Por André Barbieri.
Em seu prefácio de 1874 à obra A Guerra Camponesa na Alemanha, Engels registra o fato de que, incorporando os ensinamentos das batalhas do sindicalismo inglês e das lutas sociais na França, em especial a então recente Comuna de Paris de 1871, “os operários alemães foram colocados provisoriamente na vanguarda da luta proletária”. Ao movimento operário mais organizado da Europa na segunda metade do século XIX, Engels reconhecia que não era possível prever por quanto tempo os acontecimentos situariam os trabalhadores alemães neste lugar de honra, mas notava que “enquanto o ocuparem, o preencherão tal como é seu dever”. No mesmo espírito internacionalista, uma observação atenta dos acontecimentos atuais leva necessariamente à conclusão de que a classe trabalhadora francesa é a que hoje ocupa a vanguarda da luta proletária mundial.
E ocupa esse lugar de honra em meio a um novo ciclo internacional da luta de classes que vem dando traços marcantes à situação política. Depois da revolta dos Gilets Jaunes (Coletes Amarelos) na França em 2018, a arena mundial viu emergir lutas importantes num raio de distância que vai da Catalunha a Hong Kong: enfrentamentos de classe em países do norte da África, como Sudão e Argélia; em países do Oriente Médio, como Líbano, Iraque e Irã; e um ciclo de rebeliões populares em Porto Rico, Honduras, Haiti, com a presença de jornadas revolucionárias no Equador e no Chile, e um golpe de Estado na Bolívia. O pano de fundo destes processos não são em geral grandes catástrofes (guerras ou cracks econômicos), como aconteceu, por exemplo, na primeira metade do século XX, mas sim uma crise do capitalismo que se arrasta desde 2008 e que passou por diferentes momentos.
Penetrando mais a fundo o circuito do raciocínio de Engels, vale dizer que especialmente à luz do retorno da luta de classes no mundo, da crise econômica do sistema capitalista e dos solavancos geopolíticos (para não ir mais longe, entre os Estados Unidos e o Irã, ou a guerra comercial-tecnológica entre Trump e Xi Jinping), “é preciso conservar o sentido autenticamente internacional, que não deixa surgir nenhum chauvinismo patriótico e que saúda com alegria cada novo passo no movimento proletário, venha da nação que vier”. A luta dos trabalhadores franceses merece, portanto, toda a atenção da intelectualidade e da esquerda brasileiras, que buscam antídotos eficazes contra os aiatolás do terraplanismo bolsonarista.
Esse embate, que já dura mais de 45 dias, dirige-se contra a reforma da previdência de Emmanuel Macron, e seu primeiro ministro Édouard Philippe. É a maior luta dos trabalhadores franceses desde o icônico Maio de 1968. Tendo como linha de frente os trabalhadores dos transportes (ferroviários e metroviários), é a maior paralisação desse setor estratégico da economia desde a criação da companhia estatal ferroviária (a Société Nationale des Chemins de fer Français, SNCF) em 1938, superando a duração da greve ferroviária de 1986 por melhores condições de trabalho. Já tem no seu haver o grande mérito histórico de reabilitar, nas condições de fragmentação da classe operária do século XXI e depois de anos de ofensiva neoliberal, o método da greve, tão ossificado pelas burocracias sindicais de Ocidente a Oriente. Como se não bastasse, depois de quase dois meses ainda goza de um apoio majoritário na população francesa, que se vê às voltas de um debate que ultrapassa as fronteiras da reforma da previdência e desembarca no tema crucial: que tipo de sociedade precisamos?
Os efeitos da paralisação dos transportes nas grandes metrópoles como Paris, mas também em cidades como Bordeaux, Toulouse, entre outras, é sintomático das transformações no mundo do trabalho. Nas cidades com densa concentração populacional, com estruturas produtivas afastadas nos núcleos urbanos e o desenvolvimento de amplas regiões periféricas, a rede de transportes tece a teia que unifica os espaços (no capitalismo, sempre de maneira precária e excludente para os mais pobres). Assim, os transportes adquirem importância expansiva como um dos setores mais estratégicos ocupados pela classe trabalhadora, permitindo que a greve se espalhasse ao setor privado, como as refinarias de petróleo. O estancamento desse serviço estratégico na França foi um ingrediente crucial para que Macron recuasse parcialmente do aumento da idade mínima de aposentadoria, dos 62 aos 64 anos, como previa o projeto original.
Mas o galo gaulês não cantou apenas sobre as ferrovias. Inúmeros exemplos da imaginação criadora da greve estouraram por todos os poros da produção. Como não se emocionar com os trabalhadores da Ópera de Paris, que em greve encenaram trechos do balé dramático O lago dos cisnes, de Tchaikóvski, gratuitamente nas ruas da capital? Como não se entusiasmar com os métodos “Robin Hood” dos trabalhadores eletricitários, que cortam a energia dos capitalistas e religam o serviço às famílias pobres que não podem pagar por ele? Recentemente, esses “tribunos do povo” cortaram a energia da sede da central sindical CFDT, cujo secretário-geral, Laurent Berger, auxilia sem pudores o projeto previdenciário macronista (anedota à parte, e digna da poesia francesa, escreveram em carta ao infeliz burocrata que “foi a conciliação de classes que submergiu na escuridão”)? Bombeiros (que na França não são parte do aparato militar como no Brasil) que fazem a polícia recuar para proteger os manifestantes contra a repressão, e a solidariedade dos Coletes Amarelos com os grevistas em ocupações de estações de trem como a Gare du Nord, são pinceladas adicionais nesse profundo quadro de comoção social*.
Um quadro de luta de classes que responde a uma configuração nova no mundo do trabalho, que tem traços muito distintos do que conhecíamos no século XX. Uma das características mais distintivas é a composição imigrante e multinacional da classe trabalhadora francesa, que se torna alvo do racismo institucional das potências imperialistas. As trabalhadoras da limpeza da empresa Onet, que operam nas estações ferroviárias, são mulheres negras e de origem africana em sua esmagadora maioria. Essas operárias da limpeza, que venceram a empresa em uma greve de 45 dias no último trimestre de 2017, impedindo a aplicação da reforma trabalhista de Macron, são parte do universo dos “précaires” que povoam os extratos mais explorados do mundo do trabalho. Trabalhadoras precárias que agora se solidarizam com o movimento grevista, por se saberem parte de uma mesma classe – em um contraponto com as teses de Guy Standing, que considera o “precariado” como uma classe à parte, e não um extrato decisivo da classe trabalhadora.
Tão característica é a composição multinacional nessa nova configuração da classe trabalhadora no século XXI, que ela se converteu mesmo em seu rosto. Anasse Kazib, ferroviário de origem marroquina, emergiu como um dos principais porta-vozes da indignação das bases contra o capitalismo francês (e seus auxiliares nas direções burocráticas dos sindicatos). Entrevistado diariamente por inúmeros canais de rádio e televisão e odiado pela extrema-direita xenófoba, por vezes enfrenta em rede nacional os funcionários de Macron, revelando as mentiras contadas sobre a reforma da previdência e esclarecendo a necessidade de combatê-la.
Anasse, que se autodenomina trotskista publicamente, é parte de uma nova geração de militantes operários que surge no calor desse movimento social, um de cujos frutos foi a Coordenação SNCF-RATP, compreendendo os transportes públicos de Paris, que segundo os próprios grevistas foi o principal sustentáculo da greve durante o difícil período do Natal e da passagem de ano, em que as burocracias sindicais buscavam esfriar o conflito. Não à toa as cúpulas sindicais fogem como da peste desse grande exemplo de auto-organização das bases: é um símbolo da concepção de que “a greve pertence aos grevistas”, uma radicalização incorporada pelo movimento operário francês após o fenômeno dos Coletes Amarelos.
Não deixa de escapar a analogia com o que dizia o revolucionário russo Leon Trótski, acerca da própria França, que na onda de ocupações de fábrica de 1936 via também emergir uma “nova pele” no mundo do trabalho, assinalando que a “greve sacudiu e reanimou as massas. Renovou todo o gigantesco organismo de classe. A antiga escama organizacional ainda está longe de ter desaparecido; pelo contrário, se mantém com demasiada obstinação. Mas, por baixo dela, uma nova pele já aparece”. Essa nova pele começa a surgir novamente em 2019, com impactos globais.
E por que se torna tão importante e merecedor de reconhecimento o fenômeno francês? Porque ele desmente, como se mais um exemplo fosse necessário, as ideias que povoaram o imaginário intelectual e popular das últimas décadas, que poderiam se resumir no ceticismo diante da centralidade da classe trabalhadora como sujeito de emancipação.
Essas ideias não nasceram ontem. Foram fruto da derrota aplicada pela marcha triunfal do neoliberalismo. Do Adeus ao proletariado, de André Gorz, ao O fim do emprego, de Jeremy Rifkin, passando pelo autonomismo de Toni Negri, em que a classe trabalhadora deixa seu lugar para “a multidão” e pelo pós-marxismo de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, em que o ponto de partida obrigatório é o abandono do “essencialismo de classe”, desenvolveram-se múltiplas teorias, verdadeiras pilhas de livros, para provar o enfraquecimento irreversível desse sujeito social. As bases de concepções como essas se poderiam rastrear em distintos núcleos de pensamento, um dos principais sendo as “teorias críticas” das décadas de 1960 e 1970 na própria França. Desde André Glucksmann e Bernard Henri Lévy, que atribuíam o totalitarismo stalinista ao conjunto da classe trabalhadora; passando pelo estruturalismo francês de Claude Lévi-Strauss, que culpava a noção de “sujeito de emancipação” pelos limites dos avanços filosóficos da humanidade; até conceitos desenvolvidos por Michel Foucault, como na obra As palavras e as coisas, de 1966, em que defendia o desaparecimento do homem enquanto sujeito e objeto de conhecimento: um rol de teorizações que, em sua heterogeneidade, comungava de um princípio estratégico, ora mais ora menos velado, de que não se tratava mais de discutir a importância da classe que ocupa os centros nevrálgicos da economia como sujeitos políticos para articular, em aliança com as camadas oprimidas, uma nova ordem socialista.
É tempo de abandonar esse ceticismo e pessimismo teóricos. Deve-se rever seriamente todas as “novas” hipóteses estratégicas que surgiram no calor de uma era de retrocesso, como a aberta após a queda do Muro de Berlim e a restauração capitalista nos mal chamados países socialistas. Isso porque, se é verdade que a classe trabalhadora se tornou muito mais heterogênea e passou por um agudo processo de fragmentação durante o auge neoliberal – com características bastante diferentes daquelas que apresentava no século XX – é também verdade que continua mantendo todas as “posições estratégicas” que fazem a sociedade funcionar (o transporte, as grandes indústrias, os serviços). Com elas, se estiver organizada, pode operar verdadeiros prodígios políticos.
Vemos essa possibilidade na França, com um fenômeno que pode revitalizar a esquerda em todo o globo. Enfatizando a importância de aprender com as experiências internacionais dos trabalhadores, “saudando com alegria cada passo adiante seu”, no Brasil é necessário romper o bloqueio midiático e absorver suas potencialidades e limites. Neste ano eleitoral, a lição principal vem da arena de combate internacional. Esta oportunidade se afigura ainda mais urgente diante dos desafios da esquerda brasileira. Nas palavras do mesmo Anasse, é a história da luta de classes que está em jogo.
* Todos os artigos explicando em detalhe estes rebentos da luta de classes podem ser encontrados na rede internacional de diários Esquerda Diário, que tem sua publicação em francês impulsionada pelo periódico Révolution Permanente (https://www.revolutionpermanente.fr/).