Em 12 de setembro último, o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, fez um pedido de desculpas histórico. Dirigindo-se às famílias das 96 pessoas massacradas no Estádio de Hillsborough, em abril de 1989, numa partida de futebol entre o Liverpool e o Nothingan Forest, reconheceu que os mortos haviam sido vítimas de “dupla injustiça”. Além de perderem a vida, foram acusados, por 23 anos, de pertencerem ao grupo de torcedores do Liverpool que causou a tragédia. Foi uma manipulação grosseira que durou mais de duas décadas, admitiu Cameron, em discurso ao Parlamento e apoiado no relatório final de um painel independente.
No final dos anos 1980, uma pequena parcela dos frequentadores ingleses de estádios – chamados de hooligans – haviam, de fato desenvolvido uma cultura de prazer pelo confronto e violência. Mas a torcida do Liverpool não teve responsabilidade alguma pela chamada Tragédia de Hillsborough. Ela foi provocada pelas condições precárias do estádio (algo comum na época) e por atitudes de clara negligência da polícia. Decisões esdrúxulas, no controle do fluxo de torcedores ao estádio superlotado, favoreceram esmagamentos, pisoteamentos e, ao final, queda do muro que separava as arquibancadas do campo. Não se prestou socorro. Apenas 14, dos 96 mortos (houve, também, 766 feridos) foram atendidos em hospital. Só uma das 44 ambulâncias presentes às imediações de Hillsborough foi autorizada a socorrer as vítimas.
O reconhecimento da verdade deveria impulsionar um passo ainda mais importante. É preciso rever todo o conjunto de políticas e normas que, a partir da tragédia, transformaram a face futebol mundial, convertendo-o num esporte cada vez mais elitizado, afastado de suas raízes sociais e culturais, reduzido à dimensão de produto mercantil e de marketing. Hillsborough e a fraude produzida a seguir foram o marco decisivo desta mudança — que está sendo adotada no Brasil no momento em que você lê este artigo, tendo como pretexto da Copa do Mundo de 2014.
Como Thatcher manipulou a tragédia
A ponte entre o que ocorreu no estádio e a elitização do futebol foi o chamado Relatório Taylor. Chefiado então pela primeira-ministra Margareth Thatcher, um dos personagens-ícones do neoliberalismo, o governo britânico constituiu uma comissão, chefiado por Lorde Taylor de Gosforth, para investigar as causas da tragédia e sugerir providências.
O trabalho de apuração foi manipulado do início ao fim, sabe-se agora oficialmente. Dos 164 relatórios produzidos por policiais presentes ao estádio, 116 foram alterados, para remover “comentários desfavoráveis” à atuação das forças “da ordem”. A omissão das informações foi proposital, segundo admitiu Cameron ao Parlamento. A falsificação teve objetivos claros: responsabilizar pela tragédia a torcida do Liverpool; demonizá-la; abrir caminho para um conjunto radical de transformações que já haviam sido planejadas, mas não eram até então viáveis. Elas incidiram nos estádios, na forma de financiamento dos clubes e na relação entre o jogo e o mundo do marketing. Iniciadas na Inglaterra, repercutiram rapidamente em todo o mundo.
Thatcher aplicou, no futebol, a mesma “mão-de-ferro” com que destruía leis trabalhistas e atacava os sindicatos. Estourou as firms, como eram conhecidos os agrupamentos hooligans, torcedores que já vinham causando problema dentro e fora dos estádios pelo seu prazer pelo confronto físico. Quatro anos antes de Hlilsborough, em partida entre Liverpool e Juventus pela Copa dos Campeões da Europa, 39 torcedores haviam morrido pisoteados e esmagados durante uma briga generalizada, conhecida como Tragédia de Heysel.
Em paralelo, avançava outro processo: a poderosa FIFA iniciara uma reforma no futebol mundial. O avanço das tecnologias de comunicação transformaria o esporte num dos principais “produtos” televisivos do planeta. Foi um movimento marcado pela entrada maciça de atores econômicos que hoje controlam o futebol. O comércio de jogadores não era mais o único espaço de trocas comerciais. O esporte passou a ser um grande conglomerado internacional que envolvia anunciantes, patrocinadores, investidores, atletas-estrelas e, se dependesse do projeto ao qual aderiu Margareth Thatcher: uma competição esportiva de grandes empresas. Estava sendo gestado o futebol-negócio dos dias de hoje.
Para tal projeto, a Tragédia de Hillsborough veio no momento ideal. Desde que devidamente arquitetadas, as argumentações necessárias para a “reforma” estavam dadas: era preciso dar, definitivamente, um novo rumo ao futebol, “civilizá-lo”. Publicado em janeiro de 1990, menos de um ano após o incidente, o relatório final da comissão chefiada por Lord Taylor indicou o caminho.
Embora focado em estabelecer diretrizes para um projeto de segurança, o documento propôs uma série de medidas que traziam novas normas de estruturação dos estádios e do próprio futebol inglês. A capacidade de público foi reduzida. Estabeleceu-se que todos os torcedores deveriam permanecer sentados. Os clubes passaram a ser responsabilizados pelos atos de seus apoiadores – o que gerou uma leva de mudanças e de uma ideologização da suposta “modernização e profissionalização das estruturas”.
O movimento de reforma dos estádios, e de restrições aos torcedores briguentos já estava em curso. A crise que se estendeu após o evento em Hillsborough serviu de catalizador para que o processo avançasse. Porém, os clubes e suas torcidas não tinham estrutura necessária para isso.
Para enfrentar rapidamente o novo desafio, tornaram-se empresas de capital aberto e passaram a ter proprietários. Assim, conseguiram obter a estrutura necessária para desenvolver os estádios que seriam os protótipos das atuais “Arenas Multiuso”: complexos desportivos e verdadeiras zonas de consumo.
Surgiu um efeito colateral imediato: o futebol inglês expulsou, junto com os “violentos”, os torcedores mais pobres, que não tinham a capacidade financeira de arcar com ingressos cada vez mais caros em estádios cada vez menores e mais restritivos.
O projeto neoliberal para o futebol consolidou-se, por fim, com a criação da Premier League em 1992 (a liga de primeira divisão do esporte na Inglaterra), com a definição de novas regras de comercialização dos direitos televisivos, publicidade, patrocínios e jogadores. No fim da década de 2000, todos os clubes desta liga — uma das maiores do futebol profissional no mundo — já pertenciam a multimilionários e bilionários árabes, russos, chineses ou estadunidenses.
O futebol brasileiro também revisará o relatório?
Ainda que o esforço por acabar com violência que tomava os estádios ingleses fosse elogiável, o Relatório Taylor falhou – por miopia ou por má vontade política – em reconhecer que verdadeiras causas da Tragédia de Hillsborough. As péssimas condições do estádio eram consequência dos interesses que cercaram o futebol durante as décadas de sua massificação. Naqueles tempos, importavam quantidades. Convinha aos dirigentes ver estádios superlotados, para ampliar as rendas dos clubes e abarrotar seus próprios bolsos. Pouco importavam as condições de conforto ou segurança dos torcedores.
Na nova fase, consolidada a partir do Relatório Taylor, o modelo de negócio mudou. Não interessava encher as arenas com torcedores que mal podiam pagar ingressos. O novo público precisava ter não apenas um “padrão de comportamento”, mas um “padrão de consumo” que compensasse uma estrutura de tal porte.
A Tragédia de Hillsborough dos tempos de hoje não é mais a superlotação, mas o esvaziamento dos estádios, de onde vão sendo expulsos os antigos torcedores tradicionais. O futebol inglês, apesar de ainda ter a maior média de público do futebol mundial, é o mais caro e menos popular de todas as grandes ligas. O padrão de torcedor está totalmente modificado.
No Brasil, vemos a proliferação das “arenas” com consequente aumento do valor dos ingressos. O resultado é o esvaziamento do campeonato brasileiro – que tem a pior média de público, dentre as dez melhores ligas.
Até o início dos anos 2010, muitos apontaram o exemplo inglês para referendar essa ideologização de um futebol “moderno, profissional e empreendedor”. O próprio Estatuto do Torcedor fazia menção ao Relatório Taylor e ao modelo britânico de “gestão de crises”: Restringiu de múltiplas formas as torcidas organizadas e procurou moldar o comportamento do torcedor comum dentro dos estádios.
A longa luta dos torcedores do Liverpool
A revisão do ocorrido em Hillsborough, e das manipulações que se seguiram, foi possível apenas devido à mobilização da torcida do Liverpool. Ela contestou, ao longo de mais de duas décadas, a versão construída pelo Relatório Taylor. Enfrentou, além de Margareth Thatcher, o sensacionalismo dos tabloides britânicos. O The Sun chegou a publicar “depoimentos” de policiais assegurando não ter ajudado as vítimas porque torcedores, bêbados, não permitiam, urinando em quem tentava socorrê-los.
Aos poucos, a resistência restabeleceu a verdade. Um abaixo-assinado com 140 mil adesões exigiu nova investigação. O painel independente, no qual o primeiro-ministro Cameron agora se apóia, foi formado graças à mobilização. O presidente das investigações, James Jones, reconheceu que o inquérito inicial foi comprometido por “árduas tentativas de colocar a culpa nos torcedores”.
Foram necessários 23 anos de angústia e de mentiras para que as famílias das vítimas de Hillsborough pudessem provar ao mundo que se tratou de negligência e de irresponsabilidade das autoridades inglesas. Foram necessários 23 anos para que elas pudessem provar que seus filhos, e os filhos de tantos outros torcedores criminalizados na Inglaterra, não eram os culpados por aquela tragédia.
Foram necessários 23 anos para que os torcedores expulsos dos estádios – por livre e espontânea pressão do dinheiro, como prega o pensamento neoliberal – pudessem provar que foram injustamente culpados para que um plano premeditado pudesse ser aplicado sem direito de resposta.
Resta saber se, no Brasil, prevalecerão as políticas preconizadas pelo Relatório Taylor, fruto de notória manipulação. Resta saber se prevalecerão a “vontade e a liberdade dos agentes econômicos” ou o bom senso, a democracia e o direito do acesso à cultura e ao futebol pela população empobrecida, já tão excluída nos tempos neoliberais.
Editor da coluna Futebol Além da Mercadoria.