhor momento para plantar. É claro que se um território indígena estiver localizado em cima de uma terra roxa, que é a mais fértil, essa área não vai ser liberada para demarcação. Se a Embrapa passar a fazer laudos, eu tenho certeza que vão ter terras indígenas diminuindo por aí.”
Segundo Neli, a quantidade de procedimentos executados até que uma área seja homologada, isto é, registrada em nome de um grupo indígena, deixando de ser uma terra pública e tornando-se terra pública definida, é o principal fator para justificar a demora nos processos de demarcação. “A Funai é muito lenta. Os procedimentos adotados hoje pra fazer a demarcação são extremamente demorados, porque em cada fase de identificação, é deixado um prazo para que todos os envolvidos possam contestar. Você dá um passo à frente e volta dois. Na minha opinião os procedimento tinham que ser simplificados. Bastariam poucos laudos para definir uma terra como sendo território indígena.”
PEC 215
A proposta que muda o processo de delimitações das terras, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 215/2000, está em tramitação na Câmara dos Deputados, tendo sido discutida pela última vez em 05/06/2013 na Comissão de Legislação Participativa. A PEC transfere a competência das demarcações, que hoje é feita pela Funai, para o Congresso Nacional.
No novo modelo de delimitação proposto, serão levados em conta não só aspectos antropológicos, mas também, sociais e econômicos.
Na mira
Sobre o papel que irá desempenhar dentro do novo processo de delimitação das TIs, a Embrapa disse em nota, por meio de assessoria, que “não tem por atribuição opinar sobre aspectos antropológicos ou étnicos envolvendo a identificação, declaração ou demarcação de terras indígenas no Brasil”, e que essa é uma atribuição da Funai.
Esclarece também que irá contribuir apenas com “informações técnicas e científicas sobre a agricultura e a dinâmica do uso e ocupação das terras” e na elaboração de estudos.
Demarcação
Atualmente os estudos de identificação e delimitação das terras indígenas são fundamentados a partir dos critérios antropológicos e socioambientais definidos na Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), no Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996 (onde consta o procedimento administrativo de demarcação das terras) e na Portaria 14/96/MJ (que estabelece regras sobre a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas), em conformidade com os termos do parágrafo 1º do artigo 231 da Constituição Federal.
O processo administrativo de regularização fundiária é composto pelas etapas de identificação e delimitação da área, demarcação física, homologação e registro das terras indígenas.
Entenda os procedimentos e termos:
- Em estudo: fase em que são realizados os estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais para fundamentar a delimitação da terra indígena.
- Delimitadas: são terras que tiveram a conclusão dos estudos publicados no Diário Oficial da União pela Funai, e vão para análise do Ministério da Justiça, que faz a expedição de Portaria Declaratória da Posse Tradicional Indígena.
- Declaradas: o Ministro da Justiça declara o determinado território como sendo de uso exclusivo dos indígenas, que a partir dessa declaração, estão autorizadas para serem demarcadas. A declaração é feita após aprovação dos estudos pela Funai, que comprovam que as terras são tradicionalmente indígenas.
- Homologadas: são territórios que já foram demarcados e tiveram seus limites homologados pelo Presidente da República.
- Regularizadas – é quando a terra está totalmente regularizadas, com registro em cartório em nome da União e no Serviço de Patrimônio da União.
Segundo a Funai, as contestações são feitas até 90 dias depois da publicação do resumo do Relatório Circunstanciado dos Estudos de Identificação e Delimitação, no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do Estado em que se encontra a área delimitada.
Somente depois das análises e das respostas fundamentadas para todas as contestações, é que os estudos são encaminhados ao Ministério da Justiça para homologação.
Constituição
O artigo 231 da Constituição Federal diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Já o segundo parágrafo do mesmo artigo impede que os índios detenham a posse permanente de terras, pois elas constituem patrimônio da União.
Ainda segundo a legislação brasileira, terra indígena é aquela ocupada tradicionalmente pelos índios, habitada por eles de modo permanente e utilizada para realizar suas atividades produtivas, “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (parágrafo 1º do artigo 231).
Fonte: EcoDebate.
Foto: Nivaldo Silva / Repórter do Futuro, no Flickr