As religiosas saem do silêncio. No suplemento mensal do sério L’Osservatore Romano (“Observatório Romano”, em tradução livre), as mulheres a serviço da Igreja Católica denunciam ritmos excessivos de trabalhos domésticos e sem direito a uma opinião.
O assunto é tabu no Vaticano. A reportagem foi assinada pela jornalista francesa Marie-Lucile Kubacki. Ela entrevistou várias religiosas que ousaram falar sobre um fenômeno, no entanto, conhecido na Santa Sé.
“Elas acordam de madrugada para preparar o café da manhã e só dormem depois do jantar servido, a casa arrumada, a roupa lavada e passada”, diz a reportagem, ilustrada com vários testemunhos anônimos.
Há por exemplo, a irmã Maria, que lembra o fato de nunca ter sido convidada à mesa do eclesiástico que ela serve há anos. “Será que ele pensa na freira que preparou a comida e que vai comer sozinha na cozinha?”, ela se pergunta. “É normal uma pessoa consagrada ter uma serviçal que também é consagrada?”.
A reportagem, cujo título é “O serviço quase gratuito das freiras”, trata também do problema da remuneração. Muitas religiosas trabalham gratuitamente, sem hora para terminar. Geralmente nenhum contrato ou acordo é assinado para estabelecer as condições de trabalho para um bispo ou um cardeal. Uma precariedade que se estende além do Vaticano, pois em numerosas paróquias e estabelecimentos hospitalares a situação é a mesma.
Um retrato da mulher no Vaticano e na Igreja
A reportagem diz que “a questão econômica é a árvore que esconde a floresta e que coloca em evidência um problema maior ainda, o do reconhecimento”. Muitas religiosas têm a impressão que muito é feito para se valorizar a vocação masculina na Igreja, mas pouco se fala da vocação feminina. “E por trás disso tudo, existe ainda, infelizmente, a ideia de que a mulher vale menos que o homem”, lamenta uma entrevistada, que acrescenta que “o padre é tudo e a irmã não vale nada”. Essa situação criou um sentimento de “forte rebelião interna”, diz o texto da revista.
Em muitos casos, as religiosas são de países pobres, da África ou América Latina, geralmente enviadas a Roma por suas congregações. Alguns carregam histórias complicadas, feridas profundas, e muitas preferem se calar, pois se sentem devedoras. De uma certa maneira para elas, estar a serviço de um homem da Igreja é uma forma de ascensão social, e voltar ao país de origem seria reconhecer uma falha.
O suplemento foi divulgado nesta sexta-feira, no mesmo dia em que o Vaticano tornou pública uma carta enviada pelo papa à escritora espanhola Maria Teresa Compte Grau. Ela está lançando o livro “Dez coisas que o papa Francisco propõe às mulheres”. Na carta, o papa não esconde certas preocupações que ele tem sobre o lugar das mulheres na Igreja. “Às vezes, o papel das mulheres se torna mais de serviçal do que de um serviço de verdade”, diz o papa.
Nos últimos anos, Francisco tem feito apelo a uma presença mais visível das mulheres na Igreja, para que tenham sobretudo mais responsabilidades pastorais.
O levantamento inédito tem feito muito barulho e tem sido reproduzido por muitos jornais no mundo todo. Ainda é cedo para se tirar conclusões, mas as palavras se liberam. A repercussão foi tanta que o Vaticano teve de retirar o artigo da página principal de seu portal de informações na Internet.