“Tenho 43 anos. Sou advogada de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Fui estuprada três vezes na vida. Na primeira, aos 8 anos, fui abusada por um primo muito mais velho do que eu. Na segunda, aos 23, por um amigo que me deu carona saindo de uma festa. E agora, aos 43, por um homem que conheci pelo Tinder.
Fui casada por 19 anos e me separei recentemente. Meu ex-marido é um baita parceiro, sempre me apoiou, inclusive nestes momentos de dor.
Estava no aplicativo há alguns meses e depois de algumas semanas navegando pelos perfis, comecei a conversar mais profundamente com um homem. Quando finalmente marcamos de nos conhecer pessoalmente, pedi seu nome, RG e CPF. Como ele me mandou de cara, não me preocupei em checar as informações. Mais tarde descobri que ele mandou os dados de um jogador de futebol famoso, mas nem me liguei.
Marcamos o encontro na minha casa, foi tudo bem. Transamos e ele foi gentil. Lá pelas três horas da manhã, ele foi para a varanda do meu apartamento e eu fiquei deitada na cama, nua. Ele voltou, agressivo, e, de uma maneira bem chula, falou que ia fazer sexo anal.
Falei que não, que era melhor a gente dormir. Ele respondeu que faria sem camisinha. Logo se debruçou sobre mim, segurou meu pescoço, o virou para não me sufocar no travesseiro e fez sexo anal. Pedi para ele parar, mas ele respondia: “Fica quietinha”. Pedi para ele parar novamente, até que percebi que minhas reclamações não adiantariam nada. Ele fez sexo vaginal também. Fiquei olhando para um ponto fixo esperando aquilo tudo acabar.
Quando terminou, meu ânus estava sangrando. Entrei no banheiro ainda perplexa, tentando entender o que tinha contecido. Joguei água no ânus e quando entrei no quarto de novo, ele já estava vestido e dizendo que não tinha dinheiro para ir embora. Dei dinheiro para ele.
Me vesti para ir ao Hospital Pérola Byington, referência no acolhimento de mulheres vítimas de violência sexual. Sabia que precisava ir ao Pérola fazer a profilaxia, procedimento que faço com todas as vítimas de violência sexual que ajudo.
Chamei um taxi e, quando disse o destino, chorando, o taxista perguntou se eu não queria ir para a delegacia. Falei que não, que queria ir para o hospital. Foi no caminho que fui me tocando que tinha sido estuprada. Falei com uma amiga e com meu ex-marido pelo telefone, contei o que tinha acontecido e disse para ele: ‘Não quero que meus filhos me vejam nos próximos três dias’.
Chegando no hospital, falei pro guarda que tinha sido estuprada, ele me perguntou se eu tinha B.O. e eu falei que não. É importante que as mulheres saibam que não precisam de B.O. para receber a profilaxia do estupro.
Fui atendida pela Dra. Joelma, que eu já conhecia por conta do trabalho que tenho com as vítimas. Quando ela viu que eu estava sozinha, ou seja, que a vítima era eu, ela segurou minha mão e me encaminhou para o médico.
Contei o que aconteceu e ele muito frio e me encaminhou para a profilaxia. O Marcelo, que trabalha na farmácia, me disse: ‘Sinto muito’. Quando olhei o papel do médico, estava escrito ‘abuso sexual’. O que aconteceu comigo não foi abuso. Foi estupro. Como advogada, sei das consequências de ter um prontuário errado em meu processo. Supondo que eu engravidasse desse estupro, por exemplo, seria uma situação muito complicada juridicamente.
Quando fui reclamar com o médico sobre o erro, ele disse: ‘Não tem erro nenhum. Você permitiu a pessoa entrar na sua casa’. Depois de muito discutir, ele trocou e colocou CID para estupro mediante violência.
Outra coisa que me chamou muito atenção nesse processo todo foi a profilaxia. É um processo muito doloroso e sobre o qual falamos pouco. Os efeitos colaterais dos remédios são fortíssimos, inchei nove quilos em uma semana e passei dez dias seguidos vomitando. Eu tinha o apoio de mulheres e do meu ex-marido, que se revezeram para cuidar de mim dia e noite. Fiquei pensando nas mulheres que não têm essa ajuda.
Ainda no Pérola, ficou faltando uma medicação da profilaxia, a imunoglobulina humana, usada para hepatite B e sífilis. Acionei minha rede de contatos e, com intervenção do Ministério da Saúde, consegui tomar a medicação depois, no Hospital Emílio Ribas. Se nem o Pérola Byington, que é um dos melhores do Brasil, tinha todos os remédios da profilaxia, imagine as centenas de mulheres que são estupradas todas as semanas.
Logo em seguida, o homem que me estuprou despareceu do perfil e eu também sai do Tinder. Conversei com alguns amigos sobre o que tinha acontecido e recebi mensagens de várias mulheres que passaram pela mesma coisa, em encontros marcados pelo Tinder e pelo Happn. É muito triste.
Decidi não denunciar – eu tambem não tinha prova do meu não consentimento. Não tenho dúvidas de que seria acolhida por uma delegada ou uma promotora da rede, mas no julgamento, não vejo o que conseguiria. A justiça é patriarcal no Brasil.
Ainda tenho prazo para fazer a denúncia, mas tenho receio. A pessoa tem o meu nome, meu endereço e prezo pela minha segurança. A questão da cultura do estupro não é o sexo, é o poder. Teve gente que me questinou se eu não deveria ter tomado mais cuidado. Que cuidado uma mulher pode tomar para não ser estuprada? Também fiquei surpresa em saber a quantidade de mulheres que já foram estupradas mais de uma vez. Assim como não sabia que a fase depois da profilaxia é um período difícil.
Da três vezes que aconteceu comigo, essa foi a que mais doeu. Eu conhecia meus direitos.”
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Foto: Reprodução do Facebook.
Fonte: Marie Claire.